O nascimento de novas forças políticas de esquerda é parte da democracia
Um dos não-argumentos usados algumas vezes pela militância petista para buscar tomar votos da esquerda que poderiam ir para PSOL, PSTU ou PCB é comparar a situação do Brasil com o panorama eleitoral espanhol. Como muitos sabem, PP e PSOE são partidos que se alternam em um bipartidarismo de facto na Espanha desde a chamada redemocratização e, no fim, ambos representam interesses muito semelhantes, assim como PT e PSDB no Brasil. A única diferença, talvez, é que o PSOE, diferentemente do PT, ainda se diferencia um pouco de seu adversário imediato em temas ligados a direitos das mulheres e LGBTs. Mas, fora isso, os projetos e modos de governar são os mesmos.
O não-argumento é que votar na esquerda prejudicaria o PSOE/PT (que seus membros e apoiadores ainda insistem ser também de esquerda, mas “presos” em uma correlação de forças cruel); logo, a “culpa” pelo PP ter vencido as eleições gerais espanholas de 2011 teria sido da esquerda que se recusou a votar no PSOE, ou mais especificamente dos milhões de espanhóis (além de galegos, catalães, bascos etc.) que tomaram às ruas formando o movimento dos Indignados ou 15M.
Vejam o não-argumento em ação:
Alguns militantes inexperientes, de boa-fé, acreditam que o jogo eleitoral é uma farsa, que não representa mais ninguém, é o mesmo raciocínio que levou os “Indignados”, da Espanha, ao boicote das eleições em 2011, que redundou na maior vitória da Direita espanhola, Rajoy, da ala mais radical e religiosa do PP, venceu com ampla vantagem, agora aplica o mais duro ajuste econômico da história da Espanha, ou seja, piorou em muito a situação dos trabalhadores e do povo. O simples boicote ou desacreditar a Democracia em nenhum lugar levou a avanço, ao contrário, a descrença, leva ao retrocesso.
De forma clara, diz-se que o PP venceu por culpa de quem se recusou a votar no PSOE, buscando, das ruas, criar novas alternativas políticas.
Primeiro, não querer votar numa força política que cada vez menos se diferencia do adversário é uma opção política válida; e, segundo, buscar nas ruas uma alternativa é legítimo e cada vez mais, até, necessário. Mas, mesmo assim, a ideia de que “as ruas” derrotaram o PSOE e deram ao PP a vitória é simplesmente falsa.
No caso da Espanha a alternativa política se configurou em torno do projeto do PODEMOS, que se tornou a quarta força no país durante as eleições europeias de 2014. O medo destes petistas é que a história se repita por aqui – que a esquerda se recuse a apoiar o PT e o PSDB ganhe. Mas vai além: é o medo de que as ruas possam também no Brasil criar uma alternativa eleitoral viável ao PT.
A grande questão que coloco é que as premissas dos petistas estão, em geral, equivocadas.
Em primeiro lugar é preciso analisar o que levou o PSOE ao poder na Espanha nas eleições gerais de 2004: a mentira contada pelo então premier José Maria Aznar às vésperas da eleição, de que a ETA teria sido responsável pelas bombas nos trens em Madrid. Esta mentira custou ao PP uma eleição certa. O PSOE, com Zapatero, acabou eleito não porque fosse melhor ou o preferido, mas como uma punição ao PP por sua mentira descarada e eleitoreira. O PSOE conseguiu se sustentar na eleição seguinte (2008), mas com uma pequena margem, até ser derrotado em 2011.
Uma rápida olhada na participação de eleitores e na votação dos principais partidos deixa claro que o “efeito Indignados” não foi responsável pela derrota do PSOE, que fez um governo péssimo na visão de milhões de espanhóis.
Na eleição de 2004, aquele em que Aznar mentiu e fez seu sucessor, Mariano Rajoy, perder, houve um aumento de 10% na participação (75,66% do total). Na eleição seguinte, onde Zapatero foi reeleito, a participação se manteve estável, apenas 0,4% a menos. Porém, na vitória de Rajoy, em 2011, sobre o candidato “socialista” Alfredo Rubalcaba, a participação caiu 4,8%. Mas esta queda é ínfima se comparada à queda de 38% (trinta e oito por cento) dos votos do PSOE. Isso sem contar o crescimento em 30% dos votos da conservadora e nacionalista catalã CiU (Convergència i Unió), os 74% a mais de votos da Izquierda Plural (nome então da Esquerda Unida) ou os 273% (!) a mais dos neofascistas da UPyD, apenas para citar os partidos com mais de um milhão de votos naquela eleição.
Como se vê, as eleições de 2011 foram um primeiro passo, tímido, contra o bipartidarismo espanhol, que as eleições europeias deste ano comprovaram (ou ao menos deram um indicativo de longo prazo), e de forma alguma apenas reflexo dos Indignados, ainda que, sem dúvida, estes tenham tido algum papel. Os votos do PSOE foram pulverizados – alguns foram para a abstenção enquanto outros foram espalhados à esquerda e à direita.
É preciso ainda lembrar que os Indignados, representados em boa parte hoje pelo PODEMOS, orbitam à esquerda do espectro político, mas não apenas o PP teve um crescimento de apenas 5%, como partidos claramente de direita ou extrema-direita também tiveram um crescimento consistente (CiU e UPyD).
O PSOE perdeu votos, muitos votos, mas em geral o PP manteve seu antigo patamar eleitoral, na casa dos 9-10 milhões de votos – ao passo que o PSOE voltou ao patamar das eleições de 2000, quando perdeu para Aznar. Não é desprezível, ainda, as movimentações eleitorais na Catalunha, por exemplo, durante esse período histórico.
Para além de todos esses números, duas coisas saltam aos olhos: aparentemente, o bipartidarismo espanhol perde fôlego; e o PSOE foi punido não porque surgiu uma nova opção de esquerda ou porque as ruas se recusaram a votar no partido, mas porque havia feito um governo ruim – apenas por isso. O PP não teve um crescimento considerável, o PSOE que despencou. E outras forças políticas também cresceram.
O resultado das eleições europeias deste ano, aliás, deixam clara a tendência contrária à manutenção do bipartidarismo e também de queda do PSOE e mesmo do PP, assim como as encuestas para as próximas eleições gerais espanholas, em 2015.
Algo, ainda, que surge no horizonte é a possibilidade de uma coalizão entre PODEMOS e Izquierda Unida superar o PSOE em votos e em presença parlamentar e superar mesmo o PP, forçando dois cenários. No mais provável, haveria uma união entre PP e PSOE, baseado em agendas mínimas (pró-capital e pró-troika, deixando temas sociais em banho-maria). No cenário menos provável, nasceria um governo de minoria do PODEMOS+IU, com o PSOE e PP na oposição, sendo a primeira mais light e a segunda mais dura – enfim, um governo sem estabilidade e sujeito e crises permanentes.
Pode-se conceber uma terceira opção, mas dificílima de se concretizar, que seria uma coalizão PODEMOS+IU+PSOE. Difícil tanto pela possível negativa do PSOE em ceder a liderança, quanto pelo programa ideológico não combinar, afinal o PSOE é esquerda em grande parte apenas no papel e as práticas contradizem a teoria o tempo todo.
Sem dúvida o panorama eleitoral espanhol pode ainda mudar, faltam ainda meses para as eleições e é visível a oscilação das intenções de voto da população. Pelo caminho ainda teremos o referendo pela independência da Catalunya – que pode alterar completamente o panorama político espanhol – e muitas manobras e jogadas políticas. A certeza, porém, é que há uma tendência ao fim do bipartidarismo espanhol, e que a “culpa” não é de um ou outro partido, mas resultado de um conjunto de ações e mobilizações que não vêm de hoje.
Outra certeza, esta final e inconteste, é que o uso político e mesmo eleitoreiro por parte de militantes do PT do “exemplo PODEMOS” ou do “exemplo Indignados” não apenas não cola, como não procede. Beira a pura canalhice política, na tentativa de impedir que novas alternativas políticas nasçam das ruas e possam desafiar a soberania do PT que, como o PSOE, é mais de esquerda no papel do que nas práticas – algumas francamente de extrema-direita.
O nascimento de novas forças políticas de esquerda é parte da democracia; no caso da Espanha como no do Brasil, é algo positivo, vindo para oxigenar estruturas viciadas e mesmo cooptadas, dando nova força a movimentos de rua e sociais que não se submeteram ou sucumbiram. A tese de que o “boicote” às eleições espanhola foi decisivo para a vitória da ala mais radical de direita do PP é falso e não se sustenta a uma simples olhada nos números totais de votantes, e se sustenta menos ainda quando analisamos não apenas o governo anterior do PSOE à luz da crise, mas seu processo irreversível de direitização.
O problema para estes petistas fanatizados é que sentem o medo que hoje muitos no PSOE sentem: o da obsolescência, de perder espaço e poder, de serem atropelados em seu próprio jogo.
Raphael Tsavkko Garcia
Formado em Relações Internacionais (PUC-SP), mestre em Comunicação (Cásper Líbero) e doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto).
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