Pequena obra-prima da tristeza

William Trevor nos comove a cada página de "A História de Lucy Gault", com sua parábola sobre o tempo e a expiação.


"A história de Lucy Gault", de William Trevor. (Biblioteca Azul, 2014, 288 páginas)

“A história de Lucy Gault”, de William Trevor. (Biblioteca Azul, 2014, 288 páginas)

Da guerra pela independência da Irlanda ao advento da internet em seus primeiros e mais imaturos dias em pouco mais de duzentas páginas. Busque um autor capaz de fazer transcorrer tantas décadas com a fluidez e confiança de uma testemunha ocular e encontrará poucos como William Trevor. Pode-se imaginá-lo olhando no fundo de nossos olhos ávidos por uma redenção que durante todo o tempo, como o Godot de Samuel Beckett, outro irlandês, nunca chega. A história de Lucy Gault é candidato a livro mais triste da última década e foi lançado recentemente no Brasil pelo selo Biblioteca Azul. E diz muito sobre quem é este senhor de 86 anos que pode acabar com o jejum de quase vinte anos sem um Nobel da Irlanda.

Como em Death in Summer, seu livro anterior, também há uma criança desaparecida. Agora, mais do que desaparecida, ela é tida como morta devido a variáveis tão improváveis que só podem ser fruto de um destino altamente sarcástico em movimento. A diferença é que enquanto Thaddeus procurava a pequena Giorgina em Death in Summer, o pai de Lucy, por julgá-la morta, deixa a garota para trás quase abandonada à própria sorte, não fosse um casal de empregados criá-la como sua própria filha. Esse desencontro é o ingrediente presente em tantas histórias de William Trevor, algo que dá substância aos seus humanos que vivem apenas para perecer na solidão, às margens da História. E há algo muito desconfortável em ver uma criança definhando graças a uma simples travessura – pois A história de Lucy Gault é isso, a narrativa de uma aventura ingênua cuja consequência é a destruição da vida de todos ao redor, um ato simples que produz um eco que ressoará durante quase todo o século XX. A vida é reduzida a uma simples relação de causa e consequência que reverbera através das páginas belamente escritas do livro.

Eis o cenário: a idílica tranquilidade campestre, retirada momentaneamente dos distúrbios que tomaram conta do país no início dos anos vinte, é invadida pela certeza de que os bons tempos, os tempos de paz, chegaram ao fim. A família de protestantes do capitão Everard Gault é vítima de uma intimidação cruel que põe fim à vida dos cães pastores que ajudavam na casa, todos envenenados. Temendo que o destino de sua propriedade seja o mesmo da de tantos protestantes, o capitão monta guarda dia e noite para impedir que ateiem fogo aos seus pertences, sua gente e suas memórias. O tiro de raspão que acerta um dos incendiários é o que inicia a derrocada da família Gault.

Lucy Gault, filha do capitão Everard, conta apenas nove anos, mas dentro de seu mundo infantil ela vive muitas vidas. Ama sua terra, a praia e o mar, elementos tão próximos e cotidianos como os objetos do lar e a decoração nas paredes. O futuro é ainda um lugar inóspito e estrangeiro, inabitável e desinteressante, apenas o presente nos arredores de Lahardane importa. De amizade, apenas um cão. É uma vida feliz, no entanto. Uma vida feliz interrompida pelo medo que se apodera da família que, temendo reações violentas da comunidade local, resolve partir para a Inglaterra. Lucy, tão ligada ao solo em que nasceu, decide que não irá, incapaz de aceitar o abandono covarde da única realidade que já conheceu. A fuga se apresenta como uma consequência lógica, uma forma cruel de chamar a atenção para o seu descontentamento quando todas as outras já falharam – uma forma travestida de inocência, mas que traz consequências trágicas.

- William Trevor -

– William Trevor –

Por razões que o leitor verificará logo nas primeiras páginas, os pais de Lucy acreditam que a menina se afogou enquanto nadava escondida. O desespero e a dor tomam conta do casal e eles resolvem antecipar a viagem ao exterior – não mais para a Inglaterra, mas para o mais longe possível de onde julgam ter perdido a filha. A jornada enlutada os leva numa peregrinação pela Europa através do século XX, testemunhando de forma passiva as suas transformações e grandes eventos, como a ascensão de Benito Mussolini na Itália e a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto isso, a pequena Lucy é encontrada por um dos antigos criados da família. Mas estamos em 1921 e não há internet ou telefone acessíveis a todos, os pais da garota estão em algum lugar do mundo incomunicáveis e ela foi deixada para trás sem que eles soubessem e sem que ela pudesse segui-los de qualquer forma. Um castigo muito grande e cujas proporções são inimagináveis para um crime tão pequeno. Trevor nos comove a cada página com sua parábola sobre o tempo e a expiação.

Há um paralelo a ser feito com Crime e castigo. Na obra de Dostoiévski, o estudante Raskólnikov comete um homicídio com o qual tem de viver até ser capaz de se perdoar. Proporcionalmente, Lucy também comete um crime – ou assim sua mente de criança encara a atitude. E sabe-se que para uma criança o único perdão que importa é o do pai e da mãe. Em outras palavras, não há como viver se o pecado carrega para além das pequenas passadas da criança as únicas duas figuras capazes de absolvê-la. Ela irá crescer, mas a culpa já é parte da sua constituição – não há mais Lucy sem pesar, nem outro caminho possível. Nem o amor é permitido, e ele bem que tenta.

Tudo isso parece compor um quadro infeliz e sem cor, e talvez a impressão esteja correta. O que certamente está incorreto é supor que a tristeza que subjaz a toda a narrativa contamina a qualidade do trabalho. Pelo contrário: William Trevor compõe uma pequena obra-prima da amargura, com personagens submetidos a uma situação absurda, mas exatamente por isso possível, como é a vida e toda sua trama de impossibilidades. Não há narrador tão sereno quanto a voz que afirma a beleza de Lucy durante o verão, os romances que habitam as prateleiras do casarão, o soldado que parte para lutar nas trincheiras da guerra, a lenda viva que se cria em torno da criança – e, depois, mulher – solitária que aprendeu a esperar, mais do que ninguém. Tudo com a mesma voz delicada e constante um narrador que não se detém diante de amenidades, mas não poupa esforços diante do essencial. Esse uso inteligente das palavras, um estudo econômico da linguagem, torna a leitura em algo fácil de manusear apesar do tema.

Mais uma vez o autor mostra sua maestria na construção homens e mulheres que se perdem. É impossível não torcer genuinamente para que se encontrem, e há algo de muito positivo na lição que se retira ao final – lição que é individual e pertencente a cada leitor de uma forma diferente. Pode-se tentar compartilhar, mas não é transposta facilmente para fora do corpo. Esperança é a palavra que vem à mente, inescapável durante as 288 páginas. E é uma palavra suficiente para preencher um livro, um sonho ou uma vida.

Amálgama




Douglas Marques

Curitibano, graduando em Psicologia, leitor assíduo e escritor nas horas vagas.


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  • Fátima Duques

    Belo texto. Resenhas assim nos dão vontade de ler o livro.