Os anos 1980 possuem cada vez mais um sentido de “origem”.
Não há uma única cena no episódio piloto de Stranger Things em que não “me senti” nos anos 1980. Das sequências do laboratório a la Predador aos acenos gritados para Spielberg (ET, Contatos Imediatos do Terceiro Grau…), a Netflix criou, de fato, um produto voltado para a satisfação de um público inundado de nostalgia.
Quanto a essa nostalgia, o que explicaria o sucesso da série?
Os anos 1980 podem ser vistos como precursores do envolvimento que os consumidores atuais mantêm com os produtos culturais. É nessa época que se consolidou uma série de rituais de apreciação que extravasaram o culto dos filmes e culminaram no culto de conceitos, de personagens e de “filosofias de vida”.
Entre a fundação de uma “religião dos Jedis” (que hoje já nem soa tão exótica…) e a popularização mais recente do cosplay há todo um parentesco que indica os caminhos ainda abertos da cultura de massa.
Memória afetiva
Os anos 1980 possuem cada vez mais um sentido de “origem”. Essa década nos legou a figura forte do fã, que substituiu pouco a pouco os cinéfilos das décadas anteriores.
Por isso, o sucesso de Stranger Things não poderia ser uma simples questão de referência competente a gêneros fílmicos do passado, sendo também o aproveitamento de uma memória afetiva latente nos espectadores de hoje.
Nesse sentido, Todd VanDerWerff tem razão quando observa que a série captura a nossa experiência com os filmes. Isso só poderia ser fascinante para quem leva a cultura de massas dos anos 1980 na bagagem da sua formação pessoal.
Uma nota à parte: o jogo de realidade aumentada Pokémon Go certamente deve o seu sucesso a uma estratégia semelhante de flerte com a memória afetiva da geração formada pelo zeitgeist oitentista. É muito provável que o game não faria o mesmo sucesso sem o conceito de Pokémon. A realidade aumentada é apenas uma sofisticação que resgata e impulsiona novamente a marca.
Sem identidade
Dito isso, é preciso criticar a forma de Stranger Things. A decupagem das cenas de suspense são irritantes de tão óbvias. A alusão aos protótipos do cinema oitentista (os nerds, o policial beberrão e eficiente, a colegial, os tipos familiares etc.) não parecem capazes de parar de pé sem a referência à memória afetiva.
Stranger Things carece de uma identidade, e a parcela mais elogiosa da crítica só se justifica prendendo-se a aspectos isolados (os atores são bons, a direção de arte é boa…), ou transformando a referência aos anos 1980 em algo que, por si só, conferiria valor à obra (o que não é verdade).
Memória afetiva por memória afetiva, são muito melhores os bons filmes de Tarantino, que sempre souberam se apropriar do passado sem deixar de criar uma nova unidade formal com uma assinatura de estilo.
Rodrigo Cássio
Professor e pesquisador. Autor de Filmes do Brasil Secreto (Ed. UFG).
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