A criatura poderia ter se revoltado contra seus criadores. Mas infelizmente estamos no país do anticlímax.
Temos um sujeito inteligente, ou melhor, esperto, matreiro e sem nenhum talento para nada de produtivo ou criativo. Mas é exatamente por sua evidente falta de distinção que uma camarilha de intelectuais da elite o escolhe, não só como possível representante do povo, mas como sua mais perfeita encarnação individual. Os intelectuais, quase todos parentes ou amigos dos maiores empresários, banqueiros, donos de jornal etc. do país, conseguem aos poucos persuadir estes de que, para ser chique e reconhecida internacionalmente, a nação precisa alguma hora de um presidente “trabalhador”, oriundo do “povão”. Entre eles, no entanto, os intelectuais já se convenceram desde o primeiro momento de que o sujeito é o messias que veio lhes salvar a alma amestrada pelos jesuítas e trazer algum frisson a seu pacato dia a dia uspiano.
Para encurtar a história: fazendo-se de bobo inócuo, meio como o Cláudio de Robert Graves antes de ascender ao trono imperial, o tipo se deixa conduzir, não sem tropeções cômicos, à presidência da república e, a essa altura, por mais que, na formulação imortal da Despina em Cosí Fan Tutte, sua aparência seja “o verdadeiro antídoto do amor”, todas as mulheres de 8 a 80 anos com alguma inclinação intelectual já o consideram o irmão mais bonito e atraente de Brad Pitt e George Clooney. E até mesmo os intelectuais heterosexuals do sexo masculino estão de acordo e de joelhos.
A partir desse momento, o dito cujo poderia ter mobilizado seu poder e influência crescentes para propiciar de uma vez por todas condições dignas de existência para a classe trabalhadora em cujo nome discursava, e isso daria um romance, meio antiquado, mas tudo bem. Ou ele poderia recolocar a pátria numa posição superior no concerto das nações, enquanto consolidava a sua nova ou reencontrada grandeza. O conceito pode ser ultrapassado, mas é com ideias assim que se faz um D. Quixote ou uma Cingapura.
Ele poderia ter concluído que o que atravanca o país é todo o ferro-velho inútil chamado Estado, que a população inteira carrega o tempo todo nas costas. Concluindo que seria preciso se livrar de quase toda essa sucata, ele enfrenta a resistência renhida da intelectualidade que o criou e, como o Novo Prometeu de Mary Shelley (na obra mais conhecida como Frankenstein), a criatura se revolta contra seus criadores. Esse, claro, é o grande romance que nunca se escreverá por aqui. Mas digamos que, em vez disso tudo, uma vez encastelado em seu palácio, nosso pacato absenteísta padrão, deixando de lado a máscara, mostrasse sua verdadeira dentição composta apenas de caninos dilaceradores e ressurgisse como El Señor Presidente, Yo, El Supremo, El Chivo etc.
Passando a tomar pelo menos três banhos de sangue por dia, violentando uma dúzia de virgens por noite — virgens que os próprios pais lhe forneceriam para pleitear influência na corte –, torturando e executando tanto os inimigos quanto os amigos (para manter o equilíbrio ecológico), criando a cada semana um novo serviço secreto para vigiar os membros sobreviventes dos serviços secretos criados nas semanas anteriores, ele se tornaria o déspota mais sanguinário do continente e suas atrocidades só não seriam cantadas em verso e prosa porque ele já teria mandado arrancar a língua dos cantores ainda vivos. Horrendo? Assustador? Sem dúvida. Mas teria sua inegável grandeza trágica (ambição, hybris) e seu lado de realismo maravilhoso que, convenhamos, são o que há de melhor na ficção da América Latina.
Acontece que estamos no país do anticlímax, onde romancista só presta se fala o tempo todo de uma Amazônia kitsch ou de favela realista-socialista, cada qual devidamente carnavalizada. Assim, de todas as possíveis narrativas, a escolhida foi justamente a paupérrima, aquela que é melancólica demais para se narrar. O sujeito chega ao poder aclamado pelo povo, apoiado pelos setores, categorias, grupos mais diversos, e é tão idolatrado pela classe média intelectualizada e responsável pelo clima de opinião, que, por mais de uma década, nenhum humorista, satirista, nenhum escritor, dramaturgo, ator ou cineasta sequer ousou fazer a seu respeito a mais inocente piadinha, o gracejo mais inócuo que que fosse possível. Nem Maomé é tão unânime entre os muçulmanos.
E, ao fim e ao cabo, toda a degradação que se viu, toda a corrupção recordista e o inominável restante serviam apenas para enriquecer ainda mais um bando de velhos matutos do mato adentro, uma jagunçada endinheirada cuja Frick e Wallace Collections se compõem de Ferraris e jatinhos, gente tão cafona e tão medíocre, que, perto dela, os robber barons americanos do século 19 ou os judeus centro-europeus que erguem Hollywod eram personagens dignas da mitologia grega, das lendas mesopotâmicas, das sagas nórdicas.
Mas isso ainda não é o pior. Sabem o que foi que o Homem ganhou pra ser “o homem” deles, seu intendente, intermediário, agregado, pau-pra-toda-obra? Miçangas e aguardente. Um sitiozionho com um laguinho com pedalinhos, um duplexinho ou triplexinho no Guarujá, mais alguns restos e migalhas. E tapinhas nas costas. Que romance é que isso rende? Se houver algum possível, será baixo demais, deprimente demais. Eu não teria estômago nem para chegar perto do assunto. Melhor deixar os puxa-sacos de sempre cuidar disso. Em suas hábeis mãos, após faturar todas as bolsas e levar todos os prêmios, isso vira simpósio na Unicamp, leitura obrigatória de vestibular, tema central de festivais literários, para acabar filmado com apoio da Petrolãobrás.