O Petrolão não é mais um problema do patrimonialismo, mas o manejo do que restou do patrimonialismo para solapar as instituições e corromper a democracia
Sempre que o noticiário é tomado por notícias de corrupção dos gestores da máquina pública, uma palavra mágica pulula diante de nossos olhos como explicação para todos os males: patrimonialismo. Transformado em (quase) tudo, a vulgarização do conceito parece mais nada explicar de particular, abarcando qualquer desvio de finalidade da coisa pública.
De influência weberiana, o termo patrimonialismo foi criado para definir um Estado onde o patrimônio público não se distinguia do patrimônio privado de seu governante, sendo comum no Antigo Regime, onde o Estado corresponderia ao arbítrio do monarca. O patrimonialismo seria, portanto, a confusão entre o público e o privado, afetando a isonomia republicana. No Brasil, o patrimonialismo teria sido implantado pelo governo português na concessão de títulos, terras e poderes na época de colônia. Até hoje, haveria dentro do Estado brasileiro a confusão do público com o privado, já que os políticos veem a si mesmo e sua família como detentores da coisa pública.
Assim, diante do maior escândalo de corrupção da história republicana, logo alguns recorrem ao conceito: é o velho patrimonialismo brasileiro, apenas exposto à plena luz. No entanto, o que define patrimonialismo não é só a simples confusão entre público e privado (até mesmo porque na prática o homem não é um ser partido em duas metades separáveis, e nem sempre é simples essa distinção), mas a confusão entre a autoridade do indivíduo e a autoridade das instituições.
Pela confusão entre o que fundamenta a autoridade, o patrimonialismo hoje é basicamente recluso ao poder regional. Ele está quase sempre ligado aos políticos do populacho, que não incorporaram a mentalidade republicana. São caciques regionais, líderes locais, famílias históricas, deputados de paróquia ou do “baixo clero”, etc. Em muitas cidades do interior, o povo gosta de se identificar com famílias históricas que simbolizam a região. Embates históricos entre elas são parte da identidade do lugar e do se sentir integrado à comunidade, com suas perdas e ganhos.
As elites progressistas não convivem bem com essa realidade, que veem como sintoma de atraso do Brasil profundo, miserável e conservador. A base parlamentar dos governos progressistas da Nova República tem sido o elo com o populacho. Se ninguém consegue se eleger sem ter a empatia das elites progressistas, também não consegue tal feito, nem governar, sem as lideranças regionais, os caciques locais, por vezes representantes do patrimonialismo remanescente.
Por isso, as elites progressistas projetam no populacho e em seus políticos o grande problema da corrupção no país. A narrativa da elite progressista é simples: os governos precisam se submeter à chantagem do legislativo e, assim, concedem benesses e indicações que geram superfaturamento. Essa seria a fonte da corrupção no país. Há alguma verdade nisto, mas não vai ao centro da questão.
Uma denúncia (provavelmente justa) contra o inimigo número um da elite progressista de hoje, Eduardo Cunha, vira capa de jornal do dia seguinte, destaque nos sites por um dia inteiro, análises de como ele é a causa do grande mal do país. Já denúncias de Ricardo Pessoa de que a campanha da presidente Dilma foi feita com dinheiro público que virou propina não têm a mesma repercussão.
A elite progressista põe a culpa no “congresso conservador”, no atraso do populacho, no perigo de Eduardo Cunha e seus comparsas do “baixo clero”, mas o centro do esquema se encontra no poder executivo e não no populacho renegado. O Petrolão não é mais um problema do patrimonialismo brasileiro, mas o manejo do que restou do patrimonialismo para produzir uma hegemonia. O alicerce é a hegemonia, não o patrimonialismo.
Uma das grandes confusões no debate público a respeito do período petista no poder da nação é a confusão entre moderação e pragmatismo. Não se pode confundir crenças e desejos de indivíduos e seu coletivo, a sua visão de mundo, com as condições reais práticas e materiais que eles irão encontrar em certa realidade histórica. Enquanto o pragmatismo dirige-se a esta, a moderação dirige-se àquela. Os partidos comunistas ligados ao stalinismo sempre foram pragmáticos (aliando-se até mesmo a partidos de centro-direita ou extrema-direita caso fosse do interesse do partido), mas nunca foram moderados, pois não tinham a tolerância como princípio político.
O Partido dos Trabalhadores (PT) nasce em 1980, unindo grupos sindicais, católicos próximos da teologia da libertação e intelectuais e artistas de esquerda. Em síntese, é a união de setores da antiga esquerda brasileira com o sindicalismo. O PT nasce com um viés socialista e como partido pragmático que aceita o jogo da “democracia burguesa”, para dela se utilizar. A democracia liberal não lhe era fim, mas meio para alcançar o poder, apossar-se do Estado e criar uma hegemonia onde o partido estenderia seu domínio ideológico sobre todas as esferas da sociedade e tornar-se-ia seu denominador comum.
Durante os anos 90, depois de sucessivas derrotas, o partido vai se tornando ainda mais pragmático e aberto a velhas táticas de cooptação. Lula aparece como favorito para as eleições de 2002. Tinha simpatia de amplos setores da elite progressista e carisma pessoal. Era preciso selar alianças para alcançar o populacho e vender-se como moderado na economia, sem prejuízo do seu projeto original de estender aos poucos sua hegemonia pela sociedade. Lula, Dirceu e companhia costuram acordos com vários caciques regionais no primeiro e segundo turno.
Dentro do consenso social-democrata da Nova República, o PT representava a principal oposição ao PSDB, oferecendo uma inflexão maior à esquerda sem radicalismos. A vitória de Lula foi o auge do consenso de esquerda entre as elites. O entusiasmo era efusivo. O Jornal Nacional evoca esperançoso na sua posse a vitória da democracia, o auge de nossa civilização com um operário chegando ao poder nos braços do povo. Era a hora de um novo Brasil, adequado ao progresso inclusivo.
Todavia, era preciso estabelecer as bases da governabilidade que alicerçariam o projeto de poder que deveria garantir a hegemonia. Miro Teixeira foi o primeiro ministro das comunicações na era petista. No auge da crise do Mensalão, Miro afirmou que havia intensas discussões em janeiro de 2003 em como sustentar uma base no Congresso. A escolha foi contornar o “Congresso burguês” a partir da compra de consciências.
Entretanto, o PT não precisa de maioria apenas para governar ou fazer reformas, mas para garantir sua hegemonia. Em entrevista a Bruno Torturra, o ex-petista Eduardo Jorge fala sobre sua decepção com o partido: “Eu saí porque perdi a confiança na direção do PT. (…) Porque eles se comportavam com uma visão muito própria da esquerda revolucionária de que o partido é mais importante do que o país. O partido é mais importante do que o Brasil, mais importante do que a vida do próprio povo”.
No livro Tudo ou Nada, Malu Gaspar conta uma história interessante que envolveu Eike Batista logo após a vitória de Lula em 2002. Emissários petistas foram ao seu escritório procurando financiamento para pagar dívidas de campanha. Os emissários falaram que estavam construindo os “empresários do PT”, empresários progressistas que contribuiriam com o partido e, assim, receberiam de volta bons olhares dos donos do poder. Eike contribuiu, mas não se tornou logo um integrante do clube. Só depois, no auge das ilusões do segundo governo Lula, ele se tornará um “empresário do PT”.
O PT não inventou a corrupção. Superfaturamento em obras públicas, propinas, desvios de dinheiro para enriquecimento ilícito e apropriação do erário já existiam. Porém, a grana que o patrimonialista desvia ou que o político do populacho se apropria é uma demanda infinitamente menor da de quem precisa desse desvio para garantir uma hegemonia. O PT não turbinou o patrimonialismo, mas utilizou-se dele ao sistematizar um esquema que corrompesse a democracia e solapasse as instituições para garantir sua hegemonia. Os políticos oriundos do patrimonialismo representam a confusão de autoridade entre o público e o privado no plano regional, cada vez mais local, mas não possuem um projeto de poder, não necessitam desmontar o Estado para fundar sua hegemonia.
Para garantir sua hegemonia, o PT precisava aparelhar cada parte do Estado de direito, sistematizar um esquema de captação de propinas (que tudo indica já tinha sido posto em prática em cidades paulistas) para comprar apoios, sua base parlamentar e patrocinar eleições suas e de seus aliados. Obviamente que, quem rouba para o projeto de poder, rouba também em benefício pessoal.
Ex-gerente da Petrobrás, Pedro Barusco garante que, a partir de 2004, a propina foi institucionalizada na empresa. O que antes já existia tornou-se um esquema com método porque tinha uma finalidade: alimentar o projeto de poder, criar uma hegemonia. O Mensalão e o Petrolão possuem a mesma finalidade, e provavelmente outros esquemas semelhantes funcionaram (e funcionam) em cada braço do Estado brasileiro.
O Mensalão foi um golpe de estado. O governo comprava sua base parlamentar, criando um legislativo paralelo que aprovava seus projetos, dando-lhe poder político ilimitado. Assim, interditava-se a democracia ao acabar com os checks and balances, a tripartição de poderes e o poder soberano do voto. De onde vinha o dinheiro para as propinas? Era dinheiro público vindo do Banco do Brasil ou de empréstimos fraudados feitos pelo Banco Rural ao PT e à SMPB de Marcos Valério, que se encarregava de lavar o dinheiro para pagar propinas aos parlamentares, dívidas da campanha de 2002 do PT, e abastecer campanhas eleitorais do PT e de seus aliados.
Fica claro então que não se tratava de corrupção banal, de apenas enriquecimento ilícito de pessoas que se corromperam, mas de corrupção com uma dimensão política, que servia a um projeto de poder e não só de governo. Nas democracias modernas, os partidos chegam ao poder, exercem-no dentro da legalidade e se submetem a novos escrutínios eleitorais, onde frequentemente ocorrem rodízios. O partido deve ter projeto de governo para apresentar à sociedade, não um projeto de poder, pois cada um deles representa apenas parte, e não o todo, da sociedade.
O esquema montado pelo Partido dos Trabalhadores não só comprava aliados no Congresso, como dizia respeito a novas campanhas eleitorais. Quando um partido tem um projeto de poder que visa a sua manutenção indefinida, ele busca a hegemonia contra o pluralismo político, querendo ele próprio virar o todo da sociedade (ao objetivar ser ele sua total representação), transformando-a a partir deste poder instituído e cassando as prerrogativas da democracia. Todo e qualquer partido que tenha um projeto de poder quer ele próprio se transformar na totalidade da sociedade, sabotando as prerrogativas da democracia (que só funciona a partir do pluralismo). É precisamente o que ficou demonstrado no Mensalão.
O Petrolão segue essa linha. Os apoios políticos eram comprados com o dinheiro que seria arrecadado nas diretorias, alimentando o bolso de parlamentares e os caixas de partidos para novas eleições. O PT tinha o maior apetite, pois precisava sustentar não um ou outro cacique no poder, mas alimentar sua hegemonia. O sentido da democracia foi corrompido.
A tentativa de produzir uma hegemonia na sociedade coroa o consenso social-democrata da Nova República. Não há agência reguladora onde os petistas não tenham colocado a mão. O desmonte do Estado de direito, seu aparelhamento em proveito de um projeto de poder que significa a onipresença de um Estado socializante, é o seu resultado – sua apoteose e sua crise. As elites progressistas se dividem, e mesmo o consenso das ideias progressistas entre elas ameaça ruir. Os parlamentares do populacho, ligado às elites políticas locais, pela primeira vez na Nova República quebraram a cadeia de apoios ao presidente. As mudanças que ocorrem no Brasil, a revolta contra essa tentativa de totalizar o Estado brasileiro a partir de uma hegemonia, produz algo diferente e saudável: a possibilidade de nos reencontrarmos com nosso passado, de sair da dialética entre elite progressista e populacho. Mas este é assunto para um novo artigo.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.
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