Uma radiografia de Malcolm X
Ao escrever sobre Malcolm, Manning Marable escreve também um vasto painel da história cultural dos EUA.
Na corrida eleitoral para a Casa Branca em 2008, um dos discursos mais celebrados de Barack Hussein Obama foi o que o então candidato a presidente fez sobre a questão racial. Em um momento-chave de sua peroração, Obama destacou que “nossa união talvez jamais venha a ser perfeita, mas, geração após geração demonstraram que ela pode ser melhorada”. Seria incorreto e até certo ponto leviano apontar que a sua eleição foi vencida ali, mas é inegável que Obama é parte desse processo de aprimoramento, se tomarmos este discurso como referência. O tempo, no entanto, é implacável. Poucos anos depois desse discurso, a repercussão da não condenação do assassino do jovem Trayvor Martin, num caso que fez com que protestos alcançassem as ruas, mostra o quão sensível esse debate pode ser.
O livro de Manning Marable, Malcolm X: Uma vida de reinvenções, pode servir, nesse sentido, para o entendimento de como o debate sobre a questão racial não apenas está longe de ser consensual, como também ganhou tons bastante polêmicos no século XX, sobretudo a partir de personagens como a de Malcolm. Marable assina um livro que, para além de descortinar a trajetória política desse ativista, estabelece um verdadeiro inventário de como a sociedade norte-americana enfrentou o problema racial ao longo do século passado.
Assim, se por um lado tem-se em mãos um livro cuja estrutura narrativa se organiza a partir de uma ordem cronológica – algo considerado fora de moda por alguns autores contemporâneos –, por outro lado observa-se o texto ganhando forma na medida em que seu protagonista principal começa a desempenhar um papel chave na trama. Em outras palavras, para saber quem foi Malcolm X e sua importância para o cenário político dos Estados Unidos, também é necessário compreender como ele foi forjado do ponto de vista do imaginário. E é isso que Marable concebe nas primeiras partes da sua biografia.
O mais interessante da obra é como o autor consegue capturar a transformação do biografado ao longo do tempo. Isso já começa a ficar claro a partir das divisões dos capítulos, quando o autor opta por relacionar a delimitação temporal com o trecho em questão. Esse detalhe é relevante porque o leitor consegue, também, articular cada período com as mudanças político-culturais que aconteciam. Assim, se no início o personagem central é um garoto ingênuo, sem qualquer malícia para viver numa grande cidade, aos poucos se torna uma figura mais calejada, que já havia cruzado uma fronteira, como escreve o biógrafo.
É dessa forma que o autor alcança êxito ao apresentar a formação política de Malcolm X. Em outras palavras, de acordo com Marable, Malcolm não teria tido o mesmo protagonismo se não fosse a trajetória errante e fora do comum. O fato de ter acompanhado de perto a condição de vida dos afro-americanos em seus anos de formação foi elementar para consolidar no imaginário a importância do seu ativismo político. Marable aponta o desenvolvimento dessa sensibilidade: “Durante seu período no Harlem, Malcolm não se envolveu diretamente com atividades que pudessem ser descritas como políticas (…) Mas, para seu crédito, mesmo nessa fase da vida ele já era um extraordinário observador.”
De forma semelhante, outro ponto que chama a atenção na biografia é a obsessão de Marable em amarrar sua narrativa com outros relatos existentes sobre Malcolm X. E o que poderia ser uma camisa de força se torna uma estratégia eficaz para que a história tenha um apelo factual mais legítimo, na contramão de algumas obras que, por vezes, podem ser confundidas com hagiografias, tamanho o oficialismo na reprodução de casos que mais se aproximam do folclore do que da verdade. O principal movimento do autor nesse sentido se dá numa espécie de comparação de sua apuração para com a autobiografia assinada por Malcolm X. (Em tempo: o autor não faz isso para desprezar o que o seu personagem escreveu; antes, toma esse texto como parte integrante da tese que elabora sobre Malcolm, a já citada transformação, ou, nas palavras do biógrafo, reinvenção.)
Biografias como a de um personagem tão complexo quanto Malcolm X costumam ser norteadas por algum tipo de agenda, para além da concepção de uma história. Ao escrever sobre Malcolm, Manning Marable escreve também um vasto painel da história cultural dos Estados Unidos, levando em conta a extensa contribuição da comunidade representada por Malcolm para a história do país.
Mesmo assim, não é correto apontar que o autor faz uma biografia demasiadamente elogiosa ou até mesmo partidária. Aqui, vale a pena resgatar um fragmento que vai no prólogo do livro:
A grande tentação que ronda o biógrafo de uma figura icônica é retratá-lo como um grande santo, sem as contradições e máculas comuns a todos os seres humanos. Dediquei tantos anos ao esforço de compreender a personalidade interior e a mente de Malcolm que essa tentação desapareceu há muito tempo.
O que vai acima pode até parecer um clichê; no entanto, ainda que o biógrafo esteja interessado pelo protagonista da história e por seu ambiente, o resultado deste livro é uma narrativa bastante equilibrada e consistente sobre um homem repleto de contrastes e que o tempo inteiro esteve interessado em ser o dono da própria história.
::: Malcolm X: Uma vida de reinvenções :::
::: Manning Marable :::
::: Companhia das Letras, 2013, 642 páginas :::