Sobre memórias, palavras e racismo: macaco, não

Não são apenas as atitudes que cristalizam todo tipo de preconceito em nosso cotidiano, mas também e principalmente as palavras.

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A foto acima reúne alguns dos caras que fizeram minha infância, adolescência e vida adulta (no caso desta, bem menos, porque a coisa anda feia ultimamente) muito mais emocionante. Vê-los ali, no estádio, correndo, driblando, chutando, deixando o sangue em campo, me fazia admirá-los e respeitá-los não apenas como atletas, mas como seres humanos. Me fazia entender que nem sempre se pode ganhar e que pode haver orgulho mesmo na derrota, desde que haja respeito, vontade, superação. Me fazia ter um sentimento de comunhão verdadeiro com pessoas de outros credos, outras etnias, outras visões políticas, num mundo em que isso parece cada vez menos possível. Me fazia sorrir quando, nas centenas de campos enlameados e esburacados pelos quais passei ao longo da vida, eu corria em direção aos amigos, segurando e beijando o escudo na camisa e imaginando que eu poderia ser um daqueles heróis, qualquer um deles. E naqueles efêmeros segundos eu era. E para um filho de mãe solteira, cuidado pela avó, cheio de angústias e medos com relação ao futuro, morando muitas vezes em lugares que cerceavam qualquer possibilidade de sonhar, aquilo ali era muito, muito mesmo.

Aprendi, mais tarde, que muitos daqueles admiráveis seres humanos tinham prazo de validade. Muitas vezes tinha que suportar vê-los, de uma hora para outra, com a camisa do grande rival, beijando-lhe o escudo com a mesma paixão com que outrora eu, fingindo que era um deles, beijara o da minha desbotada número 7. Aprendi, portanto, que futebol é arte, é paixão, é sentimento, mas é mercado, é capital, é negócio também. Entretanto, nada disso – nem os pontos positivos, nem os negativos – influenciou na decisão que um dia, há 20 anos, resolvi tomar.

Ia, acompanhado de alguns amigos, ao estádio pela segunda vez. A primeira tinha sido quando criança e não lembrava de muita coisa. Era dia de Grenal. É difícil explicar a um leigo como é a atmosfera em dias assim. Há um misto de tensão e euforia que parece estar impregnado em cada molécula de oxigênio do ar. Esse sentimento, somado a uma quase histeria que as grandes coletividades tendem a apresentar, é sempre o estopim para espetáculos abomináveis. Essa, resumida, é a história da humanidade. Pois, a duas quadras do estádio, encontramos um grupo de torcedores do rival. O primeiro insulto que ouvi em direção a eles foi “macacada”. Havia um único negro entre aqueles meninos, mas entre nós, que éramos dez, havia quatro. Chamei de lado um deles e comentei que aquele era um termo racista. Ele me disse “E daí? Eles são colorados, meu!”. Eu não entendi a lógica, mas rapidamente entendi que era a mesma dos outros oito do meu grupo, a mesma talvez da esmagadora maioria das pessoas que usam esse vocábulo.

Depois desse dia, discutíamos muito sobre ele. Ouvíamos versões sobre sua gênese, principalmente sobre o famoso estádio da Rua dos Eucaliptos – que tinha arquibancadas em um dos lados e árvores no outro, utilizadas por muitos torcedores para ver o jogo com vista privilegiada –, que teria sido o ignitor desse apelido. Não interessava. Eu e dois outros amigos daquele grupo tomamos então, a partir dessas discussões, uma decisão: não usaríamos mais essa palavra. Inventaríamos outras, chamaríamos de “bobos, feios, chatos” (em versões adultas e pornográficas), chamaríamos de qualquer coisa (e é óbvio que nossa consciência a respeito de questões de gênero ainda não era madura o suficiente para abandonarmos os epítetos que se referiam à homoafetividade), mas nunca mais de “macacos”. Pouco depois disso, acabei me mudando para outra cidade e não nos falamos mais.

Aquela decisão não foi fruto de nenhuma elevada consciência humanística ou de um louvável sentimento de compaixão pelo próximo. Foi uma decisão baseada na lógica, na discussão, no conhecimento. Mesmo muito antes de me decidir pelo curso de Letras, eu já sabia que não são apenas as atitudes as ferramentas para cristalizarmos todo tipo de preconceito em nosso cotidiano, mas também e principalmente as palavras. Então, usar termos racistas, com ou sem intenção de praticar o racismo, me torna um racista? Sim, com toda a certeza. Mas há outra coisa que te torna um racista: a conivência. Ser conivente é a forma mais covarde de se perpetuar o racismo. É a maneira mais prática de permitir não apenas que ele se alastre, mas que ele faça morada aí, do teu lado, no teu bairro, na carteira ao lado da tua na escola, no espaço ao lado do teu na arquibancada. O objetivo deste texto, porém, não é te acusar de racismo por inércia. Qual é, afinal?

Duas décadas se passaram desde que eu, torcedor do Grêmio, decidi não mais utilizar a palavra “macaco” para designar os torcedores do Internacional. Tomei essa decisão porque nenhuma explicação ou mito de origem me afastou da certeza de que é um termo racista e é sim utilizado, consciente ou inconscientemente, para esse fim. Há apenas negros na torcida colorada? Não, mas não interessa. Não é a cada indivíduo que o xingamento se dirige, é a uma coletividade e, mais do que isso, à representação que se faz dela: negros, pobres, inferiores, inimigos. Minha decisão é, portanto, não apenas uma escolha que visa a combater o racismo dentro da torcida gremista – que tem, infelizmente, muitos racistas em suas fileiras–, mas também uma forma de respeitosamente honrar as boas memórias e os tácitos ensinamentos que os homens, negros e gremistas, dessa foto já me deram.

Não quero que a melancolia dos amores perdidos que o grande compositor negro e gremista Lupicínio Rodrigues (autor do hino do clube) sempre cantou em seus versos vire uma diagnosticada depressão pelo bom senso perdido. Não tenho nervos de aço para tolerar a ignorância racista. “Eu só sei é que quando a vejo/ Me dá um desejo/ de morte ou de dor”. Não quero que as palavras na boca dos idiotas manchem essas lembranças. Gostaria imensamente que essa decisão, a de erradicar o racismo no futebol, nas palavras, na vida, fosse tua também.



  • João Paulo Rodrigues

    Muito bom texto.

    • Sandro Brincher

      Obrigado, João Paulo. Abraço!

  • Marco Vomitorâmico

    =D isso aí Sandro! Que exemplo. Que inteligência. Que sorte.

    • Sandro Brincher

      Obrigado pelas palavras e pelo apoio, Marco. É bom saber que há mais gente que pensa assim. :-)

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