De Leonardo Boff e Frei Betto a Marco Aurélio Garcia e João Pedro Stédile, os ideólogos de esquerda com grande influência dos anos 70 aos dias de hoje.
1. Teologia da Libertação e Doutrina Social da Igreja Católica
O padre português José Narino de Campos (nasc. 1921), na sua obra intitulada Brasil: uma Igreja diferente, registrava, com estupor, o fenômeno da radicalização esquerdizante ocorrido no seio da Igreja Católica no Brasil entre 1960 e 1980, em que pese o fato de a maior parte dos bispos não terem aderido a essa tendência, que terminou sendo imposta por uma minoria, numa dinâmica típica de um aparelho comunista.
A respeito, o citado autor escrevia:
A crise da Igreja Católica no Brasil acompanhou a crise da Igreja no resto do mundo, porém aprofundando-a sob vários aspectos. A primeira consideração que ocorre ao espírito do observador, numa visão retrospectiva de vinte anos, é a extrema velocidade com que os bispos evoluíram nesse imenso país, do tradicionalismo que os distinguia para uma das mais avançadas posições do progressismo cristão. Outra característica do processo resulta de ter sido comandado, sistemática e firmemente, pelo órgão superior da hierarquia eclesiástica, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dominada pelos radicais a complexa estrutura da Conferência, puderam em poucos anos ser impostos, de cima para baixo, os novos cânones de comportamento, de um modo que faz muito lembrar a rebelião coletiva do Episcopado holandês. Existe uma diferença: no Brasil a maior parte dos bispos não aderiu aos desvios da teologia, mas tornou-se prisioneira e, desejando-o ou não, conivente da atuação da CNBB.
A Teologia da Libertação surgiu, no Brasil, nesse espaço de rebeldia contra a Igreja tradicional, ensejado pela CNBB. Os principais teóricos da mencionada tendência são Leonardo Boff (nasc. 1938), Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), Carlos Alberto Libânio Christo, vulgo “Frei Betto” (nasc. 1944), que foi ministro da área social do primeiro governo Lula (2003) e João Batista Libânio (nasc. 1932).
Duas teses são essenciais à mencionada doutrina: em primeiro plano, o lugar teológico onde ocorre a revelação de Deus aos homens e a sua redenção é a luta revolucionária dos oprimidos contra os opressores; em segundo lugar, o pecado não é mais uma ação individual, mas social, de forma que, para a sua erradicação, é necessário que haja uma mudança de estruturas, no sentido de implantar um socialismo que garanta o banimento definitivo do capitalismo. Só haverá verdadeira teologia da libertação, escreveu João Batista Libânio em documento da CNBB (1974), “quando os oprimidos levantarem livremente a sua voz e se expressarem direta e criadoramente na sociedade e no povo de Deus, e quando derem conta da esperança de que são portadores”. Tal arcabouço teórico serviu de base para a colaboração entre setores progressistas da Igreja Católica e os agrupamentos da esquerda radical que praticaram o terrorismo.
No seio do pensamento católico, no entanto, houve, no período estudado, contribuições que se situam no contexto da Doutrina Social da Igreja, superando a radicalização da Teologia da Libertação. Na trilha do “Humanismo Integral” proposto por Jacques Maritain (1882-1973), o pensamento católico contemporâneo elaborou completa reflexão política, a partir de uma posição moderada que margeia os ideais da democracia cristã e que valoriza a doutrina dos Papas sobre questões sociais, sem fugir à discussão dos problemas do mundo contemporâneo. Os principais representantes dessa vertente são: Alceu Amoroso Lima (1893-1983), Leonardo Van Acker (1896-1986), Hubert Lepargneur (nasc. 1925), Dom Boaventura Kloppemburg (1919-2009) e Urbano Zilles (nasc. 1937). De outro lado, os principais estudiosos do pensamento católico no período em apreço são: Antônio Carlos Villaça (1928-2005), Fernando Arruda Campos (nasc. 1930), dom Odilão Moura e Anna Maria Moog Rodrigues.
2. Socialismo, marxismo, lulopetismo e movimentos sociais
Depois da implantação da Nova República (1985), com o fim do ciclo militar, os partidos políticos voltaram a se organizar democraticamente. Nesse ano foi criado o Partido Socialista Brasileiro, como agremiação de intelectuais mobilizados pelo ideal da igualdade e da justiça social, na trilha dos ideais professados pelos antigos “Socialistas Humanitários” e recolhendo a herança do Partido Socialista organizado, em 1945, por Edgardo de Castro Rabelo (1884-1970), João Mangabeira (1880-1964) e Hermes Lima (1902-1978).
Os novos arautos do socialismo brasileiro são intelectuais de prestígio: Antônio Huaiss (1915-1999), Evaristo de Moraes Filho (nasc. 1914) e Roberto Saturnino Braga (nasc. 1931). A tese central da mencionada agremiação consiste na defesa da implantação do socialismo, entendido como imperativo moral da justiça social, mediante mecanismos democráticos. Como pensador socialista ligado à Igreja Católica destaca-se Cândido Mendes de Almeida (nasc. 1928), fundador da Universidade Cândido Mendes, co-fundador, nos anos sessenta, do IBESP e do ISEB, bem como do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Na década de 80 do século passado foi posto em prática, no Estado do Rio de Janeiro, o modelo chamado de “Socialismo Moreno”, de autoria de Leonel Brizola (1922-2004), eleito governador (1983-1987; 1991-1994), e do seu vice, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Tratava-se de uma variante de populismo, cujas teses fundamentais eram três: a – o sistema capitalista é responsável pelas “perdas internacionais” do Brasil, que comprometeram o crescimento econômico e o nível de vida da população; b – o novo socialismo deveria beneficiar, especialmente, as populações carentes dos morros cariocas, sendo a primeira providência proibir o acesso da polícia a tais lugares, para que se evitasse a repressão contra os humildes; c – o governo estadual deveria implantar os CIEPs, centros de ensino em que as crianças permaneceriam o dia inteiro.
Os resultados obtidos de tal programa foram bastante negativos: logo depois da posse de Brizola como governador do Rio de Janeiro, 800 empresas deixaram a região para se instalarem em outros Estados, notadamente em São Paulo; em segundo lugar, os morros cariocas transformaram-se em santuários do crime, onde os marginais começaram a fazer grandes transações de drogas e de contrabando, adquirindo inclusive armamento pesado. A guerra do tráfico que o Rio de Janeiro ainda sofre, teve os seus primórdios justamente aí, no primeiro governo de Brizola. A construção dos CIEPs, efetivada em áreas de grande trânsito veicular (opção criticada pela população, que achava pouco seguros esses locais para a entrada e saída de crianças), deu ensejo a enorme desperdiço de dinheiro público, fato que chegou a produzir a quebra, sob a gestão de Brizola, do Banco do Estado do Rio de Janeiro.
Pensadores marxistas destacados no período em apreço são: Nelson Werneck Sodré (1924-1999), Leandro Konder (nasc. 1936), Luiz Werneck Vianna (nasc. 1938), Gilberto Felisberto Vasconcellos e Carlos Nelson Coutinho (nasc. 1943).
O primeiro, militar de carreira, chegou ao generalato; de formação inicialmente positivista, evoluiu para a defesa do nacionalismo, tendo desaguado, ulteriormente, no comunismo, o que lhe valeu a cassação dos direitos políticos no regime militar (1964-1985). Luiz Werneck Vianna, cientista político, é pesquisador no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Leandro Konder formou-se em Direito no Rio de Janeiro, tendo ingressado no partido comunista, militando como jornalista, o que lhe causou o exílio durante o período militar, tendo morado na Alemanha; após a abertura democrática, iniciada em 1979, voltou ao Brasil e desempenha funções docentes na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bem como na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo formado pela USP e leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora; desenvolveu um pensamento autônomo, de inspiração marxista, formulado no contexto de uma concepção barroca da realidade brasileira, inspirada na estética do cineasta Glauber Rocha (1939-1981). Carlos Nelson Coutinho formou-se em filosofia pela Universidade Federal da Bahia; durante o regime militar residiu na Itália e na França, sendo atualmente professor universitário no Rio de Janeiro.
Nos últimos oito anos deu-se a ascensão ao poder do Partido dos Trabalhadores, que conquistou, na eleição de 2002, a presidência da República, com Luiz Inácio Lula da Silva (nasc. 1945), com dois mandatos que se estenderam até o final de 2010, com a eleição, nesse ano, da candidata oficial Dilma Rousseff (nasc. 1947).
Embora o PT tivesse tentado a eleição presidencial em duas outras oportunidades (1989 e 1994), nunca tinha conseguido a maioria dos votos do eleitorado, em decorrência da radical plataforma apresentada nessas oportunidades, inspirada no modelo cubano de ditadura comunista. No entanto, na campanha de 2002, o programa de governo do candidato Lula foi reformulado (na denominada “Carta do Recife ao Povo Brasileiro”), de forma a apresentá-lo como situado no contexto das propostas social-democratas, com uma plataforma que propendia pela manutenção das estruturas do governo representativo, com salvaguarda das liberdades civis, preservação da política macroeconômica vigente, respeito aos contratos internacionais e às privatizações efetivadas nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, preservação da propriedade privada e da empresa capitalista e aceitação da rotatividade no poder, de acordo aos resultados dos pleitos nas urnas.
Galgado o poder em janeiro de 2003, as tendências radicais no seio do PT começaram a exigir o cumprimento da agenda marxista original, sendo que, para conseguir o consenso necessário à manutenção do governo, Lula da Silva partiu para a cooptação do Congresso, mediante a prática sistemática da compra de votos das bancadas partidárias, o que ensejou o denominado affaire do “mensalão”. Para superar o escândalo e cooptar os setores mais carentes da sociedade civil, o governo partiu para uma política de generosa distribuição de recursos orçamentários aos denominados “movimentos sociais”, cuja peça-chave foi o programa denominado de “bolsa família”.
O gasto público, em conseqüência, sofreu um forte aumento, com comprometimento das metas de controle da inflação. O funcionalismo público cresceu acima da média das décadas anteriores, o que acabou agravando o quadro de desequilíbrio fiscal. Foram eliminados, de outro lado, os controles que tinham sido estabelecidos por Fernando Henrique Cardoso sobre o gasto público (independência do Banco Central, ação vigilante do Tribunal de Contas da União, lei de responsabilidade fiscal da União, Estados e Municípios, etc.). O sistema sindical do operariado foi eximido da obrigação de prestar contas dos seus gastos aos órgãos fiscalizadores, agravando, assim, o já acelerado endividamento do setor público. Ao ensejo dos eventos esportivos futuros (Copa do Mundo de Futebol, em 2014 e Olimpíada do Rio de Janeiro, de 2016) foram esquecidos os requisitos legais de concorrências públicas, abrindo assim um tremendo desfalque dos cofres públicos, já antes de terem sido culminadas as obras. Nessa trilha de generosidade oficial, foi eleita a candidata do PT, Dilma Rousseff.
O articulador da política do PT é José Dirceu (nasc. 1946), conhecido militante de formação marxista-leninista, ex-deputado federal e ex-ministro da Casa Civil do primeiro governo Lula. O principal ideólogo do Partido no governo é Marco Aurélio Garcia (nasc. 1941), formado em filosofia e direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professor licenciado no Departamento de História da Unicamp. Nos anos 60 foi vice-presidente da UNE e vereador na cidade de Porto Alegre. Na década de 70 esteve exilado no Chile e na França. Após a anistia, voltou para o Brasil e colaborou, ao lado de Luiz Inácio Lula da Silva, na fundação do Partido dos Trabalhadores. Em 1990, na condição de Secretário de Relações Internacionais do PT, foi, junto com Lula, um dos fundadores do Foro de São Paulo, entidade internacional imaginada por Fidel Castro (nasc. 1926) para reunir todos os grupos da esquerda comunista da América Latina. Foi Secretário de Cultura nos municípios de Campinas e São Paulo.
Um outro ideólogo importante do governo petista é Luiz Dulci (nasc. 1956). Formado em letras clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor de língua e literatura portuguesa desde 1974, especializado em educação de adultos; é também militante do movimento sindical dos professores e trabalhadores na Educação no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Desempenhou-se como ministro do gabinete Lula, na Secretaria Geral da Presidência.
Principal ideólogo dos movimentos sociais (que, como foi frisado, têm sido generosamente contemplados com recursos do orçamento pelos governos petistas), sobressai o economista João Pedro Stédile (nasc. 1953), líder do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), vinculado ao movimento internacional “Via Campesina”. O MST reivindicou, até o final de 2007, a Reforma Agrária, realizando invasões de terras produtivas, com a finalidade de presionar o governo para que liberasse, em seu benefício, verbas do orçamento destinadas à Agricultura Familiar. Esvaziada a capacidade de mobilização do MST, em decorrência do programa Bolsa Família, os dirigentes mudaram de objetivo: combatem, agora, as agroindústrias, que seriam representantes do capital especulativo internacional e lutam pela reestatização de empresas privatizadas como a Vale do Rio Doce.
O MST realizou, ao longo das duas últimas décadas, agressivo programa de conscientização revolucionária, utilizando manuais marxistas-leninistas de guerrilha rural, chegando até a criar uma “Universidade do MST”, no interior do Estado de São Paulo. Um dos críticos mais contundentes do MST é o cientista político (e ex-militante desse Movimento) Zander Navarro (nasc. 1952), atualmente pesquisador da EMBRAPA, em Brasília. Para ele, “aos poucos o MST centralizou suas decisões (…) tornando-se menos democrático e aberto à participação de seus aderentes (…). Tornou-se, portanto, nos anos recentes, um movimento de quadros, em consonância com o manual leninista”.
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leia também:
Pensamento político brasileiro contemporâneo (1/6) – a escola weberiana
Pensamento político brasileiro contemporâneo (2/6) – liberalismo
Pensamento político brasileiro contemporâneo (3/6) – conservadorismo e tradicionalismo
Pensamento político brasileiro contemporâneo (4/6) – Escola de Frankfurt e social-democracia
texto preparado originalmente para o acervo do Centro de Documentação
do Pensamento Brasileiro, com sede em Salvador.