Milton Friedman foi um gigante moral, estudioso das demandas das camadas mais marginalizadas, vítimas de jogatinas e achaques de burocracias governamentais
Milton Friedman (1912-2006) foi um gigante na defesa moral do capitalismo. Essa foi a principal percepção que tive ao concluir a leitura do primoroso Livre para escolher, escrito por Milton e por sua esposa, Rose Friedman. A obra originou-se dos estudos de Friedman no texto Capitalism and Freedom, de 1962, e também da série de TV intitulada Free do Choose, de 1980. Nesse festejado programa, Milton Friedman se propôs a tornar as lições da economia de livre mercado acessíveis ao público leigo em economia, sem se furtar ao debate com posições dissonantes das suas.
O tom pragmático de Friedman, aliado à linguagem acessível ao público não formado em economia, constitui o diferencial da obra. Graciliano Ramos dizia que “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. E Milton Friedman diz. Ao contrário de se render a retorismos e a palavrórios pouco convidativos, ele usa a palavra como ferramenta para transmitir com exatidão suas ideias. Daí se infere a precisão de seus conceitos e a facilidade de apreensão de seus pensamentos.
O livro, com mais de quatrocentas páginas, está dividido em 11 tópicos – “introdução”, “o poder do mercado”, “a tirania dos controles”, “a anatomia da crise”, “do berço à sepultura”, “criados iguais”, “o que há de errado com nossos colégios?”, “quem protege o consumidor”, “quem protege o trabalhador”, “a cura para a inflação”, “a maré está virando” -, num diagnóstico muito preciso dos dramas econômicos e políticos que insistem em retornar, de tempos em tempos, aos vários países do globo, o que faz da obra um tratado atual e indispensável.
Além de um scholar brilhante, Milton Friedman foi um aguerrido ativista das liberdades econômicas e políticas em debates, por todo o mundo, com empresários, políticos e estudantes. George Stigler, colega de Friedman na Universidade de Chicago, destacou o talento do economista, nos debates, quando em confronto com os oponentes intelectuais dos mais diferentes perfis.
Stigler afirmou que as teses centrais da Escola de Chicago, da qual Friedman despontou como principal expoente, consistiam em um posicionamento sobre políticas e sobre um método para o estudo da economia. A partir disso, Friedman definiu três linhas de trabalho que ofereciam contribuições fundamentais à formação da Escola de Chicago. Na primeira delas, recuperou o estudo da economia monetarista, que agonizava à época, a partir da teoria quantitativa da moeda, não somente para estudar o comportamento econômico, como também para desferir um poderoso ataque à Escola Keynesiana. Numa segunda linha de trabalho, apresentou uma sólida defesa para as práticas do laissez faire e novas e importantes propostas políticas. E, finalmente, desenvolveu e empregou, de forma relevante, a moderna teoria dos preços. Nas palavras de Stigler:
Friedman empreendeu um trabalho empírico de considerável volume, para documentar o enérgico papel histórico da moeda na vida econômica americana, e usou essa teoria como uma arma poderosa para atacar a teoria keynesiana. Ele concluiu essas tarefas de forma hábil, com sua mente extremamente lúcida. Sua capacidade de pensar com extrema rapidez e conduzir a si próprio com total correção no âmago do debate fazem dele um debatedor formidável, tanto pessoalmente quando no papel. Ele é um trabalhador empírico maravilhoso, preparado para isolar o que acredita serem os elementos essenciais de um problema, e fazer, com grande engenhosidade com que a análise resista aos dados empíricos. Finalmente, mostra-se bastante talentoso ao afrontar seus oponentes intelectuais, que têm, em consequência, dedicado muita energia e conhecimento na divulgação de seu trabalho.
Os pais de Milton Friedman eram imigrantes judeus muito pobres, que aportaram nos Estados Unidos no século XIX. O jovem Milton conseguiu se formar em matemática somente porque foi agraciado com uma bolsa de estudos. Talvez esses elementos ajudem a compreender a dedicação incansável do economista em relação às demandas daquelas camadas mais marginalizadas da sociedade, normalmente alheias às jogatinas e aos achaques de burocratas nas mais variadas esferas governamentais.
As classes sociais mais desprezas, a exemplo de imigrantes, de negros e de mulheres pobres, foram a preocupação central de Milton Friedman nos inúmeros estudos que empreendeu sobre o quanto as políticas governamentais destinadas aos mais pobres eram, na verdade, justificativas para toda espécie de logro e aumento dos poderes dos burocratas em prejuízo, justamente, daqueles que propagavam beneficiar.
Essa nuance da personalidade de Friedman, em focar sua análise nos interesses das pessoas mais pobres e comuns, fica bastante evidente no debate público de sua época. Certa vez, em um programa da TV norte-americana, um interlocutor acusou o sistema capitalista de distribuir mal a riqueza, e de condenar ao flagelo milhões de famintos desesperados em países subdesenvolvidos, tudo em nome da ganância e da concentração de poder de certos grupos. Em resposta ao ataque, Friedman dispara:
Existe alguma sociedade que você conhece que não seja movida pela ganância? Você acha que a Rússia não é movida por ganância? É claro que nenhum de nós é ganancioso, é sempre a outra pessoa que é. […]. As grandes realizações da humanidade não vieram do governo. Einstein não construiu sua teoria por ordem de um burocrata. […]. Nos únicos casos em que as massas escaparam do tipo de situação de pobreza que você está relatando, os únicos casos documentados da história, foram onde elas tiveram capitalismo e livre comércio em grande medida. Se você quiser saber onde as massas estão piores, é exatamente nos tipos de sociedades que se afastam disso. De forma que o registro histórico é absolutamente cristalino que, não há maneira alternativa, até então descoberta, de melhorar a vida das pessoas comuns que possa se comparar às atividades produtivas que são liberadas pelo sistema de livre iniciativa.
Friedman aponta, de maneira notável, que a liberdade econômica não é corolário lógico da liberdade política, mas sim condição essencial para a realização dessa última. Ao permitir que as pessoas cooperem umas com as outras, sem coerção nem comando central, as liberdades econômicas reduzem a área sobre a qual é exercido o poder político. Esse é um ponto nuclear na doutrina de economistas liberais como Hayek e Friedman: evitar que o poder político e econômico se concentre nas mesmas mãos, sob pena de nos confrontarmos com tiranias e com despotismos. Ao dispersar o poder econômico entre milhares de agentes, o livre mercado proporciona uma compensação no âmbito da esfera política.
O economista de Chicago nos informa que a história dos Estados Unidos é a história de um milagre econômico e político, que se tornou possível pela transposição, para a prática, de dois conjuntos de ideias. Friedman relata que, “por uma curiosa coincidência”, os documentos que embasaram essas ideias foram publicados no mesmo ano, 1776. Um conjunto de pensamentos integrava A riqueza das nações, de Adam Smith, ao passo que outro conjunto de pensamentos integrava a Declaração de Independência, escrita por Thomas Jefferson. Friedman destaca a sagacidade de Smith e a de Jefferson, que visualizaram na concentração de poder do governo um enorme perigo para o homem comum.
Esse foi o intuito da Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e da Declaração de Direitos dos Estados Unidos (1791); o propósito da separação de poderes na Constituição dos EUA; a força motriz por trás das mudanças na estrutura judiciária inglesa desde a publicação da Magna Carta no século XVIII até o final do século XIX. Para Smith e Jefferson, o papel do governo era o de um árbitro, não o de um participante. O ideal de Jefferson, como ele exprimiu em seu primeiro discurso de posse (1801), era um “governo sensato e sóbrio, que impedirá os homens de prejudicarem uns aos outros, que, por outro lado, os deixará livres para regular suas próprias atividades produtivas e progresso (p. 25).
Não obstante os esforços desses teóricos em delimitar as funções do governo, Friedman relata uma guinada cultural nas mentalidades de seu tempo, que resultou na concessão de poderes ao governo, para “fazer o bem”. O ápice da aceitação da ampliação dos poderes ao governo se deu com a Grande Depressão. Para o autor, a Depressão foi causada por falha do governo em uma área – monetária – onde havia exercido sua autoridade desde o começo da República. Houve ampla aceitação popular da interpretação errônea de que a Depressão teria ocorrido em razão de falhas do capitalismo de livre mercado. O mito uniu a classe intelectual ao público, numa mudança de visão sobre as responsabilidades relativas aos indivíduos e ao governo.
Nos dias atuais, após o retumbante fracasso dos regimes socialistas, não mais prevalece a ideia quanto à “socialização dos meios de produção” em nome de uma “justiça social” qualquer. Nos países mais desenvolvidos do planeta, os progressistas já renovaram suas bandeiras e hoje clamam pela “socialização dos resultados da produção”.
O fracasso do planejamento e da estatização não acabou com a pressão para um governo cada vez maior. Simplesmente alterou sua direção. A expansão do governo agora toma a forma de programas de bem-estar social e de atividades regulatórias. Como diz W. Allen Wallis em um contexto um tanto diferente, o socialismo, “intelectualmente falido depois de mais de um século vendo seus argumentos a favor da socialização dos meios de produção serem demolidos um a um, agora tenta socializar os resultados da produção” (p. 149).
O mito de que a empresa privada teria sido a responsável pela crise de 1929 respaldou a irrestrita e a irrefletida legitimidade popular em relação ao “Estado de bem-estar social”, tudo em nome de um suposto “bem comum”, e a partir de pesadas regulamentações aos agentes econômicos. Hayek, em O caminho da servidão, aduziu que a tese fundamental do texto era demonstrar a corrupção que o controle governamental causa nas mentalidades, no sentido de uma alteração de ordem psicológica no caráter do povo.
Nessa mesma linha de raciocínio, Friedman aponta que a capacidade de independência dos beneficiários para tomar suas próprias decisões atrofia com o desuso, na medida em que o gasto do governo com benefícios sociais tende a corromper também as pessoas envolvidas. Segundo ele, todos esses programas põem algumas pessoas em posição de decidir o que é bom para outras pessoas. “O efeito é o de instilar no primeiro grupo um sentimento de poder divino; no outro, um sentimento de dependência infantil”. “Além do desperdício de dinheiro, além do fracasso no alcance dos objetivos almejados, o resultado final é que apodrece o tecido moral que mantém unida uma sociedade decente”.
O desperdício é angustiante, mas é o menor dos males nos programas paternalistas que crescem a uma dimensão tão gigantesca. O seu mal maior é o seu efeito no tecido social de nossa sociedade. Eles enfraquecem a família; reduzem o incentivo ao trabalho, à poupança e à inovação; reduzem o acúmulo de capital; e cerceiam nossa liberdade. São os critérios fundamentais pelos quais devem ser julgados (p. 193).
Uma das peculiaridades mais notáveis de Friedman é o tom propositivo de suas análises. O economista não somente apontava para os problemas, como também oferecia soluções, a exemplo do sistema educacional de vouchers, no sentido de conferir aos genitores liberdade de escolha na educação dos filhos, e introduzir a concorrência nas escolas públicas de primeiro e segundo graus.
Tamanha lucidez, e talento, renderam a Friedman o Prêmio Nobel de Economia em 1976. E mesmo que seus detratores sejam mesquinhos, por não compreenderem que Friedman jamais apoiou a ditadura de Pinochet, as avaliações do economista, no Chile, foram certeiras. Friedman apenas defendeu que o programa de liberdades econômicas foi a razão para que a população daquele país experimentasse uma qualidade de vida superior à dos países comunistas naquela época, melhorias que permanecem no Chile até os dias atuais, quando comparado aos vizinhos da América Latina, entre eles o Brasil.
Portanto, associar Friedman a regimes ditatoriais é uma enorme injustiça em relação a um gênio do intelecto, que trabalhou de modo incansável para tornar esse mundo mais livre tanto econômica quanto politicamente, sobretudo em benefício dos homens mais pobres e mais comuns. Friedman não é apenas um gigante na defesa moral do capitalismo, mas, acima de tudo, um verdadeiro gigante moral:
Poucas medidas que viéssemos a adotar fariam mais para promover a causa da liberdade em nosso país e no exterior do que um comércio totalmente livre. Em vez de fazermos doações a governos estrangeiros em nome da ajuda econômica – promovendo, assim, o socialismo, enquanto ao mesmo tempo impomos restrições sobre os produtos que produzem – obstruindo, assim, a livre-iniciativa – , poderíamos assumir uma posição consistente e baseada em princípios. Poderíamos dizer ao resto do mundo: nós acreditamos na liberdade e temos a intenção de praticá-la. Não podemos forçá-los a ser livres. Mas podemos oferecer total cooperação em igualdade de condições a todos. Nosso mercado está aberto a vocês, sem tarifas e outras restrições. Vendam aqui o que puderem e quiserem. Comprem o que quiserem e o que puderem. Desse modo, a cooperação entre as pessoas poderá ser mundial e livre (p. 88-89).
Renata Ramos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.