Entrevista com Daniel Pellizzari, autor de “Digam a Satã que o recado foi entendido”
“Uma das minhas preocupações desde o início foi me afastar totalmente de tudo que fosse joyceano.”
Criado pelo produtor Rodrigo Teixeira, desde 2007, o projeto Amores Expressos, da editora Companhia das Letras, selecionou uma leva de escritores da nova safra da prosa contemporânea brasileira com o objetivo de que cada um fosse levado a uma determinada cidade dentro ou fora do país, ficando nela durante um mês e, a partir dessa experiência, saísse um romance que tivesse como plano de fundo a geografia do lugar sustentado por uma história de amor. Do projeto, já foram 11 títulos publicados dos 16 escritores escolhidos, entre eles, Daniel Pellizzari, que foi enviado para a cidade de Dublin, na Irlanda, terra de James Joyce e cartão postal de seu novo romance, lançado no último mês de julho, e que recebeu o sugestivo título de Digam a Satã que o recado foi entendido.
Escritor, tradutor, editor e colunista da Folha, Daniel Pellizzari tem cinco livros publicados e participações em algumas antologias literárias dentro e fora do país. Em entrevista exclusiva para o Amálgama, o escritor fala sobre o novo romance, a experiência de escrever por encomenda, sua viagem a Dublin, a escolha do título e sobre uma graphic novel ainda em andamento.
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Amálgama: Como surgiu o convite para fazer parte do Amores Expressos, e como foi escrever um livro por encomenda? Houve algum momento de dúvida ou insegurança frente à proposta?
Daniel Pellizzari: Eu entrei no projeto num segundo momento, depois que vários autores já tinham viajado. O autor que originalmente iria a Dublin recusou o convite porque estava se concentrando na fase final de um livro, e a vaga tinha ficado em aberto. Comecei a trabalhar em outros projetos com o Rodrigo Teixeira, o produtor que criou o Amores Expressos, e ele acabou me fazendo o convite. Em termos de ser uma encomenda, não houve problema algum. Em primeiro lugar, porque a proposta era muito aberta: “uma história de amor” é um tema bem amplo. Em segundo, porque desde o princípio o livro se tornou um projeto autoral para mim, que já tinha uma relação forte com a Irlanda desde a adolescência. E calhou da viagem também me pegar num momento em que eu estava tentando fazer algo diferente com a minha literatura, então essas três coisas me impediram de pensar no livro como “encomenda”, como algo menor ou separado dos meus outros livros. As dúvidas e inseguranças que surgiram diziam respeito a essa tentativa de escrever algo diferente, não à encomenda em si.
Em Digam a Satã que o recado foi entendido, você trabalhou a narrativa de modo polifônico, havendo uma alternância de vozes narrativas das personagens. Você já tinha ideia de como seria construída essa questão estética ou de unidade narrativa? Era isso mesmo que planejava ou o processo foi se construindo ao decorrer da feitura do livro?
Desde o início eu queria trabalhar com foco narrativo em primeira pessoa, porque nunca tinha feito isso – acho bem complicado, tecnicamente – e queria ver como me saía. Mas de início eram só dois narradores (Magnus e Laura, que no fim acabou aparecendo apenas nos capítulos dos outros). Com o tempo, desenvolvendo o enredo e as relações entre os personagens, fui sentindo necessidade de colocar outras vozes, criar vários contrapontos. Mas primeiro precisei pensar bastante em cada um deles, para que se tornassem tridimensionais para mim e eu conseguisse chegar na voz de cada um.
Como foi a experiência de passar um mês inteiro na terra do consagrado James Joyce? Há algum fato emblemático ou mesmo alguma observação curiosa sobre Dublin que possa nos contar?
Escrevi sobre isso durante a estadia por lá. Mas posso dizer que uma das minhas preocupações desde o início foi me afastar totalmente de tudo que fosse joyceano (por mais complicado que fosse, sendo eu fã do escritor e conhecendo bem as referências todas que me cercavam). Não queria que nada disso interferisse no livro que eu estava começando a gestar, seria um clichê imenso demais.
James Joyce foi um escritor que, apesar de ter passado grande parte de sua vida em Paris, sempre escreveu sobre sua cidade natal em livros. Que tipo de influência a literatura joyceana teve em você, ao longo dos anos?
Eu fui muito obcecado por Joyce durante muitos anos, e no meu primeiro romance (Dedo negro com unha), que é dividido em três partes, a segunda é uma paródia compactada do Ulysses (só o Caetano Galindo, tradutor do Joyce, percebeu, mas tudo bem).
O título surgiu antes, durante ou depois do livro ser finalizado? E, por curiosidade, por que exatamente esse título?
Surgiu durante o processo, a partir da fala de um personagem (não é exatamente a mesma, ele usa um termo folclórico – “homem de preto”, “fear gorm” em gaélico irlandês – ao invés de “Satã”). Me parece uma boa maneira de sintetizar o enredo do livro, baseado em sucessões de desventuras.
Cinema é algo que passa pela sua cabeça? Uma adaptação, por exemplo, de algum de seus livros? Talvez o atual.
Todos os livros da coleção Amores Expressos já tiveram os direitos de adaptação audiovisual vendidos de saída, é assim que o projeto funciona. De qualquer modo, esse é meu primeiro livro adaptável para cinema – meio difícil alguém fazer isso com Dedo negro com unha -, e eu ficaria feliz se acontecesse, mesmo.
Você já escreveu roteiros?
Escrevi o roteiro de uma graphic novel em parceria com Rafael Grampá, que está desenhando. Será publicada quando ele terminar, não sei quando. Espero que logo. É “Água peluda”, o título.
O que você pensa do momento atual da nossa literatura?
Está interessante, vários autores que começaram a publicar de uns dez anos para cá (a minha “geração”, de certo modo) está publicando livros excelentes, encontrando vozes mais seguras. E ainda têm muito pela frente, então o prognóstico parece ótimo (não que escritores obrigatoriamente melhorem com tempo).