Encadeamento do espírito

por Wagner Schadeck (28/08/2016)

Em 'A Balada do Cárcere', por meio da poesia, Bruno Tolentino pretende libertar nossa cultura de suas amarras ideológicas.

"A balada do cárcere", de Bruno Tolentino (Record, 2016, 224 páginas)

“A balada do cárcere”, de Bruno Tolentino (Record, 2016, 224 páginas)

As grandes obras do espírito humano possuem características comuns. Em primeiro lugar, elas conciliam duas heranças, a grega e a hebraica. Em segundo, resumem sua época, sem reduzi-la a uma gaiola ideológica. Em terceiro, dando novos sentidos aos símbolos anteriores, entretecem-se de modo a vislumbrar uma continuidade. E, por fim, apresentam uma clara visão de mundo.

A Odisseia (1938), de Níkos Kazantzákis, é um perfeito exemplo disso. O poeta retoma a epopeia homérica, ampliando-a. Mas em vez do retorno clássico, Odisseu é recebido por uma Ítaca ideológica, com rebeliões populares, um filho adolescente que se rebela contra ele e uma esposa decrépita que o despreza. Ao raptar novamente Helena, o herói poderia ter cruzado com Fausto e Mefisto que, na segunda parte da monumental obra de Goethe, perambulam pelo coração do mundo, como na tradição trágica grega – ambos não estariam com um fantasma de Helena, o flagelo dos homens?

Essa mesma relação intratextual acontece na Divina Comédia, Inferno/XXVI, quando Dante fala com Ulisses, intermediado por Virgílio. Obviamente o florentino não pode conversar diretamente com o herói, uma vez que pertencem a tempos diferentes: o herói homérico ao mítico, o poeta ao cristão. Odisseu, ou Ulisses, é o mesmo que fundamenta miticamente Os Lusíadas, de Camões, e também o Mensagem, de Fernando Pessoa. No Brasil, é o que faz Guimarães Rosa com o monumental Grande Sertão: Veredas. Nele Rosa concilia a experiência profunda de vida, a lenda sertaneja da Donzela Teodora e a metafísica fáustica. É uma obra que pertence ao panteão supracitado.

Este fora o projeto também de Bruno Tolentino. Quando retornou ao país, deportado após cumprir pena por tráfico de drogas na prisão inglesa, o poeta traz na bagagem o impacto da experiência carcerária e uma profunda visão de mundo. Ao semear o sal no farelo das gerações futuras, apontou também pedras de engano e aridez que assolavam e ainda assolam nossa cultura.

Publicado em 1996 e laureado com os prêmios Cruz e Sousa e Abgar Renault (ABL), de 1997, reeditado agora pela Record, em A balada do cárcere, por meio da poesia, Bruno Tolentino pretende libertar nossa cultura de suas amarras ideológicas.

Tolentino reclamava um lugar para obra que produzira naquele panteão. Neste sentido, seu livro deve ser lido como parte desse audacioso projeto. Trata-se de um tríptico, cujos painéis, embora desiguais, revelam, ao mesmo tempo, a experiência profunda, vivida pelo poeta por meio da confissão do confinado Ambrose, a inserção, a retomada e a continuidade da tradição lírica ocidental, com uma visão de mundo, a ser mais bem definida nos livros posteriores.

Shakespeare, Wilde, Baudelaire, W. B. Yeats, T. S. Eliot, entre muitos outros, aparecem nesses versos, dando uma dinâmica erudita, mas também pessoal ao poema.

UM PRELÚDIO

Amadureci aos poucos,
cresci muito devagar
como os álamos e os loucos
e acabei indo morar

na Casa dos Homens Ocos,
um charco pardo ao luar
entre o tempo morto, os roucos
rugidos do vento e o mar.

Lá se vive sem querer;
lá ouvi uma elegia;
dou-a aqui tal qual ouvi-a

ao cair do entardecer
sobre a charneca vazia,
os pântanos que há no ser.

Composto sobretudo por sonetos, o poeta deixa a sua marca no uso constante do encadeamento (enjambement) e de rimas toantes. Embora excessivos, tais recursos técnicos não se configuram defeitos; são antes arranjos. Em relação à musicalidade da arte da linguagem, se considerássemos a duração dos versos pelo número de batidas, teríamos os tempos fracionados, servindo a estrofe como compasso. Por exemplo, uma quadra, com quatro decassílabos, seria um compasso de 4/3. Neste caso, cada verso comporta três acentos ou batidas de duração, dentro de um compasso de quatro versos, estes podendo ser melodicamente rimando em pares, interpolados ou sequencialmente.

Porém, mais próxima à tradição pictural, de Horácio, Boileau, entre outros, como bem apresenta Érico Nogueira em ensaio, a poesia tolentiana utiliza cada poema como uma tela, embora sem deixar de ser musical, para imprimir as cenas dessa alegoria do cárcere. Por outro lado, esse poema não deixa de ser um drama. Nele o condenado, homem cuja identidade se apaga atrás das cifras tatuadas na nuca, confessa suas paixões e culpa. É nessa dimensão trágica que a obra ultrapassa a temporalidade para alcançar o universal.

Todo crítico que se coloque como arauto do fim do “processo histórico” terá dificuldade de compreender isto: a visão platônica do mundo como prisão pode parecer veleidade e passadismo – ledo engano! Essa visão, ao mesmo tempo, denuncia o mundo do espetáculo das sombras e, apontando para a Verdade, demonstra como se dá o processo de arrependimento e compaixão divina. Ao dar voz ao assassino, o poeta não faz dele uma “vítima social”, tampouco faz de um bode expiatório um mito; pelo contrário, devolve-lhe a individualidade, apiedando-se dele.

A retomada da mitologia clássica é extremamente importante para esse projeto. Por exemplo, o mito de Ariadne torna-se um símbolo da confiança nos relacionamentos. Na clássica narrativa, o herói recebe da princesa um carretel para retornar no labirinto onde deverá matar o Minotauro. Nos relacionamentos amorosos, a confiança é como esse fio que guia o retorno ao embate que fazemos contra o monstro de nossas paixões. No poema de Tolentino, o herói sucumbe às paixões e mata a amada.

A TEIA

[…]
Todas as assassinadas
Pelo amante ou pelo esposo
São belíssimas amadas
E morrem pelo pescoço…
[…]

Como Otelo, o ciúme cega-o. Em “O espectro da Rosa”:

[…]
Mal sentia o remorso que há no amor

traído pelo amante, quando finda
a embriaguez, o mal sobe à garganta
e Otelo põe a bela na berlinda:

Iago ri, Desdêmona se espanta
e um lenço faz o resto…
[…]

À natureza das paixões, o poeta desenvolve o símbolo a partir do mito de Actéon:

LEGADO DE ÁCTEON

Pelo banho silvestre da Artemisa,
pela nudez da lua, o perdigueiro
enlouquecido, estraçalhando a brisa…
O dente do desejo é traiçoeiro

e sempre tão urgente e tão ligeiro
quanto incauto: a surpresa diviniza,
mas o corpo, esse é feito do braseiro
mais breve e tudo, tudo vira cinza!

A luz que te alucina não precisa
de ti. Não, não te chegues tanto à beira
da perfeição, ou nunca cicatrizas.

Pobre quem se descobre o companheiro
do eterno de repente e sem aviso,
que o eterno neste mundo é passageiro.

Partindo de As metamorfoses, de Ovídio, livro 3, 139-252, o mito conta que o caçador Actéon teria visto a deusa Ártemis banhando-se nua. Ela o teria transformado em cervo, sendo despedaçado pelos próprios cães. Embora com versões diferentes, sabe-se também que as referências ovidianas foram fundamentais para a pintura renascentista, como em Ticiano[1] e François Clouet[2], sendo na poesia desenvolvidas por Sá de Miranda, António Ferreira, entre outros, ganhando, porém, o melhor acabamento em Camões. Além da Égloga VII, o poeta lusitano apresenta-o em seu épico:

Via Actéon na caça tão austero,
De cego na alegria bruta, insana,
Que por seguir um feio animal fero,
Foge da gente e bela forma humana;
E por castigo quer, doce e severo,
Mostrar-lhe a formosura de Diana;
E guarde-se não seja ainda comido
Desses cães que agora ama, e consumido.

Os Lusíadas, Canto IX: 26/95

Tolentino não apenas repete o mito, mas desenvolve-o. Ártemis era uma das manifestações do arquétipo feminino. A primeira, tinha o nome de Sêmele, era a lua; a segunda, Ártemis, liga às florestas virgens; e a terceira, a ctônica, Perséfone, a rainha de Hades. Esses três aspectos arquetípicos explicam melhor a imagem/ideia da deusa banhando-se nua no lago, assim como atenta para a natureza dupla do desejo. Ele nos transforma em caça. E se, como em Shakespeare, a paixão consume o que a alimenta, neste soneto o poeta já alerta para o engano da mudança repentina, causa da crise amorosa. É o que retomará em “O diálogo da Alma e do Desejo”. O amante não sabe como enfrentar as serpentes da Medusa sem decapitá-la. Reafirma-se o efeito da paralisia apaixonada com a esposa de Lot.

A partir disso, retomando o mito quando a lírica a toca a natureza humana decaída, evocando Baudelaire que:

confessou seu degredo e confessou-se
nele e por ele: ao abraçar o abismo…

Como no episódio V, Não Matarás, do genial Decálogo de Kieslowski, neste instante faz sentido o pensamento de Dostoiévski: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Até mesmo justiça humana contém a falibilidade, mas a justiça divina é realmente justa por não carecer de nada, tão somente o arrependimento sincero.

Eis o perigo da “Paixão segundo nós mesmos […] Porque toda paixão anda perto/ dessa obscura impaciência / que de si mesma faz a tocha / perecível…”. Mas justamente porque o “apaixonado é um incendiário”, para a criatura o perigo

É não confiar no invisível.

É distrair-se, é deslembrar-se
da perfeita vocação que a trouxe
a este mundo, e abraçar o disfarce,
o sensível, como se ele fosse
a total declinação do enigma:
a finitude como estigma.

Acreditar na autonomia da justiça humana é ingenuidade de nosso tempo fáustico onde os desejos se tornaram direitos e abraçamos o disfarce, como Páris estreitava o fantasma de Helena, enquanto milhões sucumbiam na fatídica guerra! É este o segundo aspecto importante da visão de mundo do poeta: o mundo do debate público é o espetáculo das sombras, palco da mentira e da enganação (ideologia). É o lugar onde se celebra a escravidão das paixões como liberdade.

Tolentino poderia ter escolhido outros lugares (topoi) para desenvolver sua visão de mundo – usou o lugar do exílio em Os Deuses de hoje (1995). Poderia ter optado pelo retorno à pátria, depois de perambulações para aquisição de conhecimento (nostoi); resgatou, porém, o lugar do cárcere – que havia sido explorado por pensadores marxistas, como Guy Debord em A sociedade do espetáculo (1967), e Simulacros e simulações (1981) de Jean Baudrilard, ambos preocupados em denunciar para controlar. O poeta, no entanto, não reduz a caverna de Platão a uma gaiola ideológica de libertadores e manipulados; descerra o cárcere do ser.

Segundo declarações posteriores à publicação da primeira edição, o poeta afirmou que, graças ao ensino da poesia entre os presidiários, o prisioneiro de A balada do cárcere conseguira se formar em psicologia e estaria atuando profissionalmente. Neste sentido, além de conciliar em sua visão de mundo a herança clássica, reatualizando a simbólica de nossa tradição, por meio desta bela reedição, sob os auspícios de Érico Nogueira, Jessé de Almeida Primo e Martim Vasques da Cunha, entre outros, podemos vislumbrar que o projeto de Bruno Tolentino teria ainda mais um encadeamento, possivelmente o mais árduo de todos: educar a sensibilidade brasileira.

[1] Cf. Diana e Actéon (1556-1559)

[2] Cf. O Banho de Diana (1559-1560)

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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