[N.E.: este é o primeiro post de uma série em que colaboradores da equipe do Amálgama e convidados especiais escreverão sobre autores de sua preferência – não necessariamente o que considerem o melhor, e de preferência um que já não seja mega-super conhecido.]
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Eu e Thomas Pynchon temos algo em comum: nós dois adoramos O enigma da pedra, de Jim Dodge (1945-), o autor de Fup. Nos EUA, o romance é um clássico, recomendado em escolas, tendo sido reeditado desde seu lançamento. Por aqui, teve uma única edição pela José Olympio, em 1995, com uma das piores capas de livro de todos os tempos. Talvez a culpa pelo insucesso do livro por aqui seja isso.
Primeiro, é preciso ressaltar o grande trabalho de tradução de Mauro Pinheiro na edição da JO. Você vê a coisa fluir como se um velho hippie (que é o que Jim Dodge é) contasse a história. Dá pra sentir o sabor. Veja esse trecho:
Ele teve dois momentos de sorte seguidos. O primeiro foi uma bala que raspou seu lábio inferior, tão perto que fez uma bolha de água, mas não chegou a romper a pele. O segundo foi um velho enrugado seguindo na direção do estacionamento, alheio à luz persecutória do holofote e aos estampidos dos disparos, tão distraído no meio daquilo que quando Shamus encostou o revólver na nuca do velho e disse “Entre no carro e caia fora”, ele virou-se e disse, aturdido, “Catapora?”
Vai dizer?
Mas… qual a história de O enigma da pedra?
É a história da educação e do descobrimento de Daniel Pearse.
Daniel nasceu de pai desconhecido, tendo como mãe a jovem adolescente e impetuosa Annalee. Mal nasceu e já estava dentro de um caminhão, fugindo com a mãe. Fugindo, ambos, de um destino que a sociedade iria impor a eles de maneira muito cruel. Espíritos livres, não poderiam viver adequadamente entre os comuns. São, então, adotados por uma sociedade internacional de marginais, magos e foras-da-lei, chamada de AMO (Alliance of Magicians and Outlaws). De plena concordância com o filho, Annalee decide não mandá-lo à escola: ele aprende a ler, escrever e sobre tudo o mais em casa, um velho rancho que serve de abrigo a vários integrantes da AMO. Vai também, é claro, aprendendo sobre “o que não deve”. Nesse início de aprendizado temos personagens lindos e cativantes, como o descendente de índio Johnny Seven Moons (personagem que já havia aparecido em Fup).
Num dia de chuva no verão, Johnny, que era hóspede no rancho da AMO, tirou a roupa e convidou mãe e filho para fazerem o mesmo. Saíram todos correndo, nus e de mãos dadas, numa das cenas mais bonitas do livro.
Um desses hóspedes do rancho foi Shamus, por quem Annalee se apaixona. Daniel gosta dele e gosta de ver a mãe passar algumas noites no quarto de Shamus. Ela diz ao filho que o ama acima de tudo, mas que gosta muito de estar com Shamus – ele a faz feliz. Daniel concorda em dividi-la com ele.
Por uma série de fatores, mãe e filho ficam longe de Shamus por um tempo. Annalee e ele voltam a se encontrar um tempo depois: ela entra em uma biblioteca e o vê folheando um livro:
Shamus fechou o livro que estava examinando e o devolveu à estante sem dar por sua presença.
– Eu tenho amado você e sentido a sua falta a cada minuto nesses últimos dois anos – sussurrou ele, olhando para os livros – e estou com medo de olhar para você, medo de que não seja você, talvez uma alucinação desesperada, um sonho ardente.
Sacou? Já viram trecho mais lindo que esse?
Bem, tem alguns ainda mais tocantes. O meu preferido, na verdade, seria muito extenso para ser colocado aqui. Mas num aniversário de Daniel, em que ele passa sozinho com a mãe em um grande barco ancorado, ele pergunta sobre seu pai. Quem seria? Annalee perde o controle, eles brigam, desfiguraram o bolo: ela não sabe quem seria o pai. Ela teve muitos homens entre os 16 e 17 anos… Senta ao lado do filho e vai contando pra ele suas transas, uma a uma, devagar, “com todo homem de carne e osso ou de sonho que ela conseguia lembrar ou inventar, heróis, poetas, fora-da-lei, loucos. Daniel ouviu atentamente e, quando ela acabou, ele fez algo que encheu os seus olhos de lágrimas: partiu um pedaço de bolo desfigurado e ofereceu para ela”.
Assim caminha a história de Daniel Pearse, criado entre libertários e marginais, anarquistas e usuários de drogas, mas sempre gente que não quer o mal do outro. Ou quase nunca.
Tragédias acontecem em sua vida, ele acaba caindo sob os cuidados do Grande Volta, um ex-mágico, pessoa importante na AMO. Ele passa por treinamentos, tem uma missão, e acaba tendo contato, no terço final do livro, com “a pedra”: um diamante estranho e enorme, do tamanho de uma bola de boliche. Nesse último terço as coisas vão ficando estranhas, o LSD vai batendo nas tampas de Jim Dodge, mas não importa: a conclusão é linda e redime quaisquer falhas desse entrecho dinâmico, “um jovem criado para uma missão”.
No meio disso tudo, vemos a educação de Daniel Pearse progredir com ensinamentos de um velho e bem-sucedido jogador de pôquer ou de um jovem especialista na arte da maquiagem. E sabemos também de um problema específico de Daniel – e só isso já o tornaria um grande personagem: ele não consegue transar duas vezes com a mesma garota. Nunca. É só uma e nunca mais.
Posso dizer que o ritmo de Jim Dodge impede que a gente perca o interesse, e ele sempre cria painéis de fundo para os personagens. Ficamos intrigados com narrativas que parecem deslocadas da trama, mas que desenham perfeitamente personagens e estados de espírito. Uma dessas cenas é quando o Grande Volta, um senhor bastante seguro de si, vê uma jovem ruiva de 10 ou 11 anos, “aquela idade estranhamente mercurial de pré-pubescência feminina que na verdade varia dos três aos 35″, tentando acertar bolinhas dentro de aquários num pequeno parque de diversões. Volta quer ajudá-la, dar dinheiro, fazer com que ela ganhe um peixinho. Ele se lamenta breve e insensatamente por não ter tido filhos. Até que a menina erra suas últimas bolinhas e “disse ‘Merda’ rapidamente, como se a rapidez tornasse aquilo mais aceitável”. Volta dá dinheiro a ela e ensina como ganhar. Ela ganha o peixe, mas não quer levá-lo com ela. “Minha mãe diz que é uma grande responsabilidade tomar conta de uma outra coisa viva”. Volta fica com o peixe.
Uma cena que dava um livro inteiro, quase.
Assim é esse cativante e originalíssimo romance, que pode ser comprado em sebos por cinco reais.
Thomas Pynchon é um dos maiores fãs dessa obra, tendo escrito um longo posfácio em uma das edições americanas. Ele diz: “Aqui encontramos a ficção americana em toda sua dimensão, fartamente imaginada e profundamente sentida, exuberante pelo seu senso de humor fora da lei e sua mágica franqueza”.
Reza a lenda que Dodge escreveu esse livro dentro de uma rotina auto-estabelecida, trabalhando nele cinco horas por dia durante um ano.
Não me conformo de não terem feito ainda um filme do Enigma da pedra. Seria um grande filme nas mãos de alguém como Terry Gillian. Trata-se de uma narrativa de grande imaginação onde não se pode adivinhar o final.
Recomendo também o Fup, sucesso no Brasil com mais de 30 mil exemplares vendidos, e que trouxe Jim Dodge à FLIP. É um volume pequeno e simpático que conta a história do relacionamento entre um jovem órfão, seu avô, alguns personagens estranhos e a pata Fup, mal-humorada e alcoólatra. Sim, é um livro cativante, mas fica a quilômetros de distância quando comparado ao Enigma.
Fora esses dois romances, Dodge tem um apenas mais dois livros publicados: um romance menor com uma história de estrada e uma coletânea de poemas e contos.
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