Ao longo dos anos, viramos uma monstruosa formalidade cartorial que a todos engana, com o consentimento passivo da nação e a zelosa vigilância dos poderes públicos
Vivemos, no Brasil, tempos de perplexidade, diante da crise sistêmica em que afundou o “presidencialismo de coalizão” que, a bem a verdade, deveria ser chamado de “clientelismo presidencialista”, ou, como afirma César Maia, de “encilhamento geral” dos poderes. O fato de não ter sido feita, em tempo, a reforma política, que garantiria uma representação de baixo para cima conduziu, ao longo dos últimos 27 anos, à crise sistêmica que agora vivenciamos. O nosso tecido político ficou esgarçado em 32 partidos, a maior parte deles nanicos, e sem que nenhum conseguisse fazer surgir a almejada maioria sem a interferência do Executivo. Abriu-se, assim, a porta para alianças de legenda espúrias e para a negociata continuada de benefícios a partir do orçamento (como as “emendas parlamentares”), provindos das manipulações que o Executivo passou a fazer para obter a maioria necessária à governança. Mas uma maioria que, como se observa na história destes anos, notadamente durante o ciclo lulopetista, converteu-se em vulgar negociata em torno ao orçamento e ao tesouro, usado e abusado pelos governantes de plantão, sem o menor constrangimento.
Não é de hoje este mal. Já a chamada “política dos governadores”, no início do ciclo republicano, anunciava, na administração Campos Sales (1898-1902), que o que se buscava era uma acomodação segundo os interesses das oligarquias estaduais, sem que interessasse um átimo o aperfeiçoamento da representação. Mas o descaso de décadas é agravado hoje pela urgência que o Brasil experimenta, em época de turbulências globais, para manter a casa em ordem.
Não se administra um país com 200 milhões de habitantes da mesma forma em que se gerencia o quintal de um latifúndio. Ora, infelizmente a mentalidade que grassou na nossa história republicana foi exatamente essa tacanha praxe que ora assistimos, alicerçada na falta de visão ampla, de imediatismo, de sem-vergonhice. Tudo patrocinado legalmente pelo nosso bacharelismo republicano, useiro e vezeiro na prática legiferante para encobrir a realidade e para “deixar como está para ver como é que fica”. Viramos uma monstruosa formalidade cartorial que a todos engana, com o consentimento passivo da nação e a zelosa vigilância dos poderes públicos. Porque nos contentamos com os ritos processuais, esquecendo-nos do que é substantivo. Sem heroísmos quixotescos, a massa dos brasileiros virou uma grande pornochanchada sanchopanzesca, que tudo almeja menos a dignidade cidadã e as mudanças em profundidade.
O noticiário dos últimos meses em torno à amplitude do Segundo Mensalão, ao ensejo das investigações desenvolvidas pela operação Lava Jato, surpreende-nos, a cada semana, com novas revelações bombásticas em torno ao tamanho do saque praticado contra a nação. Se o Mensalão I já tinha deixado perplexa a opinião pública, o Mensalão II tem características verdadeiramente escatológicas, tal o tamanho do estrago feito nas contas públicas a partir da má utilização do dinheiro dos brasileiros pela via da gestão criminosa das estatais e dos bancos oficiais. Não foi apenas a Petrobrás que afundou no contexto do roubo praticado à luz do dia e com todas as características de “operação planejada”. Entraram na lista da ocupação pelo cupinzeiro petista as demais estatais, notadamente a Eletrobras.
A própria credibilidade do Brasil no cenário internacional mergulhou nas águas imundas da corrupção desenfreada. Os empréstimos bilionários praticados pela alta administração petista via BNDES, para favorecer governos estrangeiros compradores de obras superfaturadas, executadas por empreiteiros corruptos a mando da Presidência da República, já abalam a imagem do país no exterior e acabaram deitando por terra a tradição de seriedade da nossa diplomacia.
O PT acabou mergulhando o Brasil na tradição das piores banana republics, de que teremos dificuldade em sair sem fazermos, antes, um grande esforço de autocrítica e de reconstrução das instituições. Pelo que se vê das últimas decisões do governo Dilma, no sentido de mandar o ajuste fiscal às favas para livrar a cara do PT, de Lula e dela própria na operação Lava Jato, estamos no pior dos mundos possíveis. O ministro Levy ficou paralisado pela estratégia petralha. E, em que pese o convite feito por Lula ao PSDB para que “desse uma mãozinha” ao governo petista na atual enrascada, Fernando Henrique teve uma atitude firme e digna de um estadista. O PT que arque com o desastre da sua péssima administração! Essa foi a mensagem do ex-presidente.
A roubalheira não é de milhões de reais. A ladroagem já beira a cifra do trilhão. Quando a caixa de pandora da engenharia da corrupção patrocinada, na última década, pelo Partido dos Trabalhadores e Associados tiver sido completamente aberta, poderemos ver o tamanho do desastre, que infelizmente já está sequestrando o bem-estar dos nossos filhos e netos e engordando as contas bancárias de Lula et caterva no exterior. A começar, claro, pelos mais pobres, em cujo nome a petralhada organizou a máquina de desviar dinheiro público para benefício próprio.
Como escrevia Suely Caldas:
Na crise em que o governo do PT mergulhou o País, a tendência está mais para cancelar o programa (“Minha casa, minha vida”) do que para recuperar o que foi perdido. Justificativa real: os mais pobres são a faixa de renda onde o governo mais gasta, pois o subsídio é elevado, e é também onde o desemprego chega mais forte e a inadimplência passa a ser inevitável. É sempre assim: por ser a parcela mais vulnerável da população, os pobres são os primeiros a ser punidos, quando fracassam ações de governos irresponsáveis, que saem por aí distribuindo ilusões, sonhos para alguns, que logo se transformam em pesadelos para todos. Foi assim também com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Ciência Sem Fronteiras. E os brasileiros andam perguntando qual será o próximo. O Mais Médicos? O Bolsa Família?.
Esse é o maior crime que governante algum pode cometer contra o seu povo: comprometer o bem-estar das futuras gerações. Lula e Companhia ainda vão ser julgados pela História, pois a barra dos tribunais parece que se afasta cada vez mais do eixo da criminosa empreitada. Empresários, tesoureiros de partido, mulas, estafetas, laranjas, vários deles estão sentindo as agruras da prisão. Mas, cabe perguntar: cadê os mandantes do crime? Parece infinita a camada de teflon que os protege. Lula, Dilma e alguns dos mais estreitos colaboradores parece que estão se safando. A presidenta não teve melindre em negociar, no exterior, com o presidente do Supremo, uma forma de sair de fininho das acusações de improbidade administrativa que a levariam ao impeachment.
Em recente diálogo entre os mandachuvas da República Petralha, o ex-senador Sarney, profundo conhecedor dos descaminhos da privatização patrimonialista de recursos públicos, matou a charada para libertar de vez os donos do poder da Lava Jato. O ex-presidente foi curto, grosso e objetivo: o problema real consistiria em como barrar a tal operação nos Tribunais Superiores. Esse parece ser o caminho para onde se encaminha a engenharia da corrupção de petistas e associados.
Solução tipicamente patrimonialista: ninguém ouse atrapalhar a vida dos donos do poder: na hora “H” eles conseguem se salvar mediante uma aplicação da lei acomodada aos seus interesses. Não faltará um tribunal superior que declare inválida toda a operação Lava Jato, “ficando tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Tomara que, desta vez, isso não aconteça, como infelizmente já aconteceu em oportunidades semelhantes nas Operações “Sundown/Banestado” (2006), “Boi Barrica/Faktor” (2008), “Satiagraha” (2008) e “Castelo de Areia” (2009).
A situação de crise sistêmica obriga-nos à coragem de pensar. A filosofia clássica foi sistematizada na Grécia dos sofistas, quando na altura do século IV AC Atenas perdia a sua supremacia para os inimigos. Sócrates, Platão e Aristóteles colocaram a questão da Paideia no contexto da débâcle das instituições. “A coruja de Minerva”, escrevia Hegel, “levanta o voo quando as sombras da noite se aproximam”.
No caso brasileiro, quando tudo estava bem, quando a exportação das nossas commodities era bem paga nos mercados internacionais, a classe média só pensava em gastar o dinheiro fazendo compras em Miami. Um amigo que fez carreira no setor financeiro dizia-me, há alguns anos, na época das divisas abundantes: “Lula não me tirou nada, pode falar o que quiser”. Hoje, com as finanças públicas desmanteladas, com a economia estagnada, com os bolsos vazios pela alta tributação e pela volta da inflação, esse meu amigo e o resto dos brasileiros nos perguntamos, como o ator Jorge Dória fazia, diante das falcatruas do filho adultescente: “Onde foi que eu errei?”
Desenvolverei neste artigo três itens para responder à problemática que a atual conjuntura nos apresenta: 1)Devemos retomar o estudo da nossa História, para reconhecermos a origem dos males do presente, como fizeram os Liberais Doutrinários na França, no século XIX. 2) Qual é o caminho metodológico para identificar os nossos valores fundamentais, ao longo da história cultural brasileira? 3) Quais são as contribuições mais importantes na identificação do nosso Estado Patrimonial?
Da exposição desses três itens sairá a Conclusão que almejamos neste momento: o que fazer nas atuais circunstâncias, para potencializar o trabalho de desmonte do Patrimonialismo no Brasil?
1. Devemos retomar o estudo da nossa História
Erramos todos numa coisa: não desmantelamos as bases axiológicas sobre as quais se sedimenta o Estado Patrimonial, o verdadeiro leviatã que sequestra as nossas esperanças. Ora, não se modifica um curso histórico sem prévio conhecimento dele. Nosso Estado Patrimonial é obra de séculos. Daí que devemos fazer um esforço no sentido de conhecer as raízes históricas das nossas mazelas como nação organizada politicamente. Compreender a gênese do Estado Patrimonial brasileiro, eis a questão. Uma missão que outros países cumpriram a contento, quando viram a débâcle das instituições.
Isso ocorreu, por exemplo, na França do século XIX, quando o país emergia das horripilantes cenas da Revolução Francesa e do terror jacobino. Os historiadores tomaram conta da operação de salvamento, com François Guizot à testa. Retomando as pegadas do romantismo inglês que, através do romance histórico de Sir Walter Scott, passou a se remontar às origens da nação, os britânicos conseguiram pavimentar a estrada para a formatação das novas instituições que, com a democratização do sufrágio, abriram o caminho para a participação de todos os cidadãos na condução do Estado, mediante o aperfeiçoamento do governo representativo, na segunda metade do século XIX. Os pródromos iniciais desse processo foram devidamente estudados por Guizot na História da Revolução na Inglaterra.
Compreendido o caminho seguido pelos ingleses, a intelligentsia francesa passou, com os liberais doutrinários, Guizot à testa, ao estudo das raízes dos males que afetaram a França na trilha do absolutismo, solidificado no século XVII com Luís XIV. Como desmontar o monstro absolutista, o “mal francês” a que se referia John Locke quando, ainda jovem estudante de medicina, viajou pela França?
Tornava-se imperativo, de início, desmontar o novo modelo de absolutismo, o democratismo rousseauniano, que tinha substituído, no final do século XVIII, o absolutismo de um homem só do ciclo imediatamente anterior. A revolução francesa, efetivamente, substituiu um despotismo, o do monarca absoluto, por outro, o da tirania da maioria visado por Rousseau e os enciclopedistas.
Ora, como frisava Tocqueville em O Antigo Regime e a revolução, a questão não seria de qual o caminho a tomar para substituir um absolutismo por outro, mas de como sair do absolutismo na defesa da liberdade. Duas obras ficaram como testemunho do empenho da intelligentsia francesa nessa empreitada: A História da civilização européia, desde a queda do Império Romano até a Revolução Francesa, de Guizot, e Princípios de Política, de Benjamin Constant de Rebecque.
É, portanto, de capital importância que compreendamos a índole do nosso patrimonialismo, bem como a escala de valores em que se alicerça o comportamento da nossa sociedade em face desse tipo de dominação. Autores vários desenvolveram trabalhos relacionados a esse tema. As mais recentes contribuições brasileiras situam-se nos arraiais do pensamento liberal/conservador.
2. Caminho metodológico para identificar nossos valores fundamentais
A genealogia dos valores apreende-se, na história da cultura, pelo caminho da indagação filosófica. Posto que os valores são os elementos existenciais de que somos portadores para construirmos o mundo da cultura, não poderá haver caminho mais adequado na tentativa de identificar a nossa base axiológica do que perguntarmos pela forma em que se dá, entre nós, a reflexão filosófica, que se projeta sobre a nossa estrutura ontognoseológica, explicitando as várias instâncias que a integram. Para isso, podemos alargar a extensão da Teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale ao mundo da cultura, em geral, e postularmos que, em face da história da mesma, há três aspectos a serem levados em consideração: fatos, valores e normas.
Os primeiros sedimentam-se no fluir constante das ações humanas, dando ensejo ao pano de fundo de que se ocupa a historiografia. Os segundos constituem os “ideais” que impulsionam os indivíduos a agirem, formando aquilo que Ortega y Gasset denominava de “crenças fundamentais” que estão presentes, como molas propulsoras, em toda ação humana. As terceiras são as materializações dessa dinâmica nas obras de cultura, que foram identificadas, por Hegel, como pertencendo a três vastos domínios representativos: arte, religião e filosofia, e que, no terreno da formação das instituições, ensejam os universos da economia, do direito e da política.
Ora, sendo a ação humana entendida dentro dessa visão tridimensional, os valores constituem a variante inspiradora e propulsora. Platão atribuía a “Eros” toda a dinâmica da presença do homem no mundo. Os valores equivaleriam a esse mundo arquetípico, tendo sido entendidos, por Max Scheler, como “entidades ideio-afetivas” que estão na base de toda ação humana.
Embora se possa entender a ação humana referida a esse contexto axiológico de uma forma ampla que abarque, como faz Weber, o papel dos valores religiosos, podemos centrar nossa indagação sobre os valores que inspiram a tipicidade responsável dos atos humanos, aqueles referidos à moral. No contexto do neokantismo tal pesquisa abre perspectivas amplas, como no caso da reflexão brasileira encarregou-se de mostrar Antônio Paim. À luz desta abordagem, poderíamos tipificar os “modelos éticos” encontradiços na cultura brasileira.
Reale e Paim mostraram que a criação filosófica obedece a uma problemática da qual emergem os sistemas, presididos por uma ideia-mestra carregada de conteúdo axiológico como Ideia-Força, que se destaca da perplexidade da meditação sobre o ser do homem, tendo a força do arquétipo platônico. Tal marco ontognoseológico é formulado como a chave do problema de que se ocupa a meditação filosófica em determinado momento da história humana, referida a um “Sitz-im-Leben” que exprime a concretude histórica da razão. Ora, a questão da originalidade se joga toda aqui, destacando os aspectos específicos da resposta dada pela razão perante a problemática assim formulada.
Miguel Reale desenhou a metodologia que permite à meditação filosófica luso-brasileira e ibero-americana caracterizar a sua originalidade, sem cair no extremo de uma originalidade total, desvinculada da tradição filosófica ocidental. Essa posição equilibrada é defendida também por outros pensadores brasileiros e ibero-americanos.
Reale parte do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre preferencialmente sob a forma de meditação sobre problemas e não como formulação das grandes perspectivas transcendente e transcendental (que já foram fixadas por Platão e por Kant, respectivamente), ou como construção de sistemas (modalidade adotada pela meditação filosófica ocidental até o final do século passado).
A partir daí, Reale formula um método que permite a análise da meditação filosófica brasileira e latino-americana como discussão de problemas, superando o vício do engajamento apologético, que condena ou hipervaloriza autores, de acordo com as preferências axiológicas do estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude puramente analítica, que reduz a filosofia ao estudo dos clássicos sem, contudo, reconhecer aos pensadores brasileiros e latino-americanos a capacidade de meditar sobre a própria realidade.
No seu ensaio intitulado “A doutrina de Kant no Brasil”, o filósofo paulista já tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido entre nós um desenvolvimento criativo, em estreita relação com a reflexão dos pensadores sobre as circunstâncias particulares da história brasileira. O criticismo kantiano, observa Reale no mencionado ensaio, não entrou no Brasil simplesmente como cópia das ideias do filósofo de Königsberg (hipótese que Clóvis Bevilacqua tentou provar no seu trabalho dedicado à saga da doutrina kantiana em terras brasileiras), mas penetrou de forma viva e criativa. A respeito, escreve Reale:
A doutrina de Kant, no que ela possui de perenemente vital, não se presta a essas recepções fáceis nem pode ser convertida em um conjunto cerrado de princípios. O criticismo é antes um método, uma atitude ou posição espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma forma de inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí poder-se dizer que a presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar, constitui um sinal de densidade cultural, como certas roupagens vegetais assinalam as terras ricas de húmus. A compreensão de Kant não permite, em verdade, uma atitude ou forma cômoda de filosofar sem excessiva filosofia, sem serem empenhadas a fundo as nossas mais subtis capacidades de inteligência em um trabalho perseverante e metódico.
A filosofia clássica é, portanto, para o pensador paulista, não uma muralha que impede o voo do espírito, mas antes uma trilha aberta, que nos convida a caminhar por ela, iluminando, com os seus ensinamentos, a problemática que vivemos.
É conhecida a forma clara e contundente com que o nosso pensador aplica o conceito de “reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da Lebenswelt husserliana. Para Miguel Reale, é claro que “nenhum conhecimento ou nenhuma filosofia tem sentido fora do diálogo da história, ou sem consciência da historicidade do homem e de suas ideias, de sorte que o desconhecimento do valor da história equivale a abdicar da filosofia, da cultura e do sentido da própria vida”. Reale já pressentia, sem dúvida, quando escrevia estas palavras em Experiência e Cultura, o fenômeno de alienação protagonizado hodiernamente pela moda analítica que se pratica nas corporações autistas e pseudofilosofantes, em que infelizmente se converteram não poucos departamentos de filosofia das universidades brasileiras.
À luz da “reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar brasileiro teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia ocidental e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria problemática histórica.
Ora, ele próprio levou a cabo ambas as tarefas com indiscutível originalidade. No seu trabalho de diálogo filosófico com os autores, Reale fez da tolerância e do pluralismo o clima de trabalho que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de Filosofia, criado por ele em 1949, e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia.
A atual retomada do rumo nesse contexto teórico deve-se, certamente, aos herdeiros do culturalismo sistematizado pelo pensador paulista. Faço referência aqui, explicitamente, ao amigo e colega Francisco Martins de Souza.
O caminho trilhado por Reale e pelos seus discípulos na trilha da Escola Culturalista será, certamente, o norte que guiará com segurança a busca pela nossa identidade axiológica. Ela deverá ser buscada, não na ação autoritária do Estado sobre os cidadãos, mas na defesa da liberdade de pensamento do indivíduo, num contexto de tolerância intelectual, como o aberto por Reale no Instituto Brasileiro de Filosofia.
3. Contribuições mais importantes na identificação do nosso Estado patrimonial
No esforço em prol de traçarmos um rumo alvissareiro para o Brasil contemporâneo, tão importante quanto a compreensão dos valores da nossa cultura nacional é a adequada compreensão do fenômeno do patrimonialismo. Considero fundamental destacar que a pesquisa nesse ponto tem sido desenvolvida por várias gerações de estudiosos, a maior parte dos quais se situam no contexto liberal-conservador. Em estudo publicado pelo Clube da Aeronáutica, denominei esse grupo de “Escola Weberiana Brasileira”, pelo fato de os seus integrantes inspirarem-se na tipologia do patrimonialismo proposta por Max Weber em Economia e Sociedade e completada por Karl Wittfogel na obra intitulada O Despotismo Oriental. Os principais autores dessa escola de pensamento, e suas obras de destaque, indispensáveis, você encontra neste artigo recentemente publicado no Amálgama.
As minhas obras intituladas Castilhismo: uma filosofia da República, O Castilhismo, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, O Republicanismo brasileiro, e outras, foram dedicadas a realizar uma aproximação entre os tipos ideais weberianos e as categorias propostas por Oliveira Vianna para o estudo da formação do Estado modernizador brasileiro. Mostrei que a tipologia do patrimonialismo foi a base sobre a qual foram organizados os Estados nas antigas colônias espanholas e no Brasil, tendo dado ensejo a uma cultura vinculada à ética contrarreformista, contrária ao progresso e à consolidação da democracia representativa, em que pese o fato da preexistência, na Península Ibérica, de antiga tradição contratualista de feição libertária.
À luz do arcabouço conceitual esboçado pelos estudiosos que configuram a Escola Weberiana Brasileira, poderíamos resumir assim o mais recente capítulo do patrimonialismo no ciclo lulopetista. Escrevia sir Francis Bacon, um dos ícones do empirismo inglês, na sua obra intitulada Novum Scientiarum Organon (1620), que a experiência humana possui momentos privilegiados, aqueles em que os segredos da natureza revelam-se, por instantes, perante a lente dos cientistas. Considerava que alguns fatos constituíam instantiae ostensivae (instâncias reveladoras, ou casos em que as estruturas da natureza estariam no seu máximo de manifestação). Esses seriam os momentos de insight das leis que comandam o cosmo.
Os brasileiros estamos assistindo, nos eventos do Petrolão, a uma dessas raras circunstâncias na evolução do nosso secular Estado Patrimonial. A opinião pública não vê todas essas instâncias, mas paga a conta. O contribuinte que o diga — sente já no bolso os desmandos da empresa patrimonialista, montada passo a passo, com paciência de sindicalista que assiste à assembleia, para, esvaziada pelo cansaço, aprovar a greve almejada. No caso do Petrolão, esta seria a última etapa, a mais visível, de aparelhamento do sistema produtivo por uma ávida elite preparada para a função de privatizá-lo tudo em benefício da burocracia estatal presidida pelo Partido. Demétrio Magnoli, em 2010, sintetizou bem a essência do atual patrimonialismo lulopetista: “O Estado lulista é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite do poder petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo”.
Não é de hoje o projeto dessa empresa patrimonialista, que teve etapas memoráveis. Em todas elas, a ciência aplicada foi posta a serviço da burocracia estatal, a fim de garantir a eficiência na racionalização da empresa do rei ou do primeiro mandatário. Foi assim nas reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII, quando o marquês de Pombal amarrou o sistema produtivo ao redor dos Monopólios Reais, fora dos quais ninguém conseguiria sobreviver. Assim aconteceu nas reformas modernizadoras do Império, com o Monarca como centro da atividade econômica, colocando sob seu tacape aqueles que quisessem se apresentar como empresários independentes do Trono. As agruras sofridas pelo visconde de Mauá, um dos nossos próceres do livre empreendedorismo, estão aí para provar a eficiência do projeto patrimonialista. Assim aconteceu no ciclo modernizador do getulismo, com as reformas ensejadas pela elite gaúcha comandada com mão de ferro pelo próprio Getúlio Vargas, com o auxílio dos jovens intelectuais que integravam a Segunda Geração Castilhista, com Lindolfo Boeckel Collor à frente, tendo previamente sido cooptada a jovem elite tenentista no Clube 3 de Outubro. Assim ocorreu no ciclo militar ao redor da proposta modernizadora em andamento nos terrenos econômico e social, pensada no petit comité que reunia, ao redor do General Presidente, a elite tecnocrática e militar, responsável por traçar o andamento da máquina pública rumo ao Brasil Grande.
O lulopetismo tentou copiar esse esquema de modernidade ao redor do Estado empresário, racionalizando ao máximo a máquina tributária, centralizando as receitas em favor da União (com detrimento de Estados e Municípios), utilizando como mão distribuidora de recursos entre os empresários cooptados o BNDES que partiu, também, para aliciar fidelidades internacionais no Hemisfério Sul (na África e na América Latina), na tentativa de dar vida a essa nova diplomacia que está acabando de desmontar a primorosa máquina construída, na aurora da República, pelo Barão do Rio Branco no Itamaraty. O mecanismo foi o mesmo do ângulo econômico: tudo centralizado ao redor dos monopólios oficiais, dentre os que se destacam a Petrobrás e a Eletrobras. O modelo modernizador lulopetista assemelha-se, assim, ao posto em prática por Vladimir Putin, no seio do secular patrimonialismo russo, com a hegemonia das empresas produtoras de gás e petróleo. Proveniente do meio sindical, Lula caprichou no sentido de dominar completamente os fundos de pensão das estatais.
Fazem-se sentir hoje os efeitos práticos dessa política patrimonialista: enriquecimento rápido dos agentes públicos (garantida a sua segurança nas sombras da nossa complexa legislação, que coloca sobre todos a espada de Dâmocles da insegurança jurídica, mas que para os amigos do rei constitui garantia de que nada acontecerá com eles). Vide as penalidades muito diferentes impostas no julgamento do Mensalão: pesadíssimas para os que foram cooptados no setor privado pelo turbilhão de dólares na cueca e nas malas gordas de notas, levíssimas para os arquitetos dos malfeitos (para utilizar a terminologia do agrado da presidente Dilma).
A maciça divulgação dos feitos da ladroagem estão sensibilizando a opinião pública de que há algo de errado na estrutura do nosso Leviatã. Enquanto itens básicos da saúde pública faltam nas Unidades de Pronto Atendimento, a elite larápia tem pronto atendimento de primeiro mundo no Hospital Albert Einstein, o mais caro do país. Enquanto já começa a sobrar calendário e a faltar dinheiro na metade do mês no bolso dos contribuintes, os dólares desviados sobram nas contas milionárias da petralhada e dos empresários corruptos. Enquanto a sociedade almeja por transparência na prestação de contas, a Presidência da República é pródiga em enrolação e em contradições veiculadas pelos porta-vozes oficiais. Enquanto se esperava que o Ministério da Justiça cumprisse com o seu papel de facilitador para que a Justiça operasse livre e célere, converteu-se em guiché de reclamos dos larápios e em janela por onde assomam os feitores dos desmandos, que buscam pressionar politicamente os magistrados honestos.
Tomara que de todo esse movimento de agitação surja uma análise aprofundada sobre as causas das nossas mazelas: o Estado Patrimonial e o seu cérebro, instalado hoje confortavelmente na Presidência da República e nos gabinetes dos burocratas de Brasília.
Conclusão
Nesta confusa situação de desmonte e realinhamento das instituições republicanas, quais são as perspectivas que se descortinam? O Estado patrimonial brasileiro entrou em colapso, à sombra do acirramento dos seus vícios potencializados pelo Partido dos Trabalhadores e o lulismo. Em meio ao nevoeiro dos fatos, podemos enxergar, no entanto, duas saídas, à luz das variáveis que tenho analisado neste artigo.
Em primeiro lugar, encontramos uma proposta arquitetada pelos estudiosos do patrimonialismo. É possível, sim, elaborar uma agenda para superar os entraves de séculos, decorrentes da feição privatizante do Estado por clãs e patotas. O caminho para acabar com o peso do Estado-faz-tudo potencializado pelo Executivo consiste em diminuir a sua força de aliciamento, mediante a suspensão das “emendas parlamentares”, que se tornaram a torneira por onde o Presidente da República repassa benesses ao Legislativo, com a finalidade de manter a sua dominação corrupta sobre os demais Poderes e sobre a sociedade.
Trata-se de uma opção que é enxergada por Antônio Paim na sua mais recente abordagem (Revisita ao tema do patrimonialismo, no prelo), que visa a enfraquecer a crença popular no Estado como pai de todos profundamente enraizada na mentalidade popular. Essa providência e outras (como a discussão concreta acerca das privatizações) vão se encaixando no sentido de fortalecer o papel dos cidadãos e o seu relacionamento com o Poder Legislativo, mediante a adoção de mecanismos que aproximem eleitor de eleito e garantam a adequada representação de interesses (e o voto distrital seria peça-chave dessa saída, não se descartando, a meu modo de ver, num futuro relativamente próximo, a saída parlamentarista). Esses fatores, somados, levariam certamente a um arrefecimento do patrimonialismo na gestão do Estado.
Ora, na atual quadra de disritmia institucional, fica clara a reação conservadora de amplos setores do Congresso (de que se tornou porta-voz o presidente da Câmara dos Deputados), inspirada nas críticas da sociedade à ação deletéria do governo, bem como nas propostas moralizantes da bancada evangélica. Seja qual for o caminho que os fatos tomem nos próximos meses, não há dúvida de que se trata de uma reação proveniente da sociedade civil, que encontra repercussão no senso de sobrevivência de muitos deputados e senadores. Querendo ou não, significativos setores de ambas as casas legislativas passaram a se tornar porta-vozes dos desejos da sociedade, no sentido de ver refreada a maré montante da pretensa hegemonia do PT e coligados. Dou como exemplo a aprovação, pelo Senado, da adoção do voto distrital proposta pelo senador José Serra. As reformas em curso que transitam pelo dialético caminho das várias Comissões Parlamentares de Inquérito vão nesse sentido.
Esta variável poderá desaguar num quadro de reformas significativas, tanto dos partidos quanto da gestão do Estado. A operação Lava Jato está a mostrar que amplos segmentos do Ministério Público e da Magistratura alinham-se no sentido de depurar as práticas republicanas, indo de encontro à busca de um reforço da representação exigida pela sociedade, a que aludi anteriormente. Para que essa ampla tarefa prospere seria necessário que a intelligentsia brasileira apresentasse propostas coerentes. Políticos calejados como César Maia vêm a possibilidade concreta de, ao redor dessa agenda renovadora, se constituir um movimento de “união nacional”, que nos tirasse do atual atoleiro.
Em segundo lugar, desponta no horizonte das nossas esperanças uma ideia-matriz herdada das várias gerações de pensadores liberal-conservadores em que é rica a nossa tradição política: vale a pena lutar pela liberdade! Esta não é um ornamento constitucional de última hora. A luta pela liberdade confunde-se com as origens da nacionalidade, tanto em Portugal quanto no Brasil. Ela foi, desde o início dos nossos tempos como nações organizadas, o fogo que aqueceu os corações dos homens que lutaram pela dignidade e pela defesa dos direitos inalienáveis à vida, à liberdade, às posses, tanto por parte de intelectuais de nomeada como Alexandre Herculano, que trouxe para Portugal a benfazeja influência dos doutrinários franceses, quanto do ângulo da nossa história, que se confunde, nos seus primórdios, com a tarefa de que se desincumbiram Dom João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, Dom Pedro I, Dom Pedro II, o visconde de Uruguai Paulino Soares de Sousa, bem como os demais estadistas que pensaram os fundamentos da representação no Brasil.
A magna tarefa de pensar o país, efetivada pela Escola Culturalista com Miguel Reale e Antônio Paim à testa, e continuada hoje pelas jovens gerações que em blogs e portais aplicam os princípios do humanismo cristão liberal-conservador às atuais circunstâncias, insere-se nesse ideal de luta pela liberdade nas instituições republicanas, retomando a tarefa de arautos que já se foram, como Rui Barbosa, Assis Brasil, Gaspar da Silveira Martins, Milton Campos, Carlos Lacerda, Miguel Reale, Roberto Campos, Gilberto Ferreira Paim, Donald Stewart, Og Leme, José Guilherme Merquior, Roque Spencer, Ubiratan Macedo e tantos outros.
Vale, sim, a pena lutar pela liberdade. Vale, sim, a pena criticar com denodo o estatismo patrimonialista e a sem-vergonhice descarada que tomou conta do país no longo consulado lulopetista. Vale, sim, a pena erguer uma voz de indignação em face das tramoias da esquerda totalitária enraivecida e arrogante, que esvaziou os cofres da nação para se locupletar às custas dos menos favorecidos que prometia redimir. Vale, sim, a pena trabalhar em prol de formular as linhas mestras de um desenvolvimento capitalista ordeiro e a serviço de todos os brasileiros.
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este post é a versão de um texto preparado para palestra no Clube da Aeronáutica, Rio de Janeiro, 4 de agosto.
Ricardo Vélez-Rodríguez
Colombiano, militou na extrema-esquerda até o início dos anos 70. Estudou pensamento brasileiro na PUC-RJ e foi professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou em 2015 A grande mentira: Lula e o patrimonialismo petista. Colabora com o Estadão e outros veículos.
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