Resenha dos livros mais recentes de Demétrio Magnoli/Elaine Barbosa e Jan-Werner Müller
“Estou convencido de que, dentro de vinte anos, se não houver nenhum movimento
retrógrado na evolução política, não haverá mais assembleias legislativas na Europa.”
Antônio Salazar (1934)
1.
Esses dois livros ajudam a amarrar as pontas ideológicas do século 20. O livro de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa é o segundo volume de Liberdade versus igualdade. O primeiro, que vai de 1914 a 1945, saiu em 2011. O segundo, do final da Segunda Guerra aos ataques de 11 de setembro de 2001, saiu meses atrás. Juntos, eles narram, através de uma visão panorâmica e linguagem jornalística, os principais fatos políticos, econômicos, militares e comportamentais do século passado. O livro do professor em Princeton Jan-Werner Müller se circunscreve às batalhas intelectuais na Europa.
Como o totalitarismo europeu contaminou o restante do planeta, a obra de Müller pode até ser lida antes dos dois volumes de Magnoli e Barbosa. Por outro lado, se você que me lê no momento é um jovem que até agora só teve contato com a historiografia do século 20 mais ou menos marxista, eu sugeriria primeiro a leitura de Liberdade versus igualdade, como um contraponto de leitura ágil, para só então você passar para historiadores liberais de mais fôlego, como Müller, Robert Conquest, John Lewis Gaddis e Michael Burleigh, cujas obras são melhor aproveitadas se o leitor já tem um conhecimento razoável dos principais caminhos do século 20, conforme delineados não apenas por autores de esquerda.
Por exemplo: hoje em dia praticamente nenhum autor tem a cara-de-pau de defender o Pacto de Varsóvia, mas muita gente ainda, desde os bancos escolares, só consegue enxergar a aliança militar comunista como um suposto equivalente moral da Otan. Mas como observam Magnoli e Barbosa em uma de suas passagens desmistificadoras:
O Pacto de Varsóvia, constituído em 1955, ostensivamente como resposta ao rearmamento da República Federal da Alemanha, não era uma aliança militar defensiva, mas uma ferramenta da hegemonia soviética sobre o bloco de países satélites. Sua função, oculta mas bastante óbvia, consistia em servir como sentinela armada dos regimes comunistas da Europa Oriental. Como colocar um sinal de identidade entre uma aliança voluntária dirigida contra a perene ameaça soviética e um pacto entre governos tirânicos dirigidos contra os povos que oprimiam?
Ao final de cada parte de O Leviatã desafiado, há uma espécie de crônica dos tempos, com as mudanças sócio-culturais em diversos cantos do mundo. O grosso do conteúdo de cada parte é dedicado aos temas geopolíticos. Dessa forma, o capítulo que cobre o período 1960-1974 tem cerca de 100 páginas sobre a Revolução Cultural chinesa, a Primavera de Praga, o crescimento da Irmandade Muçulmana etc., e cerca de 20 páginas sobre as diversas conquistas das mulheres.
O Leviatã foi desafiado de todos os lados, de formas e em várias intensidades. Magnoli e Barbosa fazem um ótimo trabalho ao trazerem para as páginas não apenas as revoltas de fundo totalitário de certa esquerda ocidental nos anos 60 e 70, como também os ataques à democracia “ocidental” desferidos por ditadores latino-americanos, asiáticos (como Sukarno e sua “democracia dirigida”) e por ideólogos árabes como Michel Aflaq e Salah Bitar (sírios, ambos). Aflaq e Bitar são uma prova da influência decisiva que o pensamento antiliberal europeu teve no Terceiro Mundo. Os dois “estudaram juntos na Sorbonne, na década de 1930, quando formularam as bases da doutrina que combinaria as ideias da unidade árabe às do socialismo”.
O baathismo, como incontáveis vertentes da descolonização, via a democracia liberal do Primeiro Mundo como um modelo falido, e defendia que os árabes teriam sim que viver em democracia, mas uma democracia em que as liberdades, inclusive de imprensa e associação, deveriam estar “dentro dos limites do interesse nacional árabe” – o qual, obviamente, seria definido pela cúpula do movimento.
Não demoraria muito para nascer o choque de autoritarismos que ainda hoje martiriza o mundo árabe-muçulmano. De um lado, propostas seculares como a do Baath de Saddam Hussein e Bashar al-Asad, além do nasserismo; de outro, o desafio posto por grupos religiosos menos (Irmandade Muçulmana) ou mais (wahhabismo, Al-Qaeda e suas franquias) fundamentalistas. O Leviatã desafiado tem o que pouquíssimos livros de história de autoria de brasileiros têm: trechos e análises de discursos e escritos dos precursores do fundamentalismo, como os egípcios Sayyid Qutb e Hassan al-Banna. Qutb não era apenas um islamita (ou seja, um muçulmano que aplica, ou melhor, funde o islã à política), mas um pensador totalitário ao pé da letra. Nazismo e fascismo falharam, dizia ele; chegou a vez do islã, interpretado “como uma ideologia universal e uma filosofia de vida completa”, explicam Magnoli e Barbosa, ideologia que deveria ditar desde as vestes apropriadas para homens e mulheres até os assuntos a serem ensinados (para homens) em sala de aula e as circunstâncias em que se justifica um estado declarar guerra contra outro. O Ocidente marcara sua própria sentença de decadência e morte ao separar Igreja de Estado. O islã moldaria o estado e este promoveria então o bem-estar de todas as pessoas.
2.
O leitor de Contesting democracy vai encarar três teses principais: 1)o pensamento político liberal pré-1914, que bem valeria a pena defender diante das alternativas hegemônicas à direita e à esquerda, forneceu as bases para o consenso pós-Segunda Guerra; 2)no pós-guerra, a Democracia Cristã foi tão ou mais importante que a Social-Democracia para a consolidação de um forte arranjo democrático; 3)nenhum dos dois maiores desafios a esse arranjo desde então, os movimentos de 68 e o neoliberalismo econômico, conseguiram derrubá-lo, e é melhor que tenha sido assim.
A tragédia que deslegitimou (momentaneamente) a democracia liberal europeia foi, claro, a Primeira Guerra, esse mais estúpido de todos os conflitos. Após a carnificina e a mediocridade criminosa de líderes políticos, as concepções tradicionais de legitimidade caíram em descrédito. Novas justificativas para os mandatos políticos, “mais extensas e mais explícitas”, puderam ser desenvolvidas, e deu-se o nascimento das lideranças carismáticas que não deixariam mais que reles “formalismos” atrapalhassem os caminhos da nação, da raça, da classe trabalhadora – o Nacional-Socialismo alemão priorizaria o segundo item, o fascismo italiano fundiria o primeiro e o terceiro, e os diversos revolucionarismos de esquerda ficariam com o terceiro, só décadas mais adiante incorporando o primeiro.
Mas o consenso liberal pré-1914 foi forte durante o muito que durou, e não sumiu de todo. Sua linguagem pró-democracia, pelo menos, permaneceu. “Mesmo os experimentos políticos que estridentemente definiam-se como contrários à democracia parlamentar liberal (…) jogavam com as aparências dos valores democráticos”, escreve Müller. Giovanni Gentile, ideólogo fascista, jurou em uma edição de 1927 da Foreign Affairs que “o Estado fascista (…) é um estado popular e, como tal, o estado democrático par excellence”. É nesse sentido que devemos entender a contestação da democracia apresentada por Müller: não, principalmente, como discursos explicitamente antidemocráticos propondo experiências antidemocráticas, mas como discursos democráticos na fachada, propondo uma democracia melhor e “verdadeiramente” popular, mas que no fundo escondem os atalhos que levarão a regimes antidemocráticos por qualquer definição de bom senso do termo.
De Gentile, passamos para Lenin. O pai da revolução russa não tinha dúvidas de que estava implantando naquela infeliz nação “uma democracia verdadeiramente completa”. O inimigo, dizia ele, não era a democracia, mas o “parlamentarismo”. A democracia russa seria não-parlamentar, então. Ademais, apenas indivíduos “produtivos” teriam direito a voto – ou seja, os trabalhadores. E o único representante legítimo dos trabalhadores seria o Partido. Do bolchevismo para o nazismo: para Carl Schmitt, uma “democracia genuína” é aquela em que a identificação entre os governantes e os governados é total, de forma que um regime como o de Mussolini, na Itália, é mais “verdadeiramente democrático” do que o parlamentarismo liberal, onde os cidadãos muitas vezes se acham alienados de seus líderes. Do nazismo para o stalinismo: György Lukács dizia que não existe “liberdade real” em uma democracia parlamentar, mas somente quando há “subordinação consciente do eu ao desejo coletivo”, desejo este que é representado pelo Partido. Nada contra a democracia, em suma.
As três ideias centrais que sustentavam o consenso pré-1914, escreve Müller, eram “a ausência de guerra e outros tipos de violência em larga escala”, “uma crença no geral muito forte no progresso, especialmente no progresso científico”, “e uma crença na eventual europeização do mundo” – que significava basicamente propagação de valores democráticos e técnico-científicos. Não é necessário ser especialista em história contemporânea para perceber que tal consenso derivava diretamente do Iluminismo. É por isso que o nazi-fascismo foi o supremo anti-Iluminismo. “O ano de 1789 está doravante erradicado da história”, disse Goebbels em 1933. E Müller:
O fascismo se opôs a virtualmente tudo que o Iluminismo defendia: a ideia de que os seres humanos poderiam chegar à verdade através do raciocínio conjunto, de que eles poderiam garantir-se mutualmente direitos iguais e liberdade através de um contrato social, de que razão e progresso estão inextricavelmente ligados. Assim, os fascistas têm sido chamados de misologistas – odiadores da razão.
O autor elenca as semelhanças entre fascismo, nazismo e comunismo, mas nota também suas diferenças centrais. O nazismo, em contradição ao fascismo, centrava na importância da raça; e, em contradição ao leninismo, era mais anárquico. Já o stalinismo, entendia que “a luta de classes se tornaria mais severa à medida que o socialismo se aproximava; e, no processo, o estado não murcharia, mas na verdade se tornaria mais poderoso”.
Müller também analisa com perícia as semelhanças e diferenças dos autoritarismos não-fascistas do entre-guerras, em relação ao regime de Mussolini e entre si. Por exemplo, enquanto o ditador italiano se via e queria ser visto como um semideus, o ditador português Salazar fazia questão de ser visto como um humilde servidor público – não um mobilizador das massas como o italiano, mas alguém que as coloca em seu “devido lugar” e faz a apologia do comportamento bovino. O paternalismo salazarista deixava espaço para uma miúda forma de pluralismo, algo inviável na Itália ou na União Soviética.
3.
Após a Segunda Guerra, o discurso de contestação da democracia que se apossou da Europa Oriental foi o comunismo, através de suas “democracias populares”. Inicialmente, muita, muita gente recebeu os soviéticos como libertadores, ao invés de novos imperadores. Para os europeus orientais, o império nazista era um terror na teoria (com os eslavos e outros povos classificados como “subumanos”) e na prática. O império soviético, por outro lado, não tinha um discurso racista, mas sim universal, e, após anos de morticínio em mãos alemãs, esse dado já era um alívio para parte das terras de sangue entre Alemanha e Rússia.
Mas a prática soviética não tardou a se impor sobre o discurso, nem tampouco as primeiras insatisfações com a nova ordem, que levariam aos picos de 1956 e 1968. Assim como havia comparado antes os totalitarismos e os regimes autoritários não-totalitários, Jan-Werner Müller aproveita essa parte do livro para comparar as “democracias” do leste europeu, outro ponto alto da obra.
Enquanto isso, na Europa ocidental o estado no pós-guerra era desalentador, mas, por isso mesmo, o espírito para a (re)construção de uma ordem duradoura começou aos poucos a vencer o desânimo e o pessimismo. É aí que entra a segunda tese de Müller: a importância decisiva da Democracia Cristã, “a mais importante inovação ideológica do período pós-guerra, e uma das mais significantes do século 20 europeu como um todo”. A DC, observa ele, foi um movimento imprescindível para as duas políticas mais bem sucedidos do século no continente, a saber, o estado de bem-estar social e a integração europeia. Com habilidade e poder de síntese, Contesting democracy traz uma narrativa das origens da DC que é raramente igualada por outros volumes sobre o século passado, indo do pensamento dos católicos franceses Emmanuel Mounier e Jacques Mauritain aos pragmáticos políticos da República Federal da Alemanha.
Os partidos da DC estavam bem posicionados para receber os votos conservadores, após o fracasso do extremismo de direita, e faziam questão de ser o principal baluarte contra a comunização do continente.
(…) os democratas-cristãos se tornaram os partidos mais quintessencialmente anticomunistas do período, ajudados pelo fato da direita tradicional ter sido tão completamente desacreditada junto com o fascismo. Uma razão pela qual os direitos humanos se mostraram tão atrativos para os católicos é que a linguagem dos direitos pessoais podiam sem empregados contra a ameaça do “bolchevismo ímpio”.
Ao mesmo tempo, os democratas-cristãos defendiam um “Estado decente”. O estado de bem-estar social do pós-guerra visava principalmente à reconciliação das classes médias com o novo arranjo, não permitindo, por exemplo, a volta do surto inflacionário que, anos antes, havia levado estas classes a darem o peso decisivo para o sucesso político da extrema-direita. “Tal reconciliação”, escreve Müller,
foi muito facilitada pelo fato de que o estado de bem-estar foi justificado, nem tanto em termos de ideais socialistas duradouros, mas como uma forma de – palavra muito usada nos anos 1940 e 1950 – decência. Seus arquitetos – William Beveridge, antes de mais ninguém – eram na verdade liberais, dedicados a uma evolução do estado existente, e não a rompimentos revolucionários.
Da mesma forma, a DC seria instrumental para a união europeia. Alcide De Gasperi, Adenauer e Robert Schuman, pais da Comunidade Europeia, eram democratas-cristãos. Na união, os países cediam certos poderes para entidades supranacionais, em troca da macro-estabilidade da democracia liberal, que preveniria recaídas autoritárias. Com isso, os legislativos nacionais ficaram enfraquecidos, e os executivos muito fortalecidos. “Justificações da democracia”, observa Müller, “centravam menos em ter pontos de vista efetivamente representados no parlamento do que em garantir o revezamento regular de elites políticas responsáveis, através de eleições”.
Sim, esse esquema, devido a seu caráter “sem graça” e de aversão ao redentismo político, de certa forma lembra o pré-1914 – por isso o movimento pós-guerra foi construção, mas foi também reconstrução. Mas, comparando com os anos antes da Primeira Guerra e dos anos entre-guerras, a economia europeia e mundial estava mundo mais amarrada, e a preocupação de fundo moral com o bem-estar dos indivíduos, muito mais disseminada. Ainda assim, houve quem se rebelasse contra a “atomização” pós-guerra.
Na esquerda, a contestação foi de Hannah Arendt a mauricinhos maoístas. Sobre as revoltas de 68, Müller defende que suas motivações principais foram a crise do ensino superior europeu e a hipocrisia dos países ricos em relação ao Terceiro Mundo. O lado sombrio dessa contestação, no entanto, foi a idealização dos movimentos guerrilheiros terceiro-mundistas. “Não foi por acidente”, escreve o autor, “que os grupos terroristas [europeus] dos anos 1970 se classificariam como ‘guerrilhas urbanas’”.
Os líderes de 68 falavam numa linguagem revolucionária, mas sua revolução deveria ser, pelo menos inicialmente, uma revolução das consciências, liderada por uma minoria que esclareceria o restante da sociedade sobre o caráter fraudulento da “democracia formal” – do “estado autoritário de bem-estar” e da “tolerância repressiva”, como dizia Marcuse, um dos heróis da rapaziada. Müller (autor de um estudo sobre a influência do pensamento de Carl Schmitt no pós-guerra), confronta essas ideias:
(…) é surpreendente que muitas das descrições dos teóricos do que havia dado errado com as instituições democráticas e liberais, como os parlamentos, baseavam-se em ideias ingênuas e leituras históricas implausíveis do que o liberalismo havia sido na Europa do século 19. Contrastar instituições como elas funcionavam sob as condições da democracia industrial de massas de meados do século 20 com uma era de ouro imaginária era uma típica jogada teórica – uma que mostrava afinidades com o antiparlamentarismo de Carl Schmitt nos anos 1920.
A Europa parecia estar de volta ao ceticismo do entre-guerras. De fato, aquele que Müller considera o principal teórico político do 68 alemão, Johannes Agnoli, parecia estar, com sua crítica radical da democracia liberal, presente ao mesmo tempo na extrema-direita e na extrema-esquerda, lembrando os ideólogos italianos do fascismo, por exemplo. (Aliás, Johannes nasceu “Giovanni Agnoli” em 1925, e seu histórico de radical incluiu hinos dedicados a Mussolini e trabalho voluntário na Wehrmacht. Ele se tornou cidadão da Alemanha Ocidental em 1955.)
Um dos resultados positivos de 68 foi a liberalização de costumes. O resultado mais negativo foi o terrorismo dos anos 70. Os enfrentamentos internos na esquerda italiana, que levaria à radicalização e ao terrorismo de certos grupos, lembra o que ocorreu aqui no Brasil. A acomodação cada vez maior do Partido Comunista italiano ao sistema levou a críticas de pensadores como Raniero Panzieri, críticas que seriam ainda mais radicalizadas por seus discípulos Mario Tronti e Antonio Negri, dois dos racionalizadores do terrorismo. Ao percorrer essa história, o leitor brasileiro se vê lembrando a linha moderada do PC brasileiro em momentos dos anos 50 e 60, e a consequente carreira solo no mundo das armas de gente como Carlos Marighella – que, por sinal, teve seu Minimanual do guerrilheiro urbano bastante apreciado pelos extremistas europeus. A diferença, claro, é que a partir de 1964 o Brasil viveu numa ditadura. A Itália, por sua vez (ou a França, ou a Alemanha), só era uma “ditadura” para quem via nas “democracias” do leste algo a, no mínimo, ser comparado positivamente com a “hipocrisia” ocidental.
A democracia liberal sobreviveu aos ataques da extrema-esquerda, conclui Müller, porque, no fundo, “68 (e após) demonstrou que o arranjo constitucional do pós-guerra era imensamente compatível com uma liberalização da cultura”. O que não era o caso com as “democracias populares”.
Da mesma forma, o arranjo pós-guerra sobreviveu aos ataques do ultraliberalismo econômico das últimas décadas do século – “a maior ameaça à Social-Democracia (e, por extensão, às versões sociais da Democracia Cristã)”. Hayek (que, em suas próprias palavras, não queria “fazer da democracia um fetiche”), investiu contra o consenso do pós-guerra com a sua própria forma de utopia: um regime em que leis universais abstratas garantiriam a liberdade máxima dos indivíduos, em que parlamentos teriam seus membros eleitos apenas entre sábios de idade avançada, que serviriam por longos períodos e não precisariam se preocupar constantemente com reeleição e prestação de contas às massas… “Em resumo”, escreve Müller, “o poder deveria ser delegado tanto quanto possível a corpos políticos insulados da população – quer dizer, de eleições e pressões de grupos”.
As ideias de Hayek e companhia se mostraram a muitos nos anos 70 como a bíblia que continha as receitas para sair das crises econômica e de governabilidade assolando países ricos. O neoliberalismo teve implicações práticas, mas Müller não concorda com aqueles que dizem que ele derrubou as bases do consenso do pós-guerra. No final das contas, escreve, “mesmo políticos nominalmente conservadores no continente concordaram que as coisas deveriam mudar apenas de forma a que continuassem essencialmente o mesmo”.
(…) o arranjo constitucional do pós-guerra não foi fundamentalmente renegociado de acordo com o que pudesse ser chamado de neoliberalismo. Mas isso se deu em parte porque ele já se conformava a alguns dos esquemas que os neoliberais defendiam – estado de direito e freios e contrapesos, em particular. O próprio Hayek pareceu não ter visto o quão hayekiana a política do pós-guerra – fora do Reino Unido – sempre havia sido. E suas ideias mais estranhas, como o senado de anciãos, sempre foram de muito improvável implementação.
A verdade é que eventos como a crise econômica dos anos 70, e a atual, sempre colocaram enormes desafios ao consenso europeu do pós-guerra. Müller não foge da questão quando ela se apresenta. Mas o que ele quer provar é que, assim como o consenso pré-14 merecia ser aprimorado, e não destruído, o consenso pós-45 tem se mostrado duradouro e amplamente benéfico para a paz e o bem-estar no continente porque encontrou os atalhos para sair de crises, sociais e econômicas, dentro de seu próprio esquema. E o autor, vigorosamente e sem pedido de desculpas, defende a democracia parlamentar liberal diante dos inúmeros ataques que sofreu ontem e sofre hoje. Quem quiser experimentar algo fora de seus parâmetros será, como sempre foi, por sua própria conta e risco.
::: O Leviatã desafiado, 1942-2001 :::
::: Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa :::
::: Record, 2013, 544 páginas :::
::: Contesting democracy :::
::: Jan-Werner Müller :::
::: Yale University Press, 2013 (paperback), 304 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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