A incrível decadência argentina e suas lições para o Brasil

Sucessivos governos populistas ignoraram a necessidade de reformas estruturais.

- Péron e Evita, Plaza de Mayo, 1951 -

– Péron e Evita, Plaza de Mayo, 1951 –

Existe uma piada que diz que o melhor negócio do mundo é comprar um argentino pelo que ele realmente vale e revendê-lo pelo que ele acha que vale. O pano de fundo desta piada é o orgulho argentino, conhecido em todo o mundo. É este mesmo orgulho que está na raiz da rivalidade entre Brasil e Argentina, algo que transcende o futebol.

Basta imaginar que até o início dos anos 50 a Argentina era a sexta maior economia do mundo, com uma população escolarizada, recursos naturais abundantes e uma indústria pungente que disputava de igual para igual até mesmo em setores de alta tecnologia, como o automotivo. E não se tratavam de apenas filiais estrangeiras. A Argentina tinha sua própria marca de automóveis (SIAM), além de várias outras de eletrodomésticos. A riqueza argentina era tamanha que o país, em 1920, chegou a ter reservas em ouro superiores ao decadente império britânico e ao emergente novo império norte-americano. Era praticamente um “europeu” latino americano. Não por acaso, o país tornou-se o destino preferido de milhões de refugiados das duas guerras mundiais, inclusive de carrascos nazistas acolhidos por Perón.

Meio século depois, a Argentina não passa de mais um problemático país latino-americano, com as conhecidas mazelas que afligem o continente, como favelas, violência crescente, inflação galopante, analfabetismo, doenças epidêmicas entre outros. A decadência da Argentina é tão evidente que o país virou um case internacional, citado como exemplo raro de país que “involuiu” nas últimas décadas.

Uma rápida comparação com o Brasil dá uma ideia da decadência dos nossos hermanos. A economia, que até o final dos anos 40 era maior que a nossa, hoje é menor que a economia do estado de São Paulo. Agora imagine-se na pele de um argentino que viveu este apogeu, ver o país hoje em mais uma moratória, com uma inflação de 40%, e dependente da economia brasileira.

Mas afinal, o que causou toda esta decadência? Como a Argentina conseguiu empobrecer justamente no momento em que tantos países antes miseráveis ascenderam econômica e socialmente, a ponto de alguns integrarem hoje o clube dos ricos?

A Argentina é vítima do que Hayek chamou de “caminho da servidão”, um processo lento e gradual de coletivização, aumento do intervencionismo estatal e polarização da sociedade.

O início de tal processo tem uma data: 04/06/1946, dia da chegada de Perón ao poder. O simpatizante de Hitler e Mussolini iniciou uma tradição populista na Argentina que dura até os dias de hoje. A exemplo de Getúlio Vargas no Brasil, que instituiu os direitos trabalhistas inspirados na Carta del Lavoro de Mussolini e se tornou o “pai dos pobres”, Perón dividiu a Argentina entre seus apoiadores (o bem, o povão, os “trabalhadores”) e seus adversários (o mal, os “exploradores capitalistas”, a velha “elite colonial” ).

E como sempre acontece nestes casos, os discursos inflamados do “pai dos pobres” conquistaram os eleitores da base da pirâmide. Começou então uma simbiose entre a nova elite governante trabalhista/socializante, que precisa dos votos da massa para continuar oferecendo-lhes novas “conquistas”, e a massa, que descobre o poder do voto e passa a endeusar seus ídolos.

A conquista da hegemonia da opinião publica passa a moldar também os políticos. Com medo se colocarem “contra os pobres”, até mesmo políticos da antiga aristocracia migraram para a base do governo peronista. Aos poucos, a oposição foi minguando, ao mesmo tempo em que a Argentina transformava-se numa república sindicalista.

E mais uma vez, como sempre acontece, no começo tudo é festa. Aumento do salário mínimo acima da inflação, aumento do crédito, crescimento recorde, nacionalização de multinacionais, grandes obras, políticas de transferência de renda e tudo o mais que já nos é bem familiar.

Mas todo crescimento artificial tem um preço. A fatura vem com o tempo, e com ela os efeitos negativos decorrentes do intervencionismo governamental. Ao final do primeiro mandato de Perón, a Argentina já dava claros sinais de crise, com as exportações caindo pela metade, reservas se esvaindo e aproximando a balança comercial de um déficit histórico, uma vez que até então o país tinha sempre grandes superávits. Apesar de todos estes sinais, o caudilho conseguiu mudar a legislação que lhe deu mais cinco anos de mandato.

O segundo mandato foi ainda pior, abrindo espaço para o primeiro de uma sequencia de golpes militares só interrompido nos anos 70 com um breve período de redemocratização onde, novamente, o peronismo voltou ao poder. Em pouco mais de um ano de governo, Perón multiplicou a inflação, que chegou a 74% em 1974. Dois anos depois, chegaria à casa dos 954%!

Para completar a tragédia, Perón morreu em pleno mandato, o que o elevou ainda mais à categoria de mito. Sua terceira mulher, “Isabelita”, assumiu então o governo e continuou seu projeto populista, afundando ainda mais a economia argentina.

Como de praxe na América Latina, os militares estão sempre prontos para um novo golpe. Foi o que aconteceu em 1976 na Argentina, quando teve início um dos regimes mais truculentos da história do continente.

A esta altura, além de Perón e Evita, a segunda esposa que quase vira santa, a Argentina já tinha um novo mito para cultuar: Che Guevara. Agora, além dos adversários peronistas, os desastrados militares tinham também como novos inimigos os diversos movimentos de esquerda que se organizavam em toda a América Latina e que tentavam chegar ao poder pela via armada. Paralelamente, a exemplo do que aconteceu no Brasil e em todo mundo, o marxismo cultural passou a dominar os meios acadêmicos e culturais, avançando gradativamente por todas as demais áreas estratégicas para a construção da “nova mentalidade” gramisciana.

No campo econômico, o segundo período militar argentino herdou a época do choque do petróleo que culminou com o aumento expressivo dos juros em 1982, os quais elevaram substancialmente as dívidas dos países do terceiro mundo. A nova redemocratização veio em 1983 com Raul Alfonsín que, a exemplo de Sarney no Brasil, fracassou redondamente no combate à inflação.

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A nova esperança surgia na figura populista de um novo peronista, Carlos Menem, em 1989. Os tempos agora eram outros. Não havia mais espaço para novas “conquistas trabalhistas” como no passado. A grave crise dos anos 90 levou Menem a ser pragmático, aderindo ao Consenso de Washington, a odiada “cartilha neoliberal”.

Suas raízes populistas peronistas, no entanto, não lhe permitiram executar bem as dez recomendações do Consenso de Washington. Apesar disso, Menem passou a ser apontado pelos esquerdistas como o maior exemplo de fracasso das políticas “neoliberais”. O seu principal erro foi ignorar a diretriz 5, que recomendava o câmbio flutuante. Ao invés disso, ele dolarizou a economia, instituindo a paridade entre o peso e o dólar. Como previsto por diversos economistas, ao longo dos anos a situação foi se agravando paulatinamente, a ponto de o país quebrar duas vezes em um intervalo de quatro anos.

Em meio a mais profunda crise, que culminou com mais uma moratória em 2002, eis que surge um novo salvador da pátria, também peronista: Néstor Kirchner. Assim como no Brasil, quando Lula assumiu justamente no início do ciclo de maior crescimento do capitalismo desde o final da II Guerra Mundial, Kirchner contou com o aumento expressivo das receitas decorrentes do aumento dos preços dos seus principais produtos de exportação.

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O presidente surfou na onda da globalização chinesa, esquecendo, no entanto, de fazer reformas estruturais para tornar o crescimento sustentável nos próximos anos. Terminado o período do boom de crescimento global, as mazelas da economia argentina começaram a reaparecer. O governo dos Kirchner, que começou com um calote da dívida externa, vai terminar da mesma forma – novo calote, mais inflação galopante.

A história se repete. A Argentina não aprende com os próprios erros, tornando-se cada vez mais refém da mentalidade populista que asfixia a economia e produz políticos mais interessados no poder do que realmente resolver os profundos problemas do país. Qualquer semelhança com nosso cenário não é mera coincidência.

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  • Helioconti

    Sem querer ocultar as mazelas que o peronismo significou e continua significando para a Argentina, me parece que o autor do artigo quis forçar um paralelo com o, digamos, lulismo, dilmolulismo ou lulopetismo no Brasil. Para tanto, não se importou em sonegar informações históricas relevantes, como:
    1) o segundo mandato de Perón não deu origem ao primeiro golpe militar na Argentina (isso em 1955), já que o primeiro golpe ocorreu em 1930 (com Uriburu) e o segundo em 1943 (com Rawson). Já que a ideia do autor é traçar um paralelo populista anacrônico entre Argentina e Brasil, talvez fosse melhor explorar a coincidência das datas dos dois primeiros golpes com a “revolução” e o mandato de Getúlio Vargas, por exemplo;
    2) Perón, embora tenha apoiado no início, foi dissidente no golpe de 1943, razão pela que ficou preso em 1945, o que motivou a grande movimentação popular de 17 de outubro daquele ano (a data peronista por excelência) que resultou na sua liberação naquela mesma noite;
    3) Perón foi eleito democraticamente em 1946, 1952 e 1973, sendo que nesse último período, já debilitado, governou por pouco mais de 8 meses até morrer em 1º de julho de 1974, isto depois dos golpes militares de 1955, 1962 e 1966; logo, acusá-lo como único responsável pela inflação de 74% em 1974 é, no mínimo, leviano;
    4) o autor ignora toda a complicada conjuntura social anterior a Perón, típica da formação argentina, em que uma imensa parcela da população servia e sobrevivia a duras penas como peões nas muitas e enormes estâncias do país, pertencentes à abastada elite de Buenos Aires. A Argentina do artigo parece com o “mundo perfeito” que Perón veio trucidar;
    5) colocar Che Guevara como “mito” cultuado pelos argentinos revela um total desconhecimento do país e do seu povo. Embora argentino, Guevara é muito mais “cultuado” no Brasil do que no seu país natal;
    6) dizer que Menem preteriu o “câmbio flutuante” para instaurar a paridade com o dólar por iniciativa própria, talvez numa noite de tango e insônia no verão portenho, significa desconhecer (ou varrer pra baixo do tapete) a política de “âncora cambial” patrocinada pelo FMI e inspirada em Rudi Dornbusch, copiada por FHC no Plano Real, que teve a sabedoria e felicidade de não atrelar a moeda ao dólar, mas mesmo assim manteve o câmbio artificial no limite para se reeleger em 1998, o que gerou a crise brasileira do câmbio de janeiro de 1999, quando FHC tinha jurado de pé junto na campanha (com apoio de gloriosa parte da mídia) que o real não seria desvalorizado. Não demorou um mês do segundo mandato para mandar a moeda brasileira às favas;
    7) por onde anda o Dornbusch? (ah, acabei de checar, morreu em 2002)
    8) querer comparar peronismo com lulismo tem lá a sua relevância política, sociológica talvez (com o perdão de FHC), mas deve no mínimo reconhecer a enorme distância no tempo entre os dois fenômenos, que têm pontos de contato mas pertencem a épocas e conjunturas muito distintas, e isso deve ser feito sem falsificações históricas, senão vira só um discurso panfletário.

    • Paulo César

      Parabéns. Quem sabe mesmo é assim.

    • Alan Fuentes

      Desculpe mas o autor resumiu em um artigo os pontos relevantes de uma história pouco conhecida pela maioria Brasileira que carece de cultura devido aos péssimos ensinamentos dados nas instituições públicas que o governo obriga os professores a baterem as metas de aprovações com o ônus de não receberem seu bônus de fim de ano. Esta é a realizade que o socialismo assistencialista de pessoas culturalmente e profissionalmente despreparadas prega ao Brasil, e fazendo um paralelo a nossa querida vizinha egocêntrica Argetina realmente vejo muita similitude ao que passamos aqui. Mas provavelmente você deve chuchar na teta do nosso querido governo que gosta de granjear votos com este tipo de populismo barato que nos levou a recessão atual. Lamento a todos que apenas interpretam o que leem como querem em seu individualismo deseperador e esquecem que um páis sem economia crescente e empregos a msiéria prolifera!

      • Helioconti

        Alan Fuentes, em vez de vir com mimimi, xororô e nhem-nhem-nhem, conteste os dados que apresentei, fica menos feio!

  • Guess

    Eis o ovo da serpente: uma defesa simplista do liberalismo econômico, numa leitura rasa da história econômica argentina ao longo do século XX, apoiada em alguns lugares comuns do pensamento de Olavo de Carvalho: “marxismo cultural”, “mentalidade revolucionária” (“‘nova mentalidade’ gramisciana”) etc. Preocupante…

    • Alex

      Guess, voce pode contra-argumentar em relação à leitura rasa e expor seu conhecimento profundo. Não perca a chance agora.

  • Antonio José Martins Pais

    Como não sou muito esperto, apenas observo, mas… considerando que:

    1) Saímos, na época do príncipe, da posição de décima segunda economia do mundo para a sexta;

    2) Temos um razoável colchão de reservas internacionais, adquirido de 2003 para cá, de modo a nos proteger das intempéries econômicas, que ocorrem;

    3) Enquanto o mundo de 2008 para cá, perdeu 60 milhões de empregos, NÓS criamos 11 milhões;

    4) Certamente, somos um dos melhores exemplos, em termos mundiais, de DISTRIBUIÇÃO de renda;

    5) Proporcionalmente, temos tido uma das mais evidentes melhorias na qualidade de vida,

    Acho que a turma, que aí está no poder, pode não ter feito tudo certo, como não fez, mas deve ter acertado bem mais que errou, não é mesmo?

    • Dudu

      Coitado sabe de nada inocente! kkkkkkkkkk

  • João Paulo Rodrigues

    A crise econômica argentina vem da década de 1930, se não da anterior. Os dados que o autor retira referentes a 1946 escondem o papel da 2a Guerra e de reformas nacionalizantes anteriores a Perón que justamente facilitaram a emergência do parque industrial destacado no artigo.

  • Guilherme Santoro

    Todos os países latinos possuem uma mentalidade socialista enraizada na sociedade, e que tende a aflorar e desenvolver naturalmente. Justifica-se pelo fato de a maioria dos Estados latinos serem compostos por povos muito pobres, e então as “bondades” e assistências socialistas parecem muito atraentes. O que me deixa curioso é o fato do desenvolvimento socialista ter tido um espaço tão expressivo até mesmo na Argentina e no Uruguai. Se Perón tivesse fortalecido e institucionalizado regulamentações trabalhistas, como Vargas, seria compreensivo o povo argentino realmente amá-lo, porém o governo de Perón foi uma bagunça sem tamanho. Perón pode ter sido popular como Vargas, mas seu governo teve atitudes péssimas até mesmo para os trabalhadores. Perón sindicalizou o país de uma forma tão drástica e deturbada que os trabalhadores começaram a trabalhar menos, produzir menos, serem menos eficientes e o Estado ter de sustentar sacrificando seu superávit agrícula glorioso. Penso como que um país anteriormente bem mais escolarizado, urbano e de classe média pôde aprovar o início de seu fim com Perón e Evita. O resultado fora o mesmo visto em vários países latinos; Militares tomando o poder, alimentados pelo medo socialista. Depois os militares mantiveram uma base de crescimento na dívida externa e com investimento estrangeiro, que entrou em choque com as crises dos anos 80(principalmente do Petróleo). Com o fim dos governos miliares vieram os extremamente neoliberais, que erraram novamente na receita. E hoje, estamos novamente com os extremamente populistas, a lá Perón. Ciclo vicioso cruel dos latinos. Tão difícil é para os latinos crescer sem ser extremista, sem ser populista, sem ter vertente socialista, sem contrair dívidas absurdas com o estrangeiro.

  • http://fuieleitoeagora.blogspot.com.br/ Antonio Roberto Vigne

    Ótimo artigo, muito realista e bem fundamentado, o autor conhece realmente a história da Argentina e sua influência nas relações com o Brasil, parabéns! Estou recomendando a leitura deste texto!