Resenha de "Enquanto Deus não está olhando", de Débora Ferraz
Enquanto Deus não está olhando está na seara de livros recentes que têm como mote uma busca. No entanto, ao contrário de K., de Bernardo Kucinski, e Barreira, de Amilcar Bettega, centrados numa incursão paterna, no romance de estreia da jornalista pernambucana Débora Ferraz é a filha que tenta desvendar o paradeiro do pai.
Para tanto, Érica, no limiar entre a adolescência e a vida adulta, com aptidão para as artes plásticas mas que labuta a contragosto numa agência de publicidade, conta com a companhia de Vinícius, cuja lealdade insinua um interesse além da condição de amigos.
Ambos irão embarcar para o sertão nordestino, o fundo dos universos geográfico e íntimo do desaparecido, e, de relatos que trazem a lume recortes pretéritos, descobrir uma família aleijada por desaparições e orfandades, que por trás da ausência desse pai não há “uma árvore genealógica, mas uma imensa linhagem de vácuos”.
Narrada em primeira pessoa, a história é composta por fragmentos de observação que alternam passado e presente, encontrando em trechos de um diário a voz que humaniza as angústias e os devaneios não só da protagonista, mas daqueles afetados pelo sumiço.
A mãe “que parece ter emagrecido uns cinco quilos e envelhecido uns dez anos”, o irmão caçula inerte, aferrado à programação da tevê. Todos tomados pela falta absurda de um patriarca austero, doente por conta do alcoolismo e resistente ao tratamento médico.
O que legitima, portanto, essa fratura do arranjo familiar, o silêncio imperioso? O que é esse liame que faz com que uma filha saia à caça de um pai rude que a abandonou, que abandonou a todos misteriosamente?
O suspense é mantido até o fim da primeira parte, onde uma revelação configura completamente a estrutura do livro, contudo é posta com tamanha destreza que converte um risco tremendo numa instigante virada de enredo. Érica, e diretamente o leitor, percebe que nem toda busca ocorre da falta de despedida, mas da tentativa inútil de compreender um adeus não quisto. E, a partir daí, a história se revela um romance de formação.
Assim como a viagem atrás do pai que a liga a um espectro, a cacos do que esse homem foi, a protagonista se mostra emperrada a um passado fresco, incapaz de lidar com situações e decisões que cobram um passo adiante. Seja na solução de um vazamento de água, no destino do ateliê que montou na garagem da casa ou nas relações de trabalho, o apoio de Vinícius é cada vez mais conectado aos seus conflitos concretos e subjetivos.
Ele é quem a acompanha nos bares, nas festas, integra-a ao seu círculo de amigos. Érica não está só, afinal. Ali está uma geração presa a uma ideia de plenitude, vislumbrados por um futuro que lhes parece real, porém que não passa de um quadro abstrato.
Nesse ponto, ganha relevo um dos vários méritos da autora: a construção de diálogos críveis, capazes de significar um personagem por meio de suas falas. A prosa de Débora é lapidada, rica, estruturada por uma linguagem coloquial que, fortuitamente, ao tratar de jovens diletantes não se reduz. Ao contrário de Érica, a maturidade de Débora é evidente.
O vazio provocado pelo sumiço imprevisto do pai, aos poucos, vai sendo substituído por outro abandono, desta vez anunciado. Como abraçar um corpo de sentimentos, como tê-lo apertado contra si sabendo que logo irá se desvanecer, é a maneira de a vida se mostrar cíclica, para Érica, que passado e futuro se reprisam e se anulam, que o que resta é o presente, vivê-lo. Desaparecer nem sempre é uma fuga, pode ser um recomeço.
Por fim, é importante mencionar que o livro conquistou o Prêmio Sesc de Literatura de 2014, na categoria romance. Uma distinção mais que merecida para uma autora que, embora estreante, não deixa dúvida sobre sua capacidade de grande narradora.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
[email protected]