O problema surge quando instituições estatais passam a agir a partir de espaços de exceção, transformando este num modo natural de ação.
Schmitt é um dos primeiros filósofos do século XX a romper com a tradição que procura um lugar para o estado de exceção – para a própria exceção – dentro do Direito. Ele mostrou que a exceção não pode estar dentro do Direito, já que é impossível que a ausência de Direito tenha uma forma jurídica. Logo, a exceção é a própria suspensão do Direito. Mas, como tal, ela não é exterior àquilo que ela suspende, tendo ambos, exceção e Direito, uma relação íntima. Como instauração da anomia, ela não é destituída de relação com a ordem jurídica a qual ela suspende: nem dentro, nem fora. A exceção é o próprio limite fundante do (novo) Direito. Assim, a partir de sua intuição fundamental (“soberano é quem decide sobre o estado de exceção”), outros pensadores – especialmente Walter Benjamin e Agamben – puderam demonstrar o modo como a exceção se “infiltra” no Estado Democrático de Direito.
Este, por outro lado, pressupõe a existência de descompassos entre a validade das normas e a sua efetividade nas práticas jurídicas. Esse descompasso pode se dar em dois planos distintos: entre Constituição e legislação ordinária; ou entre o conjunto da legislação (Constituição e legislação ordinária) e as práticas jurídicas. Entretanto, deve existir um pleno funcionamento das instituições responsáveis por minimizar esse descompasso, em especial a jurisdição constitucional e o poder Legislativo. Isto é, o Estado de Direito pressupõe a existência de “inefetividades pontuais”, de pequenas exceções que sejam criticadas pelo pleno funcionamento das instituições (jurisdição constitucional, Legislativo, etc.).
Portanto, o problema aparece não com a existência de exceções, mas com a normalização dessas exceções. O problema passa a ser a criação de espaços inteiros de não efetividade do Direito, em especial da Constituição e de sua declaração de direitos. Ele aparece quando instituições estatais passam a agir a partir de espaços de exceção; ou seja, quando essas instituições tornam a exceção o seu modo de ação.
No dia 12 de julho, um dia antes da final da Copa do Mundo, o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª vara criminal do Rio de Janeiro, determinou a prisão temporária, por 5 dias, de 26 pessoas (e a busca e apreensão de 2 adolescentes). Antes, no dia 23 de junho, Rafael Lusvarghi e Fábio Hideki haviam sido presos em flagrante por associação criminosa e posse de artefatos explosivos ou incendiários. Um caso no Rio de Janeiro e outro em São Paulo mostram como as instituições governamentais – especialmente as polícias, o Ministério Público e o Judiciário, que há muito fizeram da exceção o seu paradigma de atuação institucional em relação aos mais pobres – estão estendendo esse modo de ação para a repressão a manifestações políticas. A exceção está cada vez mais se normalizando.
Podemos perceber essa normalização pela frequência das ilegalidades e inconstitucionalidades nas ações dos órgãos estatais nestes dois casos: a investigação de pessoas e não de condutas, isto é, faz-se uma devassa na vida de alguém até descobrir algo que possa ser utilizado para incriminar ao invés de proceder-se a uma investigação de um fato específico; a prisão de pessoas antes de iniciada a execução de atos definidos em lei como crime, em verdadeiro exercício de futurologia; a extensão do segredo do inquérito à defesa, enquanto trechos selecionados e fora de contexto são vazados à imprensa; a prisão de advogados no exercício da profissão, em clara afronta ao estatuto da advocacia; a realização de escutas violando o sigilo de comunicação entre advogado e cliente; a realização de denúncia genérica pelo MP que não individualiza a conduta de cada um dos réus, impossibilitando a defesa; a negativa de acesso a documentos pela polícia, mesmo a membros do judiciário; a denúncia de advogados por não cobrarem honorários, prática utilizada pelo regime militar, conforme lembrado pelo professor Pádua Fernandes; e o procedimento relâmpago de conclusão do inquérito pela polícia, oferecimento da denúncia pelo MP, e recebimento desta pelo Judiciário.
Este rol, apenas exemplificativo, de ilegalidades cometidas nestes casos não é formado de erros isolados, mas constitui parte de uma ação sistemática das forças de segurança. Podemos nos deter em duas ilegalidades comumente cometidas para mostrar isso: o uso da prisão temporária; e a insistência em decretar a prisão preventiva sem que isso seja absolutamente necessário.
A prisão temporária foi criada logo após a Constituição de 1988 em resposta a uma demanda da polícia judiciária do país todo, que se sentiu tolhida em seus poderes de investigação por não poder mais “prender para averiguações” e ter o suspeito sob seu poder durante toda a investigação. Assim, o então presidente José Sarney editou uma medida provisória para criar essa espécie de prisão – violando o art. 22, I (que estabelece a necessidade de lei sobre matérias de direito penal e processual penal). Basicamente, ela busca obrigar o preso a colaborar com a polícia e com a investigação através da legalização da tortura (ainda que psicológica), sendo um expediente que nunca encontra sua justificação constitucional, violando o direito ao silêncio e a não colaboração (nemo tenetur se detegere) (art. 5º, LXIII), e contrariando a doutrina constitucional da excepcionalidade da prisão (art. 5º, LXI). Além disso, o fato de os tribunais fazerem vistas grossas às óbvias inconstitucionalidades dessa modalidade infraconstitucional de prisão corrobora o nosso argumento da normalidade da exceção.
A segunda ilegalidade é o uso da prisão preventiva mesmo quando outras cautelares – como a obrigação de se apresentar ao juízo, ou a entrega de passaportes – seriam suficientes para garantir a execução da lei penal. Ou ainda, quando ocorre a decretação da prisão preventiva para manutenção da ordem pública ou da ordem econômica, termos tão abertos que não permitem a justificação constitucional da prisão preventiva, tornando-se aberturas para a arbitrariedade e a exceção. Assim, em caso de prisão em flagrante, por exemplo, recente estudo aponta que a maioria dos juízes prefere a decretação da prisão preventiva, ao invés da adoção de outras cautelares. Por isso, é extremamente comum a prisão de quem não deveria ser preso (por inexistência de elementos que justifiquem a prisão) e, logo após, a concessão de habeas corpus pelos tribunais de justiça ou superiores.
Por isso, concordo discordando (ou discordo concordando) do texto do Paulo Roberto Silva publicado aqui no Amálgama: realmente não podemos dizer que se trata de um estado fascista ou de um estado de exceção (tal qual tivemos entre 1964 e 1985), para não corrermos o risco de minimizarmos o que foram o Estado nazista alemão ou o Estado fascista italiano. Entretanto, acredito que é o caso de superarmos essa oposição tão estanque (isto é ou isto não é) e vermos a real natureza da exceção no Estado de Direito. Assim, já que o Direito, conforme Hume, é prática, isto é, suas regras tornam-se obrigatórias pela sua própria observância, preocupa também a normalização de certos modos de ação que se traduzem como exceção ao Direito. Isto porque a história nos ensina que mesmo o Estado nazista alemão começou através da insistência da exceção na República de Weimar (com o abuso do art. 48 da Constituição de 1919).
Concluímos, pois, que o processo penal brasileiro (investigação preliminar inclusa) é muito pouco democrático em suas práticas e opaco a mudanças. Embora algumas melhoras tenham acontecido com o tempo, a demora nas mudanças legislativas necessárias e a timidez do judiciário (especialmente STJ e STF) em adequar a legislação à Constituição (e não fazer o contrário, como frequentemente tem acontecido) são os principais fatores que explicam esse déficit democrático.
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Paulo
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Hugo Silva
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