O ideário petista (e dos outros partidos brasileiros) se adéqua muito bem à estrutura patrimonialista, justamente porque emana dela.
O patrimonialismo não é um conceito fácil. Nem de se compreender e nem de se aplicar em alguma análise da realidade presente ou da história. Da mesma forma, o patrimonialismo não é uma realidade concreta, não “existe” ontologicamente, mas é um recurso interpretativo. Na teoria weberiana, o patrimonialismo se constitui como um tipo ideal, que seria, grosso modo, um conceito geral que explica várias realidades históricas distintas, mas com alguns pontos estruturais em comum no que se refere ao tipo de dominação, às relações econômicas e à sociabilidade. Assim, podemos dizer que o patrimonialismo trata de “estruturas”, ou seja, de práticas de longa duração, que se mantêm a despeito de transformações conjunturais ou de fatos novos.
Justamente por seu caráter abrangente, o patrimonialismo é confundido com outros conceitos, como o coronelismo e o clientelismo. Tais fenômenos não excluem o patrimonialismo – podem coexistir e quase sempre coexistem com uma estrutura patrimonial – mas são mais “limitados”, mais restritos a um determinado conjunto de relações específicas, muitas vezes numa região específica. Da mesma forma, o patrimonialismo também pode explicar questões políticas regionais, mas é um conceito que tem como função explicar um conjunto de relações mais abrangentes no tempo e no espaço.
Diante disso, pode-se perguntar, então, qual seria a aplicação correta do conceito de patrimonialismo, quais relações de poder, qual tipo de cultura social ou política poderia ser classificado como patrimonialista e quais não poderiam.
Seria muita pretensão, ainda mais no espaço de um pequeno artigo, explicar todas estas questões. No entanto, podemos distinguir algumas “constantes” que permitiram “classificar” uma sociedade como patrimonialista. Entre elas podemos citar: o Estado como pólo condutor da sociedade; a forma de domínio “de cima para baixo”, na qual o poder vai do Estado em direção à sociedade; a cooptação política; e o capitalismo politicamente orientado. Além disso, todas estas características remetem a um tipo de exercício de poder com pouca calculabilidade, ou pouca previsibilidade, em que as leis e as instituições não limitam o poder do soberano e do estamento burocrático, mas, ao contrário, são suscetíveis às suas decisões.
O Estado como “pólo condutor” caracteriza uma sociedade em que as relações privadas são precárias, em que há pouca subsidiariedade, poucas decisões descentralizadas, enfim, em que toda a vida social, todas as esferas da sociedade dependem e esperam demais do Estado. O Estado age, não com base em normas objetivas e impessoais, em instituições consistentes e perenes, mas sim pela tutela e pela arbitrariedade do soberano e do estamento burocrático. O Estado assume o papel de “pai do povo” e seus “súditos”, pobres ou ricos, esperam isso dele.
No âmbito das leis, da atividade legislativa e seus motivos, Raymundo Faoro, o autor que mais se destacou ao aplicar o conceito de patrimonialismo à realidade brasileira, afirma que “a vida social será antecipada pelas reformas legislativas, esteticamente sedutoras, assim como a atividade econômica será criada a partir do esquema, do papel para a realidade”. Ao mesmo tempo, a “permanência da estrutura exige o movimento”. Com isso, influências vindas de fora, pelo contato ou intelectualmente, são amoldadas pelas “camadas dirigentes”, que impregnam valores peculiares, condizentes com o esquema de domínio.
Ainda, em relação ao governante e ao governo central, Faoro ressalta:
O conteúdo do Estado molda a fisionomia do chefe do governo, gerado e limitado pelo quadro que o cerca. O rei, o imperador, o presidente não desempenham apenas o papel do primeiro magistrado, comandante do estado-maior de domínio. O chefe governa o estamento e a máquina que regula as relações sociais, a ela vinculadas. A medida que o estamento se desaristocratiza e se burocratiza, apura-se o sistema monocrático, com o retraimento dos colégios de poder. Como realidade, e, em muitos momentos, mais como símbolo do que como realidade, o chefe provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e incentivos, distribui mercês e cargos, dele se espera que faça justiça sem atenção às normas objetivas e impessoais. No soberano concentram-se todas as esperanças, de pobres e ricos, porque o Estado reflete o pólo condutor da sociedade. O súdito quer a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores de riqueza, na ambigüidade essencial ao tipo de domínio.
A cooptação política, também um conceito mais amplo e complexo dentro do próprio conceito de patrimonialismo, descreve as relações políticas entre os diferentes grupos que aspiram ao poder, porém numa estrutura política e social em que o conflito político não é desejável para a resolução dos problemas. A cooptação consiste no fato de que o grupo que possui mais poder faz algumas concessões para neutralizar as potenciais oposições, incorporando os diversos grupos políticos em torno de um mesmo projeto de poder. Um exemplo disso na Era Petista é o fato do governo ter apoio, ao mesmo tempo, de parte dos ruralistas e do MST.
O “capitalismo politicamente orientado” se refere à condução política da economia, que mesmo em seu formato de produção capitalista não incorpora as características de racionalidade e previsibilidade existentes nas sociedades em que o capitalismo mais se desenvolveu. No patrimonialismo, se mantém um pré-capitalismo, um mercantilismo, onde o Estado tutela e conduz a economia. Muitas vezes, esse tipo de ingerência estatal é legitimado e justificado por um suposto modelo de desenvolvimento, que conduziria ao crescimento econômico sem comprometer a “soberania nacional”, motivando, assim, práticas protecionistas, subsídios para determinados setores da economia ou mesmo para determinadas empresas, vistas como “estratégicas” – e, em geral, com boas relações políticas.
Para Faoro, “no curso dos anos sem conta”, o patrimonialismo estatal incentivou o setor especulativo da economia, “voltado ao lucro como jogo e aventura”, ao mesmo tempo em que tentou promover o desenvolvimento econômico sob o comando político. Também adotou “o mercantilismo como técnica de operação da economia”, gerando um capitalismo politicamente orientado, “não calculável nas suas operações”. Ao contrário do feudalismo, que se enrijece e parte-se diante do capitalismo, o patrimonialismo adapta-se às transições, “em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentra no corpo estatal os mecanismos de intermediação”, através de “manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia.”
Enfim, a partir da exposição destas características, vemos que o patrimonialismo não se mantém apenas através de “resquícios”, mas ainda de forma estrutural, e se reproduz a despeito das mudanças nos discursos e nas legitimações políticas, bem como a despeito das transformações formais nas instituições, nos regimes e nos processos políticos.
A Era Petista em nenhum momento deu sinais de ruptura com o patrimonialismo. Ao contrário, o ideário petista, assim como o dos outros partidos e grupos políticos brasileiros, se adéqua muito bem à estrutura patrimonialista, justamente porque emana dela. No patrimonialismo, o “conteúdo do Estado” molda o conteúdo político dos grupos organizados que pretendem chegar ao poder. Do mesmo modo, não existe uma “fórmula” para superar o patrimonialismo, mas existem várias formas de praticá-lo, que podem se apresentar com diferentes faces, sendo que todas elas afirmam a crença no Estado, a “necessidade” do controle político sobre a economia e fazem os representantes políticos se sentirem e agirem como “os donos do poder”.