Os contos de Krishna Monteiro são uma vasta incursão ao passado: ao que é mitológico, folclórico, espiritual, e aos meandros da morte
Um dos pecados mais cometidos na escrita de um livro de contos, a meu ver, é sua inconstância temática. É claro que a existência do próprio conto já é justificável — uma história breve, em poucas palavras —, encerrando-se em si mesma, sem delongas. Contudo, como leitora, sinto a necessidade de liaison, de alguma forma de ligação, da criação de uma atmosfera específica, típica do romance, na qual o leitor possa submergir. Krishna Monteiro consegue tal façanha.
Em O que não existe mais, o autor estreante, economista e diplomata, reúne sete contos primorosos cujos principais elementos em comum são a lembrança e a morte. Como Caronte, Monteiro nos leva a um passeio em um rio de águas turvas, no qual não conhecemos os passageiros — duas mulheres, um homem, um galo, dois velhos —, mas sabemos o porquê de estarem ali. Melancólico e existencialista, o livro caminha a passos lentos, passeia por uma belíssima poética e semântica e mergulha o leitor em uma atmosfera vaporosa de ilusão e realidade.
No conto-título, “O que não existe mais”, temos um rapaz que, ao adentrar o escritório do falecido pai, encontra-o parado defronte à estante de livros, e passa a relembrar sua conturbada relação, percebendo serem indiscerníveis os detalhes que separam suas próprias identidades; descobrindo, por fim, que ainda que o pai não exista neste mundo volátil, terreno, ainda existe em si próprio.
Temos, ainda, uma narrativa surpreendentemente artística envolta em névoa de superstição e mistério, “A encruzilhada”, uma viagem ao misticismo brasileiro; também há a triste história de um avô e seu neto, separados por desarmonia familiar e unidos pela narrativa dos momentos passados pelo velho na lendária batalha de “Monte Castelo”; já “Sudário” é um sopro de vida; enquanto “Alma em corpo atravessada” se trata de uma ode aos “causos”, às tradições orais, à imagem da mãe e à descoberta da existência palpável da morte.
Contudo, dou especial destaque a outros dois contos, deliciosos em sua sintaxe, verdadeiras obras de arte que remetem ao clássico Bichos, de Miguel Torga. Em “Quando dormires, cantarei” adentramos os pensamentos de um galo de briga que relembra sua frágil existência, carente de amor, focada nos embates, no sangue da guerra, enquanto luta, ferozmente, na arena. Por sua vez, “Um âmbito cerrado como um sonho” é, de todos, meu favorito. Nesse conto, assistimos, pelos olhos de um gato, a passagem de sua dona do reino lúgubre dos vivos ao paraíso da morte.
Escrever é mesmo uma arte. Krishna Monteiro faz jus a isso. O que não existe mais é uma joia debutante. Nela não persistem só a alma e a lembrança: por si só, nunca deixará de existir.
Bruna Gonçalves
Formada em Letras pela PUC-Campinas, revisora, tradutora e "semiescritora" nas horas vagas.
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