William Trevor nos comove a cada página de "A História de Lucy Gault", com sua parábola sobre o tempo e a expiação.
Da guerra pela independência da Irlanda ao advento da internet em seus primeiros e mais imaturos dias em pouco mais de duzentas páginas. Busque um autor capaz de fazer transcorrer tantas décadas com a fluidez e confiança de uma testemunha ocular e encontrará poucos como William Trevor. Pode-se imaginá-lo olhando no fundo de nossos olhos ávidos por uma redenção que durante todo o tempo, como o Godot de Samuel Beckett, outro irlandês, nunca chega. A história de Lucy Gault é candidato a livro mais triste da última década e foi lançado recentemente no Brasil pelo selo Biblioteca Azul. E diz muito sobre quem é este senhor de 86 anos que pode acabar com o jejum de quase vinte anos sem um Nobel da Irlanda.
Como em Death in Summer, seu livro anterior, também há uma criança desaparecida. Agora, mais do que desaparecida, ela é tida como morta devido a variáveis tão improváveis que só podem ser fruto de um destino altamente sarcástico em movimento. A diferença é que enquanto Thaddeus procurava a pequena Giorgina em Death in Summer, o pai de Lucy, por julgá-la morta, deixa a garota para trás quase abandonada à própria sorte, não fosse um casal de empregados criá-la como sua própria filha. Esse desencontro é o ingrediente presente em tantas histórias de William Trevor, algo que dá substância aos seus humanos que vivem apenas para perecer na solidão, às margens da História. E há algo muito desconfortável em ver uma criança definhando graças a uma simples travessura – pois A história de Lucy Gault é isso, a narrativa de uma aventura ingênua cuja consequência é a destruição da vida de todos ao redor, um ato simples que produz um eco que ressoará durante quase todo o século XX. A vida é reduzida a uma simples relação de causa e consequência que reverbera através das páginas belamente escritas do livro.
Eis o cenário: a idílica tranquilidade campestre, retirada momentaneamente dos distúrbios que tomaram conta do país no início dos anos vinte, é invadida pela certeza de que os bons tempos, os tempos de paz, chegaram ao fim. A família de protestantes do capitão Everard Gault é vítima de uma intimidação cruel que põe fim à vida dos cães pastores que ajudavam na casa, todos envenenados. Temendo que o destino de sua propriedade seja o mesmo da de tantos protestantes, o capitão monta guarda dia e noite para impedir que ateiem fogo aos seus pertences, sua gente e suas memórias. O tiro de raspão que acerta um dos incendiários é o que inicia a derrocada da família Gault.
Lucy Gault, filha do capitão Everard, conta apenas nove anos, mas dentro de seu mundo infantil ela vive muitas vidas. Ama sua terra, a praia e o mar, elementos tão próximos e cotidianos como os objetos do lar e a decoração nas paredes. O futuro é ainda um lugar inóspito e estrangeiro, inabitável e desinteressante, apenas o presente nos arredores de Lahardane importa. De amizade, apenas um cão. É uma vida feliz, no entanto. Uma vida feliz interrompida pelo medo que se apodera da família que, temendo reações violentas da comunidade local, resolve partir para a Inglaterra. Lucy, tão ligada ao solo em que nasceu, decide que não irá, incapaz de aceitar o abandono covarde da única realidade que já conheceu. A fuga se apresenta como uma consequência lógica, uma forma cruel de chamar a atenção para o seu descontentamento quando todas as outras já falharam – uma forma travestida de inocência, mas que traz consequências trágicas.
Por razões que o leitor verificará logo nas primeiras páginas, os pais de Lucy acreditam que a menina se afogou enquanto nadava escondida. O desespero e a dor tomam conta do casal e eles resolvem antecipar a viagem ao exterior – não mais para a Inglaterra, mas para o mais longe possível de onde julgam ter perdido a filha. A jornada enlutada os leva numa peregrinação pela Europa através do século XX, testemunhando de forma passiva as suas transformações e grandes eventos, como a ascensão de Benito Mussolini na Itália e a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto isso, a pequena Lucy é encontrada por um dos antigos criados da família. Mas estamos em 1921 e não há internet ou telefone acessíveis a todos, os pais da garota estão em algum lugar do mundo incomunicáveis e ela foi deixada para trás sem que eles soubessem e sem que ela pudesse segui-los de qualquer forma. Um castigo muito grande e cujas proporções são inimagináveis para um crime tão pequeno. Trevor nos comove a cada página com sua parábola sobre o tempo e a expiação.
Há um paralelo a ser feito com Crime e castigo. Na obra de Dostoiévski, o estudante Raskólnikov comete um homicídio com o qual tem de viver até ser capaz de se perdoar. Proporcionalmente, Lucy também comete um crime – ou assim sua mente de criança encara a atitude. E sabe-se que para uma criança o único perdão que importa é o do pai e da mãe. Em outras palavras, não há como viver se o pecado carrega para além das pequenas passadas da criança as únicas duas figuras capazes de absolvê-la. Ela irá crescer, mas a culpa já é parte da sua constituição – não há mais Lucy sem pesar, nem outro caminho possível. Nem o amor é permitido, e ele bem que tenta.
Tudo isso parece compor um quadro infeliz e sem cor, e talvez a impressão esteja correta. O que certamente está incorreto é supor que a tristeza que subjaz a toda a narrativa contamina a qualidade do trabalho. Pelo contrário: William Trevor compõe uma pequena obra-prima da amargura, com personagens submetidos a uma situação absurda, mas exatamente por isso possível, como é a vida e toda sua trama de impossibilidades. Não há narrador tão sereno quanto a voz que afirma a beleza de Lucy durante o verão, os romances que habitam as prateleiras do casarão, o soldado que parte para lutar nas trincheiras da guerra, a lenda viva que se cria em torno da criança – e, depois, mulher – solitária que aprendeu a esperar, mais do que ninguém. Tudo com a mesma voz delicada e constante um narrador que não se detém diante de amenidades, mas não poupa esforços diante do essencial. Esse uso inteligente das palavras, um estudo econômico da linguagem, torna a leitura em algo fácil de manusear apesar do tema.
Mais uma vez o autor mostra sua maestria na construção homens e mulheres que se perdem. É impossível não torcer genuinamente para que se encontrem, e há algo de muito positivo na lição que se retira ao final – lição que é individual e pertencente a cada leitor de uma forma diferente. Pode-se tentar compartilhar, mas não é transposta facilmente para fora do corpo. Esperança é a palavra que vem à mente, inescapável durante as 288 páginas. E é uma palavra suficiente para preencher um livro, um sonho ou uma vida.
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Fátima Duques