As elites progressistas aderem ao PSDB ou ao PT como guia para o novo, para o avanço do país
1.
Entre 1969 e 1970, logo após a intervenção militar de 1964, o crítico literário Roberto Schwarz observava a hegemonia da cultura de esquerda mesmo no que ele chamava de “santuários da cultura burguesa”. A ditadura militar era tecnicista, tinha certa inspiração pretérita do positivismo nas fileiras do exército e se movia pelo medo da ameaça comunista. Todavia, a hegemonia de esquerda se consolidava diante da resistência ao regime.
No plano cultural, as ideias progressistas sempre tiveram predominância entre as elites brasileiras desde o início do período republicano. O triunfo do nacional-desenvolvimentismo entre o Estado Novo e a República Populista (1945-1964) fortaleceu as ideias socialistas no seio dessas elites, onde o marxismo passava a ter mais importância.
Nesta época, o PCB era um dos centros da atividade intelectual. Muitas revistas e jornais eram lançados. Entre os principais responsáveis estavam Pedro Pomar e Jorge Amado, que destacavam seu apoio à literatura e às artes modernas no Brasil. Para estes, elas eram símbolo da liberdade, da ciência, da arte de vanguarda que traz progresso e o aperfeiçoamento da civilização. Outros comunistas destacados eram Graciliano Ramos, Astrojildo Pereira e Cândido Portinari. Outros intelectuais que não eram comunistas, mas progressistas, chegaram a ter contato com o partido durante sua vida, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
No tensionado governo João Goulart, a hegemonia de esquerda era expressiva na cultura, com destaque para as ideias socialistas com diferentes apropriações. Durante o regime militar, esse quadro não só não se alterou como foi intensificado. No ocaso do regime, a hegemonia da esquerda na cultura e na intelectualidade era devastadora.
Durante as campanhas pelas diretas em defesa da reabertura política, esta hegemonia na elite letrada e artística aproximou-se das elites políticas e econômicas. O regime militar era um cadáver insepulto, não combinava mais com o ideal do progresso, ao mesmo tempo em que o medo do comunismo tinha arrefecido.
O governo Sarney funcionou como uma transição para ordem democrática. A antiga ARENA, braço de apoio ao regime militar, transformou-se em PDS (por influência do SPD alemão, um partido social-democrata). A liderança de Paulo Maluf e sua indicação à disputa do Colégio Eleitoral de 1985 criou um racha, de onde nasceu o PFL.
Um estudo sobre as inspirações políticas do que sucedeu a ARENA prova a hegemonia da esquerda na discussão pública do país. O braço de sustentação do governo militar transformou-se em PDS, por influência da social-democracia alemã, durante o governo Geisel, que tinha um claro viés de esquerda. Em 1993, transformou-se em Partido Progressista Renovador (PPR), e depois em Partido Progressista Brasileiro (PPB) e Partido Progressista (PP). O PFL transformou-se em DEM (Democratas) por influência do Partido Democrata americano, identificado com a esquerda.
O regime militar era tecnicista, progressista, populista e apelava para o medo e temor a outros regimes autoritários. No início, seus políticos ligavam a elite progressista ao populacho. Quando virou ruína, o que sobrou resolveu apelar para o tecnicismo, o pós-ideológico, o progressismo material, voltou-se para o populacho e jamais teve qualquer chance de eleger um presidente por seu descolamento das elites progressistas.
O fim do regime militar marca um novo período da República. O principal partido de oposição e de esquerda era o PMDB. Entretanto, existiam outros: PTB, PSB, PCdoB, PCB. O PMDB era muito influente na elite política e econômica; representava uma transição segura que colocaria o país no rumo do progresso. Mas, nesse período, nascia o Partido dos Trabalhadores (PT), uma combinação de três elementos: a) movimento sindical, b) braço socialista da Igreja Católica ligado à teologia da libertação e c) antigos intelectuais, líderes estudantis ou artistas, alguns deles exilados ou ex-combatentes da guerrilha. As elites políticas, midiáticas e econômicas viam o PT como um partido simpático, mas radical. Todavia, dentro da elite intelectual e artística, ele tornava-se dominante. Seu crescimento era uma questão de tempo.
O PMDB assume o governo do país durante a transição até a primeira eleição direta após a redemocratização, que se daria em 1989. Com os altos e baixos da economia e com os problemas de sua articulação política com o PFL, viveu entre o entusiasmo e a decepção, mas guiou o país no início do consenso que marca a Nova República. O PMDB substituiu a antiga ARENA na ligação que fazia entre a elite progressista e o populacho.
O grande marco que inicia a Nova República dá-se com a Constituição de 1988. Mesmo num período de desmonte do Welfare State, e possuindo certos hibridismos, a nova Carta tinha clara influência social-democrata, promovendo a igualdade como extensão da liberdade, o conceito de justiça social, etc. Ela representava o predomínio das ideias progressistas e da esquerda entre nossas diversas elites.
A Constituição de 88 só foi possível graças ao chamado “centrão”, que articulava uma constituição liberal-progressista sem que se caísse em formulações radicais socialistas ou naquilo que se enxergava como atraso. Naquele mesmo ano, um grupo dissidente do PMDB, que lhe acusava de imobilismo, fundou o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). Entre os fundadores, estavam Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Serra e outros nomes históricos ligados à esquerda.
2.
A eleição de 1989 foi emblemática na construção da Nova República. Antes, quem fazia a ponte entre as elites progressistas e o populacho era a aliança entre PTB e PSD e o carisma de Getúlio Vargas ou JK. Com as tensões do governo Goulart e suas ameaças de ruptura, foram os militares que representavam no início do regime militar essa aliança. O regime desgastou-se, a ARENA perdeu a discussão pública, o amparo de partes importantes das elites e, principalmente, a crença que representava o progresso da nação; seus políticos perderam o laço entre a elite progressista e o populacho e se voltaram para o segundo, para o domínio local – os caciques de que nenhum presidente, governador ou prefeito pode abrir mão para governar.
O mesmo ocorre com o PMDB. Durante o governo Sarney, o PMDB perde a primazia do progresso. Antes ele representava o novo, era o símbolo do progresso da nação, tinha alguma simpatia mesmo de partes das elites ligadas ao PT. A criação do PSDB foi o golpe de misericórdia. Assim como a antiga ARENA, o ex-MDB voltou-se para o domínio local, tornou-se uma confederação de caciques regionais que garantem a governabilidade. Uma maldição, um estorvo, o atraso para as elites progressistas, mas, por representar o populacho, o Brasil profundo, garante a governabilidade.
PMDB, PDS e PFL estavam desgastados quando a eleição de 1989 chegou. Não eram mais respeitados pela parte de cima da sociedade, aquela da opinião publicada, da minoria barulhenta, dos acordões e compadrios entre empresários e políticos, etc. Tampouco, mantiveram apoio popular com a crise econômica e política. Então, ocorre a disputa entre duas maneiras de lidar com o progresso.
Vindo de Alagoas, Fernando Collor de Mello representava, segundo o próprio, o novo contra o velho. A queda do Muro de Berlim tinha acabado de ocorrer, e Collor se apresentava como representante da sociedade do futuro: pós-ideológica, da administração racional. Ele simbolizaria o progresso do mundo ocidental, acima das antiquadas distinções entre direita e esquerda, entre capitalismo e comunismo. O alagoano seria um caçador de marajás, o terror dos velhos políticos, o representante do avanço econômico que eles impediriam.
Novamente, Collor não é de direita, mas um tipo de progressista diferente da esquerda. Ele acreditava no livre mercado e na abertura econômica, porque isto lhe parecia o símbolo do novo com a ascensão dos chamados “governos neoliberais”. Ele jogava com o populacho ao se apresentar como um antipolítico que jogaria duro com os antigos dinossauros. Ao mesmo tempo, cativava a elite econômica com sua verve pós-ideológica, tecnicista, jovem, aberta a acordos e ao desenvolvimento do mercado e do capital.
Do outro lado, uma corrida entre diversos candidatos para ver quem seria o representante do progressismo da esquerda. Brizola pelo PDT, Lula pelo PT e Covas pelo PSDB eram os principais postulantes. Destes, foi para o segundo turno o candidato mais radical. Lula era paparicado pela imprensa (mesmo pelos que o tinham como radical) por ser a primeira liderança radical, o que dava certo conforto a todo progressista: agora, já conseguimos produzir um líder operário, como as nações desenvolvidas. Além disso, o PT tinha a sustentação do grosso da elite intelectual e da elite artística do país.
Como o próprio Lula já afirmou, a sua derrota não foi obra da elite, mas da falta de confiança do povo. Foi o populacho que lhe tirou a vitória, apesar de todo apelo de famosos, artistas, intelectuais e jornalistas, que usavam e abusavam de todos os meios para tornar sua imagem empática. Lula perdeu principalmente porque não oferecia uma ligação com o populacho. Ele era um homem da beautiful people, das elites progressistas (menos da econômica), dos intelectuais que gostam de falar em nome do povo.
Após a redemocratização, a esquerda tinha ampla hegemonia cultural e intelectual. Faltava estender essa hegemonia a toda a elite progressista – faltava-lhe a hegemonia política e econômica. A Constituição de 1988 foi o primeiro ensaio do consenso social-democrata que marca a Nova República, mas foi o processo de impeachment de Collor que fechou o processo.
O caçador de marajás que se apresentava como novo era um político inábil e seus próprios interesses não-republicanos eram apenas pessoais e de curto prazo. Collor não tinha projeto de poder, nem apoio do Congresso, da imprensa, das elites progressistas e do populacho. Em pouco tempo, as elites progressistas tornaram-se unânimes no apoio ao seu impeachment, crentes de que não traria dissabores maiores. O impedimento do presidente foi festejado como vitória da democracia.
3.
O governo Itamar é de readequação nacional. O PSDB ganha destaque no comando da economia e resolve o problema da inflação. Fernando Henrique torna-se candidato favorito para as eleições de 1994. É nesse período que se cristaliza o sentido da Nova República.
O PSDB e Fernando Henrique aparecem como uma “terceira via”, uma social-democracia renovada, pronta para responder o desafio imposto pela ascensão “neoliberal”. Em 1995, quando o Partido Trabalhista inglês volta ao poder, o primeiro-ministro Tony Blair precisou alterar o programa histórico do seu partido, inaugurando o novo trabalhismo. O sociólogo britânico Anthony Giddens afirma que a terceira via é a social-democracia modernizada. Em termos gerais, ela defende a aplicação do liberalismo econômico com conceitos social-democratas. Uma espécie de liberalismo social. O conceito de terceira via passou a ser utilizado para identificar uma centro-esquerda moderna, que tem consciência da racionalidade econômica a que a administração pública deve estar servindo, com controle dos gastos públicos, privatizações necessárias e política monetarista, embora, ao mesmo tempo, continue com agências regulatórias e aplicando políticas sociais de distribuição de renda, além de políticas culturais socialistas ou progressistas.
Fernando Henrique ascende ao poder neste momento. Seu projeto modernizado de social-democracia conquista a simpatia da elite econômica, e é vista como submissão ao neoliberalismo e desmonte do Estado por outras parcelas das elites progressistas, mais ligadas ao PT.
Essa é a polaridade que se forma na Nova República, uma polaridade que iremos encontrar em todos os partidos de esquerda nas democracias ocidentais, e que, no Brasil, se tornou a própria polarização política. Essa polaridade entre PSDB e PT é a mesma entre Hillary Clinton e Bernie Sanders nas prévias do partido democrata americano, ou entre os sucedâneos de Tony Blair e os seguidores de Ed Miliband no partido trabalhista inglês.
A Nova República é um consenso social-democrata. As elites progressistas aderem ao PSDB ou ao PT como guia para o novo, para o avanço do país. Nos anos 90, as econômicas são mais ligadas aos tucanos, as intelectuais e artísticas aos petistas. A imprensa reflete este consenso. Poucas eram as vozes dissonantes na imprensa, como a de Olavo de Carvalho. O período que vai da primeira eleição de FHC ao escândalo do mensalão é o auge desse consenso.
Mas faltava uma questão: como conquistar o populacho e garantir governabilidade? Claro que melhorias na economia e carisma pessoal ajudam; porém, era preciso construir uma articulação política, uma coalização com os políticos do populacho, com os caciques regionais tão malvistos pela elite progressista.
Assim, inaugura-se o modelo de governo de coalização: o partido de esquerda governa, com o respeito das elites progressistas, e os políticos do populacho garantem seu apoio regional, criando uma verdadeira confederação de caciques dando profundidade ao candidato e recebendo benesses do Estado em troca. Como perda, a esquerda nem sempre governa como deseja. O toma lá da cá é velho na política e no Brasil, mas ganha outros contornos e dimensões para garantir o consenso.
O governo Fernando Henrique, como a terceira via de sua época, buscou unir alguns pontos das políticas econômicas liberais com todo o resto do ideário social-democrata, incluindo nisto não só os programas sociais já citados, como a maior interferência do estado na vida privada. As próprias reformas econômicas foram guiadas pelo dirigismo estatal, buscando eficiência e mais arrecadação.
Erros econômicos cometidos, desgaste e a influência em longo prazo que artistas e intelectuais conferiam à aura imaculada de Lula e do PT levou a vitória do ex-sindicalista nas eleições de 2002. Com visual menos radical, ele uniu o grosso da elite progressista, que celebrou com entusiasmo sua vitória. Vejam, por exemplo, o Jornal Nacional de sua posse. Colunistas e jornalistas teciam loas ao novo ministério do PT, criando uma expectativa positiva acima de 90% da população. Lula tinha carisma, mas sua vitória não teria sido possível sem ele ter se tornado um nome palatável para elite progressista, sem ter incarnado a figura de operário que simboliza nossa civilização democrática, e sem a aliança ampla que lhe possibilitou o apoio de caciques regionais. A conivência da imprensa era tão inacreditável, que se noticiava sobre o uso de prefeituras do interior para arrecadação da campanha de Lula de 2002 sem escândalo ou grande importância. Ninguém duvidava da lisura, honestidade e boas intenções de Lula e do PT. Eles eram os genuínos idealistas e sonhadores da esquerda, prontos para assumir o poder depois da “Carta ao Povo Brasileiro”, que simbolizava sua moderação econômica.
A hegemonia das ideias de esquerda possibilitou a ascensão de Lula e de uma esquerda mais estatista e que busca a hegemonia social. A relação que o governo FHC esboçou para aliar elite progressista e populacho no governo de coalização tinha a intenção de garantir as reformas necessárias ao país e foi feita sem o aparelhamento de cada pedaço do Estado.
No último texto abordei a dialética que marca nossa história republicana, entre a elite progressista e o populacho. Neste texto, expliquei a formação do consenso social-democrata da Nova República, com seu governo de coalização, que irá se cristalizar na ascensão do PT. No próximo, tratarei da hegemonia petista que gera a corrupção da democracia.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
[email protected]