Entre a postura anárquica de outrora e o partidarismo cafona, nossos artistas parecem não ter dúvidas em abraçar o segundo.
É dia e as pessoas marcham nas ruas de blusa amarela. É noite e elas batem panela para não deixar a cidade dormir. É 1984, mas facilmente poderia ser 2015.
Poderia. Porque o autor dos versos que até hoje resumem os comícios pelo fim da ditadura já não mais protesta. Pelo contrário, Chico Buarque surge em horário eleitoral pedindo voto para o governo que protagonizava o até então maior escândalo de corrupção conhecido no país.
Foi-se o tempo em que a esquerda pregava um novo dia com as rimas de “Apesar de Você”. Atualmente prefere distorcer o noticiário com a prosa do Apesar da Crise. É com essa fan page que se vende a ideia de que o recuo do PIB de quase 3% e o sumiço de um milhão de postos de trabalho não seriam reflexos de uma recessão, mas de uma engenhosa manipulação da imprensa.
Nos raros casos em que se embebe de coragem, aquele garoto que iria mudar o mundo no máximo assiste a tudo de cima do muro. É o que as redes sociais passaram a chamar de “isentão”, ou o indivíduo que, na falta de argumentos para defender o governo, tenta vender que ambos os lados são podres e não há como tomar atitudes, pois seria o mesmo que defender um deles.
Why so serious?
Triste mesmo, no entanto, é notar que a classe artística, na hora de escolher entre a postura anárquica de outrora e o partidarismo cafona, parece não ter dúvidas quanto ao segundo.
“Dilma é a presidente mais impopular da história, mas não há um comediante a zoando. É um cenário muito estranho esse em que vivemos.” A constatação vem do Twitter de Danilo Gentili. Rara exceção a essa estranha regra, o humorista se mostra como um incansável crítico do governo. Talvez por isso já colecione mais de 11 milhões de seguidores na rede social.
Contudo, nem sempre foi assim. Nos anos 90, o humor brasileiro não perdoava as lambanças cometidas por quem quer que estivesse no poder. Por motivos óbvios, o alvo principal findou sendo Fernando Collor mesmo. Ao ponto de celebrar-se um lúdico assassinato do presidente nos versos de Gabriel, o Pensador:
Começou o funeral e o povo todo na moral
Invadiu o cemitério numa festa emocionante
Entramos no cemitério cantando e dançando
E o presidente estava lá já deitado nos esperando
Todos viram no seu olho a bala do meu três-oitão
E em coro elogiamos nosso atleta no caixão:
“Bonita camisa Fernadinho
Você nessa roupa de madeira tá bonitinho!”
Em menos de uma semana, o ministério da Justiça censuraria o rapper carioca.
Mas os ataques ao presidente vinham de todos os lados. Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo e Jô Soares lançaram o Humor nos Tempos do Collor. O gordo mais famoso do Brasil, inclusive, manteve em seu programa (ainda no SBT) uma postura tão combativa ao morador da Casa da Dinda que findou por inspirar outros artistas a convocar seus próprios protestos quando da abertura do processo de impeachment.
Nem a Rede Globo evitava o bullying contra o Planalto. Em horário nobre, era o Casseta & Planeta quem dava às alternativas ao irmão denunciado por Pedro Collor: demissão ou rua.
Vinte e três anos depois, a postura da classe artística soa irreconhecível.
Gregório Duvivier, do Porta dos Fundos, surge no site do próprio partido apoiando o PT (agora, ele dá a entender que está rompendo com o partido; claro que à maneira esquerdista: terceirizando a culpa ao sistema, igualando-o aos antecessores e reclamando do que podemos chamar de “escassez de petismo”, como se não fosse justamente o excesso disso o que deixou o Brasil na atual situação).
Luis Fernando Verissimo não vê problema em defender José Dirceu mesmo diante das acusações de enriquecimento pessoal ilícito quando ainda arrecadava doações para a multa pelos crimes cometidos no Mensalão.
Jô Soares, além de blindar Dilma com suas intervenções, ataca Aécio Neves que, à época, ainda parecia querer o impeachment da petista.
Também na Globo, o Zorra, em vez de bater na presidente mais impopular de todos os tempos, prefere partir para cima dos cidadãos que participaram dos protestos de rua – mesmo com a esmagadora maioria dos manifestantes (85%) defendendo não haver melhor forma de governo do que a democracia.
Quem te viu, quem te vê
PC Siqueira, Pitty, Tico Santa Cruz, Emicida, José de Abreu… A lista dos artistas que vão para a linha de frente defender o PT – e tantas vezes atacar seus críticos – é enorme e enfadonha.
Mas bem aos poucos a fase do luto migra da negação e raiva para a barganha e depressão. Nos casos mais recentes, Juca Kfouri confessa a decepção com José Dirceu. E Tati Bernardi, também em coluna para a Folha, já não sabe mais como é possível continuar petista diante de todos os fatos hoje conhecidos. Se um dia chegarão à quinta e última etapa (aceitação), só o tempo dirá.
O que se sabe até aqui é que já aconteceu para alguns. Lobão, marcado por pedir voto a Lula em pleno Domingão do Faustão nas eleições de 1989, foi um dos primeiros a mudar de lado. Lulu Santos, que muito se indignou com o fato de as duplas sertanejas terem pedido voto para Collor, parece ter perdido a paciência com o derrotado naquela eleição. Roger Moreira, autor de outro hino de um Brasil que queria se livrar da ditadura, atualmente passa o dia no Twitter tentando se livrar do petismo. O “casseta” Marcelo Madureira é agora colaborador do Antagonista, possivelmente a publicação mais oposicionista do país.
Hoje ainda é a esquerda quem manda, mas há solução. Todavia, é uma pena que as tensões políticas, que em outros tempos serviam de inspiração para a criação de tantos clássicos, pareçam podar vozes graças a ultrapassados apegos ideológicos. Em alguns casos, até mesmo à dependência de verba pública para a concretização de determinados projetos.
Entretanto, cabe alertar que esta é uma fase de transição pela qual o país passa. E justo uma fase minuciosamente documentada pela internet e suas redes sociais. É preciso escolher bem em qual lado ficar. Porque amanhã vai ser outro dia, apesar de Chico Buarque. Amanhã vai ser outro dia, apesar do PT.
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publicado inicialmente no Ápyus.com
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