O PSDB, o PT e o PMDB simplesmente acabaram com qualquer espécie de oposição no debate político do país.
Como bem diz o editorial histórico do Estadão publicado hoje, estamos vivendo aquilo que, em breve, será conhecido como “o fim do torpor“. Durante os treze anos em que o PT ficou no poder, entre mil e uma discussões sobre como deveríamos resistir a um poder político que, pouco a pouco, nos sufocava em um “sistema pós-totalitário” (de acordo com Václav Havel), sempre ouvia a seguinte pergunta:
– Mas qual é a solução, Martim, qual é a solução?
Cada vez que ouvia isso, tinha de me lembrar constantemente que vivíamos em uma época entrópica, em um mundo e em um país que escolheu a apatia como instituição e a pusilanimidade como uma forma de existência. Confessava a mim mesmo que o final do meu raciocínio não era lá muito esperançoso – e, inclusive, muitos me acusavam de “comodismo” e “quietismo político”.
Nada mais errado. Quem me conhece sabe que sou completamente contra o “quietismo político” – a nemesis da política do ceticismo que se disfarça sob os nomes de “tolerância”, “pluralismo” e “conciliação”. Trata-se nada mais nada menos de uma paralisia do espírito que estimula a tal da entropia sobre a qual já falei. “The best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity“, dizia o bom e velho Yeats, em um verso já popularizado por Olavo de Carvalho como epígrafe de O Imbecil Coletivo.
Para quem ainda não está familiarizado com alguns termos, a política do ceticismo é uma atitude que se contrapõe à chamada política da fé. Os conceitos não são meus e sim de Michael Oakeshott. A fé, no caso, não é a crença religiosa, mas uma fé ao acreditar piamente que só a razão humana, em sua auto-suficiência, pode resolver os problemas humanos e, conseqüentemente, também os problemas políticos. O ceticismo é a atitude de oposição, que se resguarda das supostas vitórias da razão, e prefere deixar as circunstâncias e a falibilidade humana ditarem os fatos. Segundo Oakeshott, os maiores exemplos de política da fé seriam os progressistas, os liberais e os socialistas; e os do ceticismo seriam ninguém menos que os mal-fadados conservadores.
Oakeshott falava a partir de uma perspectiva européia e frisava um detalhe em seu raciocínio: ambas as atitudes podem, em um determinado momento, parecer semelhantes. Além disso, elas não são atitudes ideológicas – ou seja, não são sistemas acabados de dogmas ou argumentações encadeadas. São somente atitudes de governo, nunca de Estado. A área que Oakeshott desejava abarcar era um espectro de ação pré-política, antes de qualquer classificação partidária e, claro, de ideologia.
Como estamos a tratar do Brasil, ficamos afoitos em encaixar a teoria de Oakeshott no nosso mundo político. Qualquer um que tenha o mínimo de racionalidade sabe que isso é impossível. E o motivo é simples: não há como encontrar nenhuma espécie de atitude de oposição quando se está entre uma política da fé e uma política do ceticismo. Durante anos e anos, a tradição política brasileira se baseou nos pilares da “conciliação”, como descreve bem Paulo Mercadante em seu livro A Consciência Conservadora no Brasil. O conservador citado aqui não é o mesmo que se inspira em Burke, Nabuco, Tocqueville ou Churchill; talvez, neste caso, um outro sinônimo para isso é “acomodado”. O político prefere se “acomodar” no rame-rame estatal e faz suas “conciliações” conforme as circunstâncias permitem ou exigem, esquecendo-se, é claro, de um possível projeto de nação ou até mesmo de preocupar-se com o que a sociedade necessita concretamente. Esta linha de pensamento formou a nossa tradição da “social-democracia obscurantista” (uma outra expressão de Paulo Mercadante) que, nos dias atuais, é representado pelos partidos do PSDB e do PT.
Estes dois partidos, apesar de aparentarem uma “oposição”, na verdade falam a mesma língua e trocam farpas no mesmo ambiente cultural. São duplos miméticos, para usarmos um termo girardiano, em que um imita o outro conforme a rivalidade se intensifica, tornando-os indistinguíveis quando a propaganda os faz parecerem diferentes. Formam a “social-democracia obscurantista” porque criaram o “sistema pós-totalitário” que vivemos nos nossos dias. Você pode até pensar que não vivia em um regime totalitário porque ainda (repito: ainda) não tinha sido preso por uma Securitate ou uma KGB tupiniquim, mas pergunto-lhe: Já tentou falar de algo que escape do relativismo moral que abunda em boa parte dos departamento das universidades e na maioria das redações de jornais? Experimente falar de qualquer tema metafísico ou religioso; é certo que você será catalogado como “carola”. Defenda a hierarquia da realidade, em que a ordem das coisas se sobrepõe ao fanatismo da igualdade – e veja como as pessoas não o convidarão mais para o cocktail bacana onde você poderia descolar um empreguinho trendy. Isso sim é totalitarismo – e o pior de todos, pois é o totalitarismo consentido, fortalecido na pusilanimidade humana, na apatia da ação débil, que confunde caridade com conivência criminosa. Se não matam o seu corpo, matam a sua alma.
O PSDB, o PT e o PMDB simplesmente acabaram com qualquer espécie de oposição no debate político do país. Eles são adeptos totais da política da fé; são jacobinos elevados à terceira potência, tomando decisões dentro de seus gabinetes, completamente descolados do real, possuídos por uma ideologia que, somada à libido dominandi, resulta no país em que vivemos: uma vitrine feita apenas para inglês ver que, seduzida pelas estatísticas e pelos números, acha que estava em pujança econômica quando, na verdade, apenas dava o primeiro passo para a queda definitiva.
Para piorar, não temos sequer uma resistência digna de nome. Exceto o trabalho pioneiro de Olavo de Carvalho, que avisou todo mundo, mas ninguém ouviu (e, quando ouviram, entenderam tudo errado), não se pode contar com uma vivalma; nem com os liberais, que se preocupam somente com a economia e com uma tal de “liberdade” que nem eles próprios desconfiam o que seja; nem com os conservadores, que não existem no Brasil e, se isso ocorrer, tenham certeza de que será um milagre; nem com uma suposta resistência cristã, que, dividida entre a Igreja Católica e uma parcela dos evangélicos, não sabem se tomam o lado da caridade dos tolos ou assumem de vez o vírus da Teologia da Libertação. E se alguém espera alguma coisa do setor empresarial, que, sem dúvida, é o que sai mais prejudicado com toda essa situação (afinal, o livre mercado só pode existir se a liberdade existir dentro de uma determinada ordem e hierarquia), podem esquecer: como já sabemos, o PT fez questão de comprar a consciência de cada um, tornando-os socialistas de carteirinha.
No aspecto cultural, as conseqüências foram seríssimas: a sociedade passa a viver em uma espécie de realidade alternativa, onde as coisas se apresentam como uma espécie de alucinação, impossibilitando os pequenos detalhes que fazem funcionar a vida prática. Mas como todos querem uma existência sossegada, então aceitam a situação e se abaixam até um dia o focinho alcançar o chão. É um passo para a “estratégia da avestruz”: enfiar a cabeça na terra e mentir para si mesmo parece ser a resposta certa – pelo menos segundo o establishment que ainda nos governa.
Quando uma sociedade se descola propositadamente da realidade, toda a sua cultura se torna um instrumento de poder. E quando as pessoas pensam somente dentro de uma lógica de poder, é apenas um passo para uma guerra civil. Contudo, essa guerra civil não acontecerá de modo apocalíptico, como supõem os petistas e seus acólitos; é a destruição das instituições por dentro, como o cupim que come a madeira, para depois atingir a população numa letargia sem precedentes, da qual ninguém sabe mais de onde vem o mal que a aflige. A guerra civil, na verdade, já aconteceu e se deu entre as famílias, entre os amigos, entre as pessoas mais queridas. E o fato de que, para destruir a sua vida, você não precisa mais de ter um inimigo e sim somente um bom amigo – eis a grande novidade do totalitarismo do século XXI.
Por isso, nesta situação sufocante, de torpor nauseabundo, as pessoas me perguntam:
– Mas qual é a solução, Martim, qual é a solução?
Confesso que não sei. Minha função não é dar solução para ninguém – nem mesmo eu tenho isso para a minha própria pessoa. Mas talvez possamos encontrar alguma pista ao lermos O Diário da Felicidade, do filósofo romeno Nicolae Steinhardt.
Logo na sua abertura, Steinhardt, que foi preso pela Securitate (a KGB romena), fala sobre as três soluções que dão certo para o homem que tenta se manter íntegro em qualquer ambiente que se sustenta no “sistema pós-totalitário”:
1) A primeira é inspirada em Alexander Solzhenitsyn, o autor de Arquipélago Gulag: a partir do momento em que você for preso, depois de ter atravessado o interrogatório de uma Gestapo, de uma KGB ou de uma Securitate, decida-se pela seguinte resolução – você é um homem morto. Se decidir isso, nada mais tem importância; podem torturá-lo, xingá-lo, incitar seus amigos e parentes à traição, nada disso lhe atingirá. Porque, afinal de contas, você morreu para o mundo;
2) A segunda é inspirada em um romance chamado As alturas ocas, de Alexander Zinoviev, a partir de um personagem apelidado de O Rebelde. Consiste em decidir pela total inaptidão em relação ao sistema. Você se finge de louco – aliás, torna-se o próprio bobo da corte; assim, pode gritar aos quatro cantos sobre as mazelas da sociedade. Portanto, ninguém o escutará porque, afinal de contas, sempre será considerado pelos outros como um pinel de marca maior;
3) A terceira é inspirada nos episódios das vidas de Winston Churchill e de Vladimir Bukowski. Churchill afirmava que, mesmo com o pressentimento de uma guerra terrível, sentia-se rejuvenescido como se tivesse vinte anos; Bukowski não podia esperar pelo momento de ser chamado pela KGB e enfim ser interrogado porque queria entrar na sala “como um tanque de guerra” e gritar a todos a verdade sobre a Rússia. Esta é a decisão do “retroceder nunca, render-se jamais”; a de que é melhor quebrar do que vergar; a do sujeito que encontra suas forças mesmo quando o combate parece estar completamente perdido.
Steinhardt afirmava que essas três soluções dão certo em termos práticos e ninguém lhe disse o contrário quando ele as viu acontecer. São atitudes essencialmente a-políticas, mas, se realizadas com uma certa retidão, por meio de indivíduos que colocam o “seu na reta” (ou “skin in the game“, nas palavras certeiras de Nassim Nicholas Taleb – como fizeram recentemente Sergio Moro e Janaína Paschoal, independente das suas crenças ideológicas) provocaram terremotos consideráveis na política de nosso país. Afinal de contas, a base do “sistema pós-totalitário” que reina no Brasil é a da estupidez humana. Logo, por que ter medo?, como já nos perguntava o Papa João Paulo II.
Portanto, leitor, agora sou eu quem lhe faço a pergunta, neste mesmo dia em que tudo leva a crer que estamos vivendo “o fim do torpor”:
Quando tudo desabar novamente ao nosso redor – e isso pode ser em breve, se não tomarmos cuidado e cantarmos a vitória antes do tempo -, qual será a solução que você escolherá?
Martim Vasques da Cunha
Autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide, 2012) e A poeira da glória (Record, 2015). Pós-doutorando pela FGV-EAESP.