Lendo-se este pequeno livro, entende-se por que o fato de Mo Yan ter levado o Nobel incomodou tanta gente
Lendo-se o pequenino Mudança, entende-se por que o fato de Mo Yan ter levado o Nobel no ano passado incomodou tanta gente. Ele é um escritor, por assim dizer, adaptado à China. Fora um incidente envolvendo um livro de 1996, nunca teve grandes problemas com as autoridades e muito menos precisou se exilar. Para um artista, ou qualquer outra pessoa, não causar problemas com as autoridades de uma ditadura não é a mesma coisa que não causar problemas com as autoridades de uma democracia. Mas, claro, é possível ser um bom artista mesmo estando de bem com o poder autoritário. Então como se sai Yan?
Mudança não é seu livro mais famoso, e sim Sorgo vermelho. Mas é o primeiro publicado no Brasil, em tradução de Amilton Reis para a editora Cosac Naify, e é por ele que o leitor brasileiro sem acesso aos livros em inglês de Mo Yan tirará sua primeira impressão. A minha, é a de que Yan não tem uma prosa tão interessante quanto a de Yu Hua ou Ma Jian – e, claro, não poderia ser menos sarcástico e demolidor que este último. Isso para ficar apenas em outros dois ficcionistas chineses contemporâneos também traduzidos no Brasil, e sobre os quais já escrevi.
Verdade seja dita, Mudança não tem grandes pretensões. Yan diz que o escreveu após um editor indiano pedir-lhe um relato sobre a política e sociedade chinesas das últimas décadas. Ele não quis se comprometer, mas como o amigo editor continuou insistindo, e disse que ele poderia escrever o que quisesse e como quisesse, Yan resolveu bolar um texto entre a ficção e a autobiografia.
O autor narra seus primeiros anos de vida na província de Shandong, e depois conta alguns eventos durante sua passagem pelo exército, servindo em postos de mais de uma cidade, mas todos isolados, sem grandes emoções à espera. No final dos anos 70, após não conseguir entrar numa universidade, Yan passa a se dedicar à literatura: “O sonho da universidade podia ter ido por água abaixo, mas o da literatura ganhava cada vez mais fôlego. Naquele tempo, um simples conto bastava para criar fama instantânea”. Ele passou a ler assiduamente revistas como Literatura Popular e Arte e Literatura do Exército Popular de Libertação. No final de 1981, finalmente conseguiu emplacar um conto em uma revista. Três anos depois, a consagração (internacional, inclusive) viria com a publicação do Sorgo vermelho.
Percorre toda a narrativa uma obsessão com o caminhão Gaz 51, de fabricação soviética e muito raro na China de Mo Yan. Já durante sua infância, ele e os colegas eram impressionados com um exemplar do veículo dirigido pelo motorista de uma fazenda coletiva, que passava veloz pelas ruas, concentrado e causando inveja. Em um dos postos do exército, Yan se depara com um outro exemplar do Gaz, e após ouvir um técnico contar a “gloriosa história” do caminhão (que incluía sua participação na guerra da Coreia), concluiu que “o destino tinha me colocado naquela unidade insignificante com a missão de juntar as duas irmãs gêmeas separadas havia tanto tempo”.
As “irmãs” em questão são os dois Gaz 51, o de sua cidade natal e o do posto do exército. O narrador sonha com os dois veículos se encontrando e se divertindo, não como irmãos, mas como namorados. O Gaz 51 de sua infância, em particular, terá um destino curioso, e em Mudança esse carro desempenha a função que em outros romances costuma ser desempenhada por algum personagem-chave, no sentido de servir como ligação entre outros personagens e peça de encaixe do enredo, o que é bem interessante.
As mudanças na China aparecem no texto: ora faz-se referência a um expresso que nos anos 2000 permite percorrer em um espaço de tempo mais curto uma distância que antes se levava uma eternidade para percorrer, ora ao momento em que restaurantes privados começaram a surgir, ou aos desejos de poupança e enriquecimento através de juros.
Mo Yan pincela algumas críticas à realidade do país – a corrupção e o sistema de compadrio estão presentes. Mas quando se vê forçado a passar pelos eventos que levaram ao massacre de milhares de manifestantes pró-democracia em 1989, na praça da Paz Celestial, o autor, que naquele ano estava lotado na Universidade de Pedagogia de Pequim, escreve apenas que “(…) pouco depois eclodiu o movimento estudantil. Seguiu-se uma tensão que aumentava a cada dia. Muitos perderam a motivação para ir às aulas”, e segue adiante com segurança para outros temas.
::: Mudança :::
::: Mo Yan (trad. Amilton Reis) :::
::: Cosac Naify, 2013, 128 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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