Entre a Cruz e a Espada: a consciência diante do tempo e do eterno

por Elton Flaubert (23/08/2017)

O materialismo é a percepção de que o sentido das coisas está no tempo, não no eterno.

“O paradoxo é que, quanto mais nos aproximamos do ponto alfa, mais caminhamos para o ômega. Quanto melhor compreendemos a origem, vamos percebendo (…) que é essa origem que caminha em nossa direção.”
René Girard

1. O que é a cultura liberal?

Em “Girard apocalíptico”, primeiro ensaio desta série sobre escatologia cristã, tempo e história, mostrei – entre outras coisas – que o fenômeno religioso funda a cultura. Logo, não há cultura sem religião. A humanidade é filha do religioso e a religião é a origem de toda cultura. Dessa cultura, num sentido mais restrito, nascem outras culturas mais específicas. Em “A tirania da liberdade”, segundo ensaio, procurei apresentar o cristianismo, num primeiro momento, como transgressão do paganismo, desvelando as proteções sacrificais e, num segundo momento, construindo uma cultura cristã. É preciso revisar um pouco deste tema e da construção da liberdade para entendermos o que vem a ser a cultura liberal.

Para Agostinho, a liberdade é uma concessão divina que se desenvolve de duas maneiras no mundo. Ela é o uso do livre-arbítrio vocacionado por Deus. A primeira parte desse (re)encontro é a procura, a investigação diante desse mundo; enquanto a segunda é a descoberta, a confissão e a redenção dos pecados. A liberdade interior, essa consciência e essa percepção dos seus limites diante do Criador, é superior à liberdade material, à liberdade na “cidade dos homens”. A liberdade interior não deve ser objeto de coerção exterior, pois ser livre é estar submetido a Deus. O contrário é a falsa liberdade[1], é negar a si mesmo, pois se nega o Criador.

Introduzido no ocidente europeu pelos árabes Avicena e Averróis, as concepções metafísicas de Aristóteles realizaram transformações na filosofia e teologia cristã, ao mesmo tempo em que esta religião se tornava ordem no seio da Europa. Essa releitura influenciou Aquino. Nele, não encontramos a negação de Agostinho, mas a tentativa de desenvolver a antropologia cristã para as coisas deste mundo, tais como os elementos da política e os direitos naturais a partir de sua teologia natural. Para Aquino, os preceitos da lei natural são iguais em qualquer época. E a lei natural “é a participação da Lei eterna na criatura racional”. Ou seja, Deus concede ao homem a luz da razão natural e ele, a partir dela, pode conhecer a Lei eterna de Deus. Através dela, é possível estabelecer um conhecimento seguro das coisas desse mundo e o seu melhor ordenamento.

Nesse sentido, Aquino defende uma teologia natural universal, onde os seus axiomas são universalmente válidos, sendo mutantes (como em Aristóteles) as regras específicas que derivam destes princípios. A justiça particular é exercida pelos homens, mas deve se inspirar no direito natural, que aparece como “direito de natureza”. A liberdade (enquanto livre-arbítrio) torna-se, em Tomás de Aquino, uma lei natural doada pela vontade divina através da inteligência. No século XVI, o jesuíta e filósofo espanhol Francisco Suárez desenvolveu ainda mais essa concepção escolástica da liberdade como direito natural. Para ele, o poder de Deus era análogo ao atribuído por toda comunidade política e, assim, a nossa liberdade deveria ser assegurada por esta comunidade[2].

Esse desenvolvimento será essencial para a construção da modernidade política. Ou seja, a política secular, o império da lei, o Estado racional, as ideologias, a democracia liberal etc. No entanto, o trato jurídico da liberdade como direito natural era inapreensível para a maioria dos escolásticos, e a liberdade só será tratada como uma concessão política a partir do momento em que o futuro se abre aos homens – como deslocado do cosmos das experiências passadas – para um campo em constante processo de transformação.

Encontramos em Maquiavel uma figura importante que reflete essas questões. Para resolver a confusão instalada em Florença e unificar a Itália, Maquiavel afirmava que o problema não era moral, mas político. A verdade e a moral possuíam sua razão internas ao seu próprio objeto. Ou seja, o que importava era fazer o necessário para manter o poder e não axiomas morais. Além disso, apenas homens cientes de si, que controlam sua fortuna a partir das virtudes cívicas – agindo tal como o príncipe –, poderiam assegurar a liberdade e a segurança. Maquiavel não é um inimigo de Cristo, mas o utiliza como modelo tal qual a Bíblia. Ele não vê a Cruz, nem a sua experiência sendo narrada nos Evangelhos, como modelo para a verdade, mas como um modelo de construção do poder terreno. Aqui temos um exemplo intelectual do primeiro momento da cultura liberal: Maquiavel não olha para Cristo como uma realidade efetiva e permanente, mas enxerga apenas a cultura cristã e o poder que foi construído depois. Moises – e a maneira como conduziu os hebreus – também era um dos seus modelos para o Príncipe. O cristianismo lhe serve como esperança de poder duradouro e eficaz para unir a sociedade, e não como redenção para a alma.

O resgate dos temas clássicos, tal como da virtú pelos humanistas italianos, também influenciou o mundo anglo-saxão. Hobbes não negará os direitos naturais em prol dos direitos do homem como Maquiavel, mas o resgatará longe da teologia natural escolástica. O inglês trabalha com a ideia de estado de natureza como um modelo teórico, tendo como hipótese o homem em estado natural com a liberdade absoluta para agir. No entanto, o movimento desse corpo (o homem livre) provoca uma reação que, se em contradito, pode acarretar a morte violenta. O medo dessa morte produz nos homens o desejo de se autopreservar e, por isto, construímos o Estado e as leis civis, que servem para resguardar o homem e a sua liberdade – mesmo que limitada.

Como nota Koselleck, no lugar da filosofia especulativa, começa a historicização do homem. A história processual que substitui a escatologia cria um enredo do estado de natureza ao estado civil, onde o homem pode construir seu futuro. Como Maquiavel, Hobbes também não se vê como um inimigo do cristianismo, mas acredita que todo ato tem uma causa, mas não a causa primeira (Deus). Deus iniciou os eventos, mas depois não interferiu nisto com sua Providência. As causas que movimentam os corpos são de naturezas próprias do homem.

A filosofia de Hobbes ilustra a construção do Estado absolutista. O soberano absoluto assumia a função da escatologia. Diz Martin Van Creveld: “Agora que os governantes não eram mais beatificados, tornara-se disponível uma série de divindades com as quais podiam identificar-se. O favorito dos homens era Hércules, (…) Henrique IV da França certa ocasião foi denominado ‘o Hércules que agora reina’”. Todavia, se o soberano assumia a função de assegurar e dar sentido à vida, o súdito deveria deixar suas convicções privadas afastadas da esfera pública para ser protegido. Tendo, como consequência, a diluição da relação entre “culpabilidade e responsabilidade, constitutiva da consciência”. Sem a responsabilidade política, o súdito poderia ser culpado por atentar contra os interesses do soberano e pôr em risco a segurança de toda sociedade. Sem a culpabilidade, o soberano era levado a tomar qualquer tipo de atitude, independentemente de sua violência, desde que resguardasse seus poderes.

Essa cisão descrita por Reinhart Koselleck criou um terreno para a racionalização do Estado. Tomar uma medida correta, virou questão de vida e morte para o soberano. Ao mesmo tempo, a decisão racional do soberano era o que garantia a segurança da sociedade e, esta, a raiz da soberania plena. Uma decisão iníqua, irracional ou ameaçadora do rei poderia ser vista como um problema para toda sociedade e sustadora da própria soberania. De tal modo que, a exigência em torno da responsabilidade do soberano e a ameaça diante do peso dessa responsabilidade tornou-se um critério de substituição da moral religiosa com consequências políticas para a moral interior a própria ação política, como afirma Koselleck:

A doutrina da razão de Estado estava de tal modo condicionada pelas rivalidades confessionais que não se restringiu ao Absolutismo monárquico. No continente, infiltrou-se na tradição que defendia o fortalecimento da realeza, mas também ganhou terreno em países que tinham uma constituição corporativa ou republicana. Nessa época, todo poder que quisesse exercer autoridade e ter validade geral precisava negar a consciência privada, que era o esteio dos vínculos religiosos ou dos laços estamentais de lealdade Até o Parlamento inglês, quando quis suspender em 1640 as prerrogativas de Carlos I, invocou rapidamente o argumento de que toda consciência, mesmo a do rei, deveria subordinar-se ao interesse estatal. (…) Também Spinoza, na Holanda, longe de falar em nome do Absolutismo monárquico, achava totalmente razoável ver o pecado as boas ações que prejudicassem o Estado e como piedoso um pecado que servisse ao bem comum.

O Estado absolutista foi o responsável pela consolidação do Estado moderno, mas já preparava o terreno para o império da lei. Como observou Creveld, “quanto mais absoluto um monarca, mais dependente ele se tornava dos mecanismos impessoais burocráticos, militares e jurídicos para transmitir e impor sua vontade à sociedade em geral”. Os mecanismos racionais que o soberano é obrigado a construir na montagem do Estado, seja para tributar, tomar decisões, ou assegurar a ordem jurídica, mostraram-se capazes de funcionar sem ele.

Essa racionalização ajudou a separar o Estado da figura do soberano. Creveld descreve essa separação em quatro passos. O primeiro passo é a ascensão da burocracia que tende, cada vez mais, a separar-se do controle do soberano e da sociedade civil. A exigência de uma burocracia técnica, capaz de lidar com os desafios de um território nacional e mesmo fora dele, aumentou o seu poder, a sua quantidade e o sua importância no governo. A burocracia torna-se o Estado e não mais o soberano. O segundo passo é que a racionalização administrativa cria fronteiras bem definidas e controladas e tributações bem executadas. Os intermediários são eliminados pela nova burocracia, garantindo um maior controle estatal. E, para assegurar os tributos e as fronteiras, era preciso também criar forças de segurança, assegurando o monopólio estatal da força. Temos, então, o terceiro passo. A criação das forças armadas e de uma estrutura que utilizasse da violência para garantir o monopólio da força. No lugar das milícias feudais, das tropas de cavalheiros, e das tropas de mercenários, foram criados exércitos nacionais, com pessoas que trabalhavam exclusivamente para isto. A polícia e o ministério da guerra também foram criados.

Por fim, o quarto passo reside na história das ideias. É nesse contexto que emerge a crítica liberal, composta basicamente de três elementos. O primeiro é a separação das razões de estado da figura do soberano. Ou seja, o Estado deve ser racional e funcionar de maneira formal, não sendo sinônimo da figura do soberano. O segundo elemento é que, no lugar do arbítrio do rei, o que deveria unir e assegurar a sociedade seria o império da lei. O poder soberano deveria ser limitado formalmente. O terceiro elemento é a volta do foro privado para o lugar do público, mas como isto seria feito sem cair das disputas religiosas que levaram às guerras civis? Com uma moral formal, elaborada a partir de um consenso social. Uma moral laica civil.

Para Locke, Deus concedeu o livre-arbítrio, mas os homens se organizam socialmente para garanti-la. Os homens desejam sair do estado de natureza porque percebem racionalmente que a sua melhor opção é um estado civil, regulado por leis. Essa mesma razão irá construindo a ordem da melhor maneira que descobrir. Sendo assim, para Locke, “a lei de natureza nada mais é do que a soma dos ditames da razão concernente à ‘segurança mútua’ dos homens”. Ao contrário de Hobbes, Locke acredita que o estado de natureza e a busca pela autopreservação leva ao estado limitado constitucionalmente, com as liberdades garantidas, e não ao poder absoluto do soberano. Locke soma a autopreservação: a convicção privada, a sociedade, a cultura, os costumes. É a sociedade, composta pela busca racional dos indivíduos, que funda a soberania. E a sociedade é também composta pelas convicções privadas de cada indivíduo.

Locke dividiu as leis em três: a lei divina, as leis civis, e as leis morais. A lei divina é natural, as leis do Estado são as terrenas (escritas ou jurisprudenciais), e as leis morais são a opinião pública, as convicções privadas sobre a moralidade. A novidade de Locke consiste na separação entre as leis morais e as divinas. Locke dissocia, assim, as leis morais das divinas e civis. As leis morais são os valores da sociedade, a unidade comum moral entre as pessoas, elas não são nem as divinas, nem as civis. Logo, as leis civis são originadas das leis morais e estas não são necessariamente as convicções religiosas, nem o soberano. Com esta explicação, Locke mostra que a base das leis civis é a sociedade civil e seus valores e não o arbítrio ou a volta das convicções religiosas. As leis morais possuem caráter universal e os cidadãos devem declarar suas opiniões morais como universalmente válidas. É esse juízo que funda a lei civil, não devendo ser fraturada pelo soberano. Deste jeito, “a moral não é mais uma moral formal de obediência, subordinada a uma política absolutista; ao contrário, ela afronta as leis do Estado”. As leis morais (a volta da convicção pessoal separada do religioso) devem inspirar as leis de um Estado justo. Sobre a volta do foro interior ao público, afirma Koselleck:

As leis do Estado agem diretamente, pelo poder de coerção exercido pelo Estado. A legislação moral age neste mesmo Estado, mas de maneira indireta e com maior força. A moral civil torna-se um poder público, que só age espiritualmente, mas cujo efeito é político, pois obriga o cidadão a se adequar suas ações não só às leis do Estado mas, sobretudo, à lei da opinião pública.

O foro interior volta ao público, como convicção moral separada das leis divinas. É o início da construção de uma moral laica civil que sustenta o estado regulado pelas leis. Essa liberdade pública é o que assegura também a proteção aos bens. A soberania e a sua responsabilidade são transferidas para sociedade civil, a constituidora do Estado a partir de um contrato social racionalmente fundado. O Estado deve ser limitado pelo que lhe fundou, com preferência pela divisão de poderes.

Após a Revolução Inglesa, logo se procurou limitar os poderes do soberano e garantir as liberdades de não-interferência com a Bill of Rights. A liberdade de expressão, de imprensa, e de religião, foram garantidas. Na “Revolução Americana” se viu claramente a influência de Locke, a garantia dos direitos fundamentais e da liberdade individual, como também a busca pela “Nova Roma” e pelo republicanismo humanista. O historiador John Pocock, em The Machiavellian Moment, argumenta que a grande influência dos rebeldes americanos na fundação da nação era o humanismo cívico da renascença. E Hannah Arendt mostra como os pais fundadores da América voltaram-se ao renascimento e a uma nova forma de liberdade. A América deveria ser o lugar do homem que se faz e tem o futuro em suas mãos, construindo sua história, sendo autônomo para se expressar na sociedade política. E a promessa histórica da América, como terra prometida por Deus, era o reino da liberdade. Na França, veremos as mesmas questões colocadas com um toque mais radical do republicanismo e do laicismo.

Boa parte da crítica liberal não era propriamente anticristã, mas, pelo contrário, acreditava que a liberdade tinha sido dada por Deus e precisava ser concedida politicamente para que cada homem usasse dela para se salvar ou para se condenar livremente sem a dependência e a obrigação com outros, pois a apenas Deus cabia tal julgamento. Todavia, se ao buscarem os parâmetros de Deus para este mundo aqui e agora ajudaram também a reconstruir outro mundo diferente daquele das proteções sacrificiais, abriam um campo para a construção de uma nova cultura que colidia e rivalizava com suas origens.

Neste ponto, temos o segundo grande passo para a cultura liberal. Se, em Maquiavel, a realidade efetiva da Cruz de Cristo era trocada pela cultura cristã como um universo independente, funcionando no aqui e agora a partir de seu poder, a crítica liberal cria dentro de si uma nova cultura – secular, formal, humanista – que, ao imitar a cultura cristã, logo se tornará uma rival. A cultura liberal não é o estado de direito, a democracia liberal, a modernidade política, mas a cultura que se tira disso enquanto fim e não meio, a partir de uma nova temporalidade.

As raízes do mundo moderno encontram-se na desintegração das proteções sacrificiais. É essa desmitificação que permite o secular, a ética formal, as instituições democráticas, o Estado de direito, e a intensificação das trocas, da produção, entre outros. Todas essas instituições do mundo moderno estão diretamente relacionadas à abolição do sacrifício e a preocupação com as vítimas. Mas tudo isto deve ser avaliado numa chave de ambivalência, com suas perdas e ganhos. Se, por um lado, diminuiu a violência e foi consequência direta da desmitificação da Cruz; por outro, dissimulou o sacrifício, a rivalidade, a violência, a expiação. Ao invés das proteções sacrificais, a sociedade encontra-se agora unida por uma moral secular possibilitada pelo cristianismo, construída na preocupação com a vítima e com a negação do sacrifício. Entretanto, quando o homem fracassa em perceber sua natureza, essa moral não reconhece suas raízes e age, a partir disto, rejeitando o sagrado e sua origem, dissimulando a natureza mimética dos homens, sua rivalidade e os seus mecanismos.

A Cruz desmistificou o sagrado e foi a responsável por essas transformações no mundo. No entanto, essa mesma desmistificação vira-se contra a religião. Como afirma Girard, tanto o iluminismo como o ateísmo contemporâneo são produtos da religião cristã. Sem religião, não existiria a cultura e a sociedade. Só dentro da cristandade, foi possível a existência do laicismo, do ateísmo, da secularização ou da vã tentativa de uma ética formal (kantiana) que transforma o sujeito em transcendental.

O humanismo moderno dissimula essa violência no engodo daquela liberdade que Satanás procurou para se livrar da unidade divina. A liberdade não é mais um dom de Deus, e uma vitória no desvelamento das proteções sacrificiais, e o homem fracassa ao sucumbir a outro tipo de violência, não mais aquela antiga, franca e clara na proteção da ordem mítica, mas uma violência sorrateira contra a unidade da transcendência. O homem se assoberba, se imagina dono do mundo e do tempo, planeja um futuro sem dor e perda, sente-se onipotente e livre para ser o que bem entender e mesmo negar a realidade do Ser.

No século XIX, foi se consolidando a democracia liberal, o Estado burocrático e racional, amparado no império da lei e sua substância na moral laica civil. A cultura liberal vai se voltando contra o sagrado, como se este fosse irracional ou apenas fruto de uma cultura, e rivaliza com a cultura cristã por um futuro aberto nas mãos de cada ser humano. Como qualquer cultura, ela nasce do religioso (no caso, o cristianismo), mas se volta contra este, enxergando o sagrado como cultural e não o cultural como fruto do sagrado.

Na passagem do século XIX para o XX, a ideia de liberdade será estendida juridicamente. O novo liberalismo do final do século XIX elaborava um novo conceito de liberdade, baseado não mais na limitação estatal, mas na volta do governo constitucional e democrático como construtor – a partir da legitimidade do seu poder – da ampliação dos direitos. O Estado volta à cena da construção da liberdade, como ente de justiça, para fazer as reformas necessárias e garantir que a liberdade possa ser usufruída para além da garantia de não ser oprimido pelo soberano. Se, como nota Koselleck, a crítica iluminista do século XVIII criou o seu “tribunal da moral” longe do Estado e a partir das leis morais da sociedade civil em disputa, agora o Estado volta como parte integrante e ativa desse “tribunal”.

Uma nova concepção de liberdade trabalhada pelo liberalismo-social defenderá que o império da lei não é estanque, antes sendo uma ordem democrática que precisa se aperfeiçoar e não apenas liberdades negativas. A liberdade passa dos limites do exercício do poder soberano a um projeto utópico, carregado de expectativas, que visa ampliar a possibilidade de cada indivíduo em escolher aquilo que prefira para suas capacidades.

Nesse sentido, o individualismo apontava para as reformas sociais, pois o indivíduo precisava ter outros direitos assegurados para agir. É a “revolta contra a liberdade negativa”. O Estado deve promover a felicidade social, porque ele não é uma esfera afastada da sociedade civil, mas uma manifestação desta. Limitar o poder soberano para garantir direitos fundamentais só fazia sentido diante de uma monarquia. Na democracia, o poder soberano é de todos e o Estado pode agir para promover a liberdade diante do bem-comum. Por isto, o novo liberalismo bebe nas fontes do republicanismo clássico e defende uma ampliação do cidadão ativo.

Nos Estados Unidos, temos o “modern liberalism”. Descobre-se que a liberdade poderia não ser só uma concessão política, mas uma ação de homens livres para modificar e aperfeiçoar o Estado. A história dos Estados Unidos funciona como essa prova de que no final o homem encontrará o seu reino de liberdade a partir dos desenvolvimentos institucionais: “Unquestionably we believe in a guardian destiny! No other race could have accomplished so much with such a system. Os Estados Unidos é o palco onde Deus atualiza o seu plano divino sobre a terra. Cabe aos homens, olharem para o tempo e fazer as reformas necessárias.

O liberalismo moderno descobre a liberdade como um poder de fazer escolhas e se livrar de obstáculos para suas capacidades. Os direitos só possuem sentido com um Estado que permita seu exercício. Agora, não se trata mais de uma liberdade política concedida pela lei ao restringir o poder, mas a ação do soberano, garantido pela lei, ampliando o que entende por liberdade. Esse novo liberalismo abdica da ideia de direito natural e da centralidade da liberdade individual vista de maneira restrita, e aposta numa liberdade que transforme a realidade tal como conhecemos. A liberdade como concedida politicamente contra o arbítrio autoritário do soberano se transforma rapidamente numa cultura que projeta substancialmente o futuro e não só formalmente.

Em “Prometeu desacorrentado”, terceiro ensaio da série, reflito sobre a razão e a ciência no mundo moderno. Como vimos na interpretação voegeliana de Prometeu, o seu mito não significa apenas a negação de Deus, mas a ambivalência da centelha divina que há no homem. Centelha que poderíamos dar o nome de razão, que nos permite contemplá-lo ou ser utilizada de maneira instrumental, através dos conhecimentos gerais, da técnica, da ciência, para operar no mundo e descobrir coisas maravilhosas como: remédios, construções, brinquedos, internet etc. Ao mesmo tempo, essa centelha divina no homem pode criar também um sentimento de independência, que se traduz pela onipotência e pela rivalidade com Deus. É essa ambivalência da razão (centelha divina) de que trata o mito de Prometeu. E ele desacorrentado, significa o seu outro lado: a violência sem amarras que é consequência direta do delírio de grandeza que a humanidade passa a ter de si própria por suas formidáveis descobertas. É preciso, então, avaliar esse duplo da razão. A razão é uma centelha divina, donde podemos contemplar a presença total da realidade, descobrir a natureza das coisas, manuseá-las e criar uma série de intentos técnicos que nos trazem uma série de benefícios e bondades. Todavia, se esquecemos sua origem, nos assoberbamos, e o nosso destino é a queda, ou seja, a irracionalidade, o delírio de onipotência e a dissolução.

Do mesmo modo, a democracia liberal, o Estado de direito e racional, tudo isto que podemos chamar de modernidade política, é uma forma de exercer o poder, ligado ao desvelamento das proteções sacrificiais e a cultura cristã (não sendo a mesma coisa desta), com suas vantagens e desvantagens inerentes a qualquer forma de poder, que ontologicamente serve para gerenciar a violência sem abdicar desta. Quando esta forma de poder se torna um princípio com expectativas de transformação ou mudanças para o futuro, vira uma cultura. No caso, a cultura liberal. E a cultura liberal não é o Estado de direito ou a democracia liberal, mas quando estas coisas se tornam um complexo com uma visão abrangente que explica as coisas deste mundo, ou seja, princípios universais. Quando esta forma de poder deixa de ser um meio, com suas vantagens e desvantagens, e passa a ser um novo espaço do político como cosmovisão, temos a cultura liberal.

Assim, a modernidade política nos traz vantagens formidáveis a partir da democracia liberal e do Estado de direito. Todavia, quando estes se afirmam como uma cultura, um autômato secular descolado de sua origem, se volta contra não só a cultura cristã, como perverte e rivaliza com a Cruz de Cristo (tal como alguém se perfazendo numa cruz dizendo-se vítima para poder vitimar seus discordantes). Essa perversão do legado do desvelamento das proteções sacrificiais é o que chamo de cultura liberal.

Como imitação da cultura cristã, ela se forma a partir do desvelamento do sagrado pela Cruz, mas lhe perverte seu significado. Assim, a descoberta do indivíduo torna-se individualismo, o respeito ao livre-arbítrio torna-se legitimação e defesa do pecado como norma social, a liberdade interior torna-se liberdade política construída e ampliada, a preocupação com as vítimas se transforma numa máquina supervitimológica, pois a vítima foi dada o poder para vitimar de novo e melhor. Girard asseverou sobre isto:

A preocupação com as vítimas me parece um fenômeno positivo e ao mesmo tempo negativo. O erro vem das ideologias: a ideia de que tudo é bom ou mau. A revelação da inocência da vítima é a verdadeira aquisição cristã que se desenvolve em nossa época, mas no curso do século passado ela pôde tornar-se o motor dos novos fenômenos vitimários, tornando sua utilização equívoca. (…) O que está em questão é a reivindicação generalizado do sentimento vitimário que termina por se voltar contra a lei natural e contra toda lei que regule as relações humanas.

Como rival da Cruz, funciona como um tempo do Anticristo, uma má imitação de Cristo que rivaliza com Ele – por delírio de onipotência – enquanto mediação interna.  A sua base é a transformação da liberdade enquanto livre-arbítrio concedido por Deus numa cultura de liberdade que promete o seu reino utópico no futuro (com várias interfaces ideológicas).

Desta maneira, a violência não aparece mais como um argumento franco e direto para uma violência caótica e rearranjadora da ordem, mas se camufla. Colocar-se na posição da vítima significa se candidatar ao direito de ter tudo e poder fazer de tudo com o próximo, e com isto penso em novos termos como “reparação histórica”, “sororidade” etc. Estar na posição de vítima significa ter o domínio sobre o tribunal da moral e imolar qualquer um que se queira.

Ao mesmo tempo, esse retorno da máquina de vitimar a partir do discurso da vítima não se dá apenas por um interesse meramente pessoal ou de empoderamento. Ninguém pode realmente se achar dono do seu futuro, pleno de liberdade para fazer aquilo que bem entender, se não desafiar o estabelecido (o famoso “quebrar o tabu”). Não se trata mais da tentação da transgressão, mas da neurose em reafirmar a sua negação. Assim, o homem se coloca na posição de vítima para quebrar “proibições” e “tabus” do cristianismo. A mulher, que é vítima da sociedade, e não pode abortar, e quando o faz morre; o menino de oito anos que quer coibir sua puberdade e se coloca na posição de vítima do preconceito dos pais e da sociedade; entre outros milhares de casos. Acontece que proibições e tabus não são arbitrários, mas um aviso dos perigos do pecado para sua alma e, logo, uma gerência da violência mais terminativa, a da dissolução.

Por isto, a cultura liberal ataca fundamentalmente duas coisas: a família e o ventre materno. A tolerância, o respeito e o amor pregados hoje são os mesmos invocados pelo último humanista. Amar não é mais querer o melhor para o indivíduo e sua alma, mas considerar positivo o desejo dele seja qual for. Respeito não é mais ver cada ser humano dentro de sua integridade total, mas não ter mais o direito de falar qualquer coisa contra o pecado, ser impedido de advertir alguém que segue o caminho da destruição. O homem se tornou uma criança mimada que tiraniza seu desejo e não consegue mais se entender com ninguém além de si próprio.  Esse potencial desamarra uma violência terminativa de todos contra todos em escala universal. Nessa perversão, o slogan “amar e esquecer o ódio” virou o sinônimo do egoísmo em viver a vida sem se preocupar com a sua alma e a do próximo, ou seja, viver a despeito da realidade e sem temer a Deus.

Uma “zumbilândia” global, onde ninguém consegue mais dialogar, nem viver num comum. O uso perverso (satanizado) da revelação cristã. Um lugar onde todos se fazem de vítima para poder expiar seus pecados e continuar vivendo tranquilamente como senhor do universo. Todavia, o universo só comporta um senhor, e os seus vários pretendentes parecem dispostos as últimas consequências.

2. Um mosaico da cultura liberal

Alberto Giublini e Francesca Minerva, pesquisadores e docentes da Universidade de Melborune, defenderam no artigo After-Birth Abortion: why should the baby live? que a diferença entre o feto e o recém-nascido é mínima, já que ele continua dependente por completo do corpo e da ação de outra pessoa. Por isto, não faria sentido assassinar a vida apenas como feto, mas também após o seu nascimento. Como justificativa, afirmam que apenas 64% dos casos de síndrome de Down são detectados pelo pré-natal.

Essa sinceridade dos pesquisadores facilita o entendimento da raiz da questão. Ao vitimar o sujeito do infortúnio (o bebê indesejado), acredita-se que a mãe é uma vítima dos tabus da sociedade e é obrigada a sofrer ao ter sua liberdade (em não desejar o filho) punida pelo Estado. Os que defendem a liberdade da mãe em assassinar seu filho a qualquer hora (ou mesmo depois de nascido) estão dizendo claramente: a vida humana não é um conceito biológico, mas um conceito político. Tomada dessa maneira, a vida está relacionada aos corpos e aos desejos. E voltamos a questão da liberdade como concessão política. Sendo a vida uma questão de política, o que temos é o Estado controlando os corpos dos indivíduos por não lhe permitirem o direito que a mãe deveria ter em escolher a vida do filho ou não. A política é a escolha. A criação deixa de ser de Deus e passa para a vontade do indivíduo. Agora, o indivíduo pode dispor como bem quiser daquilo que se encontra em seu corpo.

Colocada desta maneira, a vida passa a ser disposta politicamente como ação de um indivíduo livre e consciente. A liberdade como concessão política chega ao seu ponto de máxima tensão quando a própria vida se torna um conceito manejável pela política de cada indivíduo (isso não nos lembra Maquiavel?) sobre seu corpo. A concepção de vida como conceito político, abre o caminho para todo tipo de violência, pois o bebê nascido é ainda mais dependente do corpo da mãe após os primeiros dias. Seria também direito dela dispor a respeito disto, pois, a vida e suas relações não passam de uma construção nossa, logo, encontra-se no âmbito das negociações políticas (micropolíticas) e não biológicas ou naturais. Por isto, os defensores do aborto podem clamar abertamente: “o seu corpo é um campo de batalha”.

As perversões contra a infância não se limitam a violência no início da vida, mas também durante sua vivência. Em maio deste ano, um garoto canadense de apenas oito anos, Nemis Quinn Mélançon-Golden, ficou famoso ao se “assumir” como “drag queen” num programa famoso desse público. A mãe o incentiva a ser uma estrela drag. O garoto afirma: “(…) Todos devem fazer o que quiser da vida, (…) se você quer ser um drag queen e os seus pais não deixam, você precisa de novos pais”. Todavia, o garoto garante que não é gay, a despeito da grande expectativa da mãe para que seja. Do mesmo modo, na província de Ontário, no Canadá, uma nova lei retira a guarda dos pais que não aceitarem a ideologia de gênero, como também já se discute se é uma violência infantil levar uma criança a Igreja. No Brasil, a justiça de Minas Gerais acatou, à revelia do pai, o retardamento da puberdade de um menino de doze anos, que pretende trocar de sexo. E ainda determina que se o médico recusar o tratamento deve ser questionado legalmente. Os jornais resolveram chama-lo de “menina” tal como desejado. O sexo passou a ser vontade arbitrária do indivíduo.

No Evangelho de Lucas, conta-se que Cristo advertiu a multidão que deixassem as crianças virem até Ele, pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a eles. Cristo se refere a confiança, a ingenuidade e a sinceridade de coração com que as crianças confiam nos seus pais, no caso, na Criação. É precisamente esse dom que abre o Reino de Deus que está sendo atacado. Uma criança confia em seus pais, mas estes estão falhando sucessivamente por amar mais a si mesmo, os seus pecados e suas ilusões, do que o fruto das suas entranhas.

Uma criança ainda não tem o necessário discernimento para fazer escolhas profundas que podem acarretar consequências praticamente irreversíveis, pois ela sempre transforma os modelos a sua volta em brincadeira. Quando uma criança resolve “fazer o que bem entender” e “se for não for aceita, trocar de pai”, está sendo educada para ser tirânica. Os pais estão mais preocupados em se verem como progressistas livres de preconceito do que em orientar adequadamente e proteger as brincadeiras infantis da exposição. Mas, como a sociedade não acredita mais em proibições, como se estas fossem arbitrárias, quando eles – na verdade – é que estão sendo arbitrários, nada pode ser feito a não ser assumir o horror como uma normalidade. Isto vale também para banalidades que se multiplicam.

Do mesmo jeito, juízes e médicos assumem um menino de 12 anos querendo retardar sua puberdade e mudar de sexo com a naturalidade espantosa de quem está diante de um barbado de 30 anos querendo revolucionar sua vida. O compromisso é consigo ao se ver livre das pressões políticas e midiáticas, e não com o menino. Essa barbárie cotidiana contra crianças que se multiplica pelo mundo é parte de um abuso infantil silencioso e sorrateiro que, desde cedo, busca minar a confiança na Criação, tornando a criança um sujeito em construção que possa dispor da sua liberdade para o que bem entenda. Sabe-se que não é possível a responsabilidade, ainda assim, o que interessa é empoderar a criança e deixa-lo livre para descobrir-se no mundo no meio do caos de modelo. E se alguém ousar ensinar, a criança deve, afinal, “trocar de pais”.

O ataque ao ventre e a inocência das crianças é parte do ataque a família. Depois do reconhecimento de um “casamento gay” (o que já comentei no terceiro ensaio), as portas foram abertas para o reconhecimento da poligamia, pois o casamento virou um fato cultural, subjetivado pela ideia de que sua essência é uma vontade pessoal. Então, se três ou mais pessoas decidem se casar conjuntamente (o que não é o caso do mundo muçulmano, onde os vários casamentos são separados um do outro), porque impedir?

Por fim, há o caso de Charlie Gard. Sofrendo de miopatia mitocondrial, síndrome onde vai se perdendo a força muscular e criando danos cerebrais, ele foi internado em 2016. Os pais desejam lhe levar para um tratamento alternativo nos Estados Unidos, mas o juiz Nicholas Francis – a pedido do hospital – determinou que ele fosse transferido para a clínica de cuidados paliativos, o que lhe levaria inevitavelmente a morte. O juiz, a despeito dos pais, decidiu por ele mesmo qual seria o interesse de Charlie: morrer logo e abreviar a dor. Uma espécie de “eutanásia forçada”. Colocando-se na posição de Deus, o juiz, o hospital e toda elite política e midiática do Reino Unido, retiraram qualquer chance que o pequeno Charlie poderia ter nos Estados Unidos com um novo tratamento. Ao decretar a morte de Charlie, o juiz obviamente não se via como praticante consciente de uma violência contra a vida daquele bebê, justificando-se pelos mais elevados sentimentos de “poupar da dor” e evitar os infortúnios do sofrimento. A cultura liberal é este cemitério de almas, onde se nasce para vida quando se está morto (olá, Tim Burton).

3. A revolta contra o mundo moderno ou os perigos da nostalgia (I): a saudade das proteções sacrificiais

A Cruz nos privou das proteções sacrificiais, mas o homem fracassa diante dessa Verdade, pervertendo a revelação. A compreensão do bode expiatório não elimina a nossa natureza pecadora. O mimetismo continua, assim como a rivalidade, o contágio, a crise mimética e a expiação. O mundo não vai progredindo ou evoluindo em direção a liberdade depois da Cruz, mas encontra-se em transformação, com perdas e ganhos, sendo sempre desafiado pelo “macaco de imitação” de Deus.

A perversão do sagrado (a cultura liberal) subverte e ameaça à ordem, que já não consegue mais encontrar seu substrato nos mitos de fundação. Não acreditamos mais no bode expiatório, porém, tal como o mimetismo, os mecanismos de expiação não somem, e a sua violência se camufla. Enquanto a ordem pagã era protegida de sua própria origem (com as proibições, ritos, etc.), com seus mecanismos de contenção de violência pela força, agora esta ilusão não é mais possível, nem desejável, mas ao não saber lidar com ela, por pervertemos o sagrado, essa violência encontra-se desordenada.

Enquanto sagrado pervertido, podemos encontrar vários elementos pagãos dentro da cultura liberal – o hedonismo, o aborto, o culto ao indivíduo, entre outros –; todavia, eles são reelaborados a partir da perspectiva da vítima e das frestas da retirada do sagrado. E são esses elementos pagãos que produzem uma violência que agora funciona de maneira desordenada, pois não pode mais formar uma nova ordem que oculte os seus mecanismos de expiação. No meio da perversão da Cruz e do desespero diante disso, surgem os sentimentos de nostalgia de uma ordem dura, mítica, que controle e consiga gerir essa violência pela espada.

Assim, a cultura liberal não vive apenas de estender o seu domínio para acelerar o futuro reino da liberdade, onde todas as distinções e limitações sejam abolidas, mas ela também gera um tipo de reciprocidade extremamente perniciosa. O sagrado pervertido e suas consequências espirituais (que tratei em “Prometeu desacorrentado”) liberta uma violência irracional, desordenada, e com grande energia concentrada num mundo em que já não existe mais qualquer tipo de fronteira. A quebra de toda hierarquia do religioso, das proibições, dos ritos, a incompreensão das suas razões, da ameaça que representa o pecado, gerou um caos de sentido onde tudo que era sólido – tal como a religião, a nacionalidade, a língua, o cotidiano – parece se desmanchar.

Eu nasci numa cidade do interior de Pernambuco, Pombos, com pouco mais de vinte mil habitantes. Quando eu era criança, sem qualquer tipo de nostalgia, havia um tipo de pasmaceira, onde os habitantes tinham a impressão de viver num tempo congelado. Duas décadas depois, sempre quando eu volto lá, a cidade está ameaçada pela violência, com casos diários que repercutem. Durante qualquer madrugada, pode se escutar os berros de marginais, arruaceiros, bêbados, etc. Os dois policiais são apenas parte da paisagem. Os jovens são como a de qualquer cidade grande, e trazem a dissolução liberal bem perto de si. Diante desse caos, o indivíduo comum encontra-se desesperado, impaciente, desprovido de meios para lutar contra a dissolução rápida do seu mundo. Estranhando os jovens relapsos e agressivos, a imprensa, a televisão, a cultura que simplesmente parece dissolutiva, este homem desesperado vai guardando rancor e ressentimento dentro de si, indo residir no “subsolo”.

As incertezas deixadas pela falta de proteções sacrificiais e os nossos fracassos deixaram um rastro de ressentimento e medo no coração das pessoas. No “subsolo”, há um homem desamparado, irascível com suas elites, irritado com os abusos da cultura liberal e com a captura de tudo que ele acredita. O seu ressentimento e ódio por tudo que está lá fora aumenta progressivamente, e junto com ele se cativa uma perigosa revolta contra o mundo moderno. Tudo lá fora induz ao engano e os perigos para a alma são constantes. Não sabendo lidar com isto a partir da força do espírito, ele mantém o materialismo da cultura liberal e entra em reciprocidade com ela. O sentimento que brota no seu coração é o da nostalgia das antigas proteções sacrificiais, de uma ordem que jogue duro e seja violenta, que reforce o sentimento identitário (seja de nação, raça, cultura local, etc.). O seu fruto é o retorno violento dos mitos.

O mundo material é a linguagem da força, do triunfo militar, do domínio através da violência. O príncipe desse mundo, Satanás, é derrotado não através das suas armas, mas justamente por usar suas armas. Como afirmar Girard, a Cruz mostra o caráter irrisório dos mecanismos expiatórios, como um ser insignificante, que precisa da violência da “autoexpulsão” para estar sempre se reordenando. A cultura liberal perverte esse desvelamento e estende uma crise de anomia no tecido social que acelera a escala de rivalidade, mas num nível mais fundamental. O inimigo do sagrado pervertido torna-se a nostalgia das antigas proteções sacrificiais, desmoralizadas por séculos e séculos no Ocidente e por onde ele encostasse a sua mão.

O novo fenômeno vitimário está ocasionando um “skandalon” coletivo de nível mundial enquanto crise mimética, donde chegamos à outra perspectiva da mesma questão do sagrado satanizado: o novo culto a Dioniso. Nietzsche percebe que o cristianismo derrota os mitos antigos, a religião arcaica e a violência irruptiva da celebração da vida. O cristianismo é a moral das vítimas que ele toma como fracos e ressentidos. Por isto, Nietzsche defende a volta dos valores pagãos, do ensinamento dos mitos, da violência que celebrava a vida, a moral do super-homem. Nietzsche apropriado pela direita é esse desejo de simulação de um super-homem que derrote a verdade universal da Cruz e nos conduza de volta ao paraíso nostálgico das proteções sacrificiais. Em geral, é fortemente antiliberal, pois seu desejo é voltar a um passado de mitos e da violência satânica tradicional. Essa nostalgia costuma ser nacionalista e étnica.

Durante todo ano de 2016 foi fácil perceber o crescimento de um movimento nacional-populista, onde os laços de união era a volta de uma escatologia nacional ou étnica. Em ambos os casos, se busca um movimento identitário. Contra a dissolução liberal, o homem do “subsolo” busca solução em alguma raiz nacional, tentando resgatar algum mito de fundação que lhe forneça um sentido novamente. Marine Le Pen apelou para o senso de identidade nacional; na Rússia, Putin assumiu o papel de líder da missão escatológica do homem russo enquanto restaurador. Ambos apelam para a macaqueação da honra na violência.

Na América, aproveitou-se do forte senso de identidade em que os liberais apostaram para formar sua máquina supervitimológica. A dor passada (por causa do racismo e da segregação) virou vingança e senso político-partidário para muitos negros, e esta base identitária cada vez mais agressiva (com e/ou sem razão). Isto fomentou a volta de velhos fantasmas americanos que pareciam adormecidos, criando um reforço de identidade em quem estava sendo acusado. É um caso evidente de rápida escalada de violência, sendo perigosamente manipulada pelos dois polos da política.

Nesta franja perigoso, um dos elementos que levou a vitória de Trump foi o crescimento de um movimento “nacional-populista” encampado por um dos seus conselheiros, Steve Bannon. Embora negue o supremacismo racial, ele pode reaparecer internamente, pois o seu nacionalismo tem dois enfoques: econômico e social. Ambos se unem na negação ao globalismo. Contra a tentativa da cultura liberal de universalizar-se e extinguir todo tipo de fronteira e divisão, agora se valoriza os valores locais, independente dos quais sejam. É a volta de um forte senso identitário contra a identidade única do “império globalista”.

Lembro que, numa passagem bíblica, o faraó ordena a matança de filhos de hebreus, pois o povo estrangeiro e escravizado poderia se tornar grande demais e incontrolável. As fronteiras e o controle demográfico sempre foram uma preocupação material de quem tem o poder. Todavia, quando a Cruz triunfa, é a sua universalidade que vence também. Por isto, o desvelamento das proteções sacrificais é um processo mundial. Pervertido essa revelação pela cultura liberal, os “identitaristas” desejam a volta de um antigo mundo localista, espaçado, em que os mitos nacionais protejam da dissolução social que o estrangeiro pode representar.

Para isto, o nativismo tenta reencontrar no passado uma aurora do tempo que dê sentido ao futuro programado. O “nacional-populismo” defendido por Bannon significa: protecionismo comercial, hostilidade ao estrangeiro, unilateralismo, reação ao globalismo liberal. Para ele, um país só pode ser “salvo” do caos produzido pela dissolução liberal se voltar-se para si mesmo, para sua população nativa, para suas origens. Para isto, Bannon pode celebrar até mesmo o ressentimento e o rancor que coloca nosso coração nas trevas do ódio: “Darkness is good. Dick Cheney. Darth Vader. Satan. That’s power. It only helps us when they get it wrong. When they’re blind to who we are and what we’re doing“. Irritado e repelido pela balbúrdia lá fora, o “homem do subsolo” sente-se reprimido e irá buscar em qualquer tipo de afetação do passado uma explicação mítica para esta nova ordem, mesmo que sejam explicações raciais. O seu coração perdido é o poder que tanto deseja Bannon. Talvez, para sangrá-lo mais.

Uma parte do que se chama de alt-right defende abertamente que a cultura é inseparável da raça, e que as nações possuem espíritos através de sua cultura. Colocado nesses termos, a raça produz a cultura nacional, que precisa ser resguardada da dissolução. Mas, por estar em reciprocidade, tanto a escatológica étnica, quanto a racial, trabalham com a mesma temporalidade da perversão liberal. E, assim, enfrentam a dimensão universal da verdade anunciada por Cristo, buscando no papel da identidade o centro-comum da vida, pois pretende destronar os pilares materiais da ordem liberal. Contra a descoberta do indivíduo, contra o livre-arbítrio, contra a proteção as vítimas do sacrifício, essa nostalgia pretende resgatar o tempo onde os mitos protegiam a sociedade de sua destruição até uma nova expiação.

Quando olhamos para trás, percebemos que o nazismo foi também uma nostalgia dos mitos que desejava enterrar a preocupação moderna com as vítimas. Ele considera o cristianismo indulgente com as vítimas, fraco, assassino dos mitos nacionais, do sentimento forte de identidade que vem com o mecanismo expiatório. O extremista Varg Vikernes afirma que a Europa é filha dos deuses pagãos e que o cristianismo a conduziu a universalidade secular que destrói todo localismo hoje. O cristianismo é universalista, pois sua verdade não é local, mas transcende dentro do próprio seio da história. Nenhum nacionalismo consegue se ancorar nele. Por isto, o novo nacionalismo ou localismo contra as elites progressistas é basicamente pagão. Recorre aos mitos originários para dissolver o globalismo.

A volta desse sentimento reativo e nostálgico está diretamente relacionado a escalada rápida de rivalidade trazida pela cultura liberal. E engana-se quem pensa que este movimento reativo consegue realmente reproduzir a volta de outrora. Da mesma maneira como há no sagrado pervertido uma volta recalcada do paganismo, há na nostalgia das proteções sacrificiais uma volta deste de maneira artificial, teorética, animalesca. Longe de ser uma experiência real, pois esta experiência não é mais possível depois da Cruz, é mais um sentimento recíproco, acelerado pelo ódio diante da dissolução, podendo gerar igualmente uma violência desordenada (e não ordenada pelos mitos).

Não se pensa na perversão, no fracasso do homem depois da revelação da Cruz, pois isto seria olhar primeiro para dentro de si antes de odiar o medo que representa o outro. Ao invés disso, deseja-se explodir este mundo criado após o desvelamento, arruinar o mundo moderno como se tudo nele fosse esquecimento de um passado glorioso de outrora. O “homem do subsolo” não quer ver o seu próprio fracasso diante do caos que assiste lá fora. Ele se sente prostrado de meios para agir, quer uma reviravolta catártica, uma violência que reordena a sociedade contra a bagunça que está lá fora e lhe ameaça dia após dia não só corporalmente. Somos fracos diante da ameaça da morte violenta ou da perseguição, e nos deixamos inebriar e ludibriar por uma perigosa nostalgia por um retorno violento dos mitos. Quantas vezes diante da barbárie cotidiana que vivemos no Brasil, não senti meu coração tomado pela reciprocidade, com um desejo febril de vingança.

Irritados com o que representa a cultura liberal, deseja-se o fim do mundo moderno, mas isto sempre com as mesmas ferramentas deste. Não se pode revoltar-se contra o mundo moderno sem ser extremamente moderno. A cultura liberal funciona a partir de uma máquina supervitimológica, onde a vítima tudo é permitido, mas esta máquina também pode ser apropriada por um inimigo íntimo seu, que carrega sua mesma temporalidade. Perseguido pela cultura liberal, o “homem do subsolo” se coloca também na posição de vítima para justificar o seu ódio e o seu sentimento de destruição, sendo ainda mais claro quanto a uma violência catártica, e acelerando o contágio mimético e a escalada da rivalidade. Donald Trump foi especialmente hábil na eleição de 2016 ao utilizar da perseguição que sofria da imprensa para demonstrar que, longe da tolerância que defendiam, os liberais eram hipócritas que perseguiam as pessoas através do “politicamente correto”. Fazer-se de vítima também pode ser um instrumento de quem tem nostalgia do tipo de ordem de um passado onde a violência contra a vítima não era desvelada pela Cruz.

Num mundo sem proteções sacrificiais, a reação às elites liberais pode ser conduzida dentro de uma mesma temporalidade. Enquanto reciprocidade, essa nostalgia está fadada a busca por essas proteções pagãs, ao retorno violento dos mitos, a negação da Cruz em busca de uma escatologia étnica e/ou nacional. E, certamente, essa nostalgia não destruirá a cultura liberal, mas – ao acirrar a rivalidade – estará contribuindo para a aceleração de uma violência desordenada, dissolutiva e – por que não? – apocalíptica.

4. A revolta contra o mundo moderno ou os perigos da nostalgia (II): os tradicionalistas

Não só de nostalgias políticas vive a revolta contra o mundo moderno. Há um aspecto dela especialmente cultural. Ela consiste em tomar a Cruz não como uma realidade efetiva, mas tirar Deus e Sua presença por sua cultura. Estes percebem que a cultura liberal rivaliza com a cristã e, olhando para trás, esperam restaurar a cultura cristã. Todavia, por raciocinarem na mesma temporalidade (materialismo), acabam colocando a tradição e a cultura cristã no lugar da presença real de Deus. Em geral, são os tradicionalistas.

O tradicionalismo é uma revolta contra o mundo moderno por só perceber neste uma dissolução. A presença da Cruz de Cristo deixa de ser percebida nas coisas efetivas deste mundo, tal como a emoção genuína que se ergue diante dos cacos da vida moderna. Toda essa proeza e seu caráter de redenção é esquecido, obnubilado, como se Deus tivesse nos abandonado ou estivesse nos pedindo a espada ou a histeria para uma “reconquista política ou cultural”. A tradição deixa de ser uma referência e passa a ser o depositário do poder humano. É a esse poder humano que, na verdade, o tradicionalista está obedecendo e dando graças.

No lugar da presença real da Cruz, coloca-se uma das suas consequências virtuosas, a cultura cristã. Essa maneira de tomar a cultura quase que afastada da realidade efetiva da experiência de Cristo é o primeiro tipo de perversão do sagrado, anterior mesmo a cultura liberal. A tradição é o seu próprio Deus e está acima da realidade de Cristo e do coração das pessoas. No meio do torvelinho moderno, esse apego ou a pretensa volta da tradição funciona mais como um cacoete, um chavão, um critério de distinção para aquele homem imbuído de ressentimento no subsolo.

O tradicionalista olha para o passado não para aprender ou contemplar as coisas grandiosas que nos foram legadas e podem ser atualizadas na participação real destas no presente; ao contrário, olha para o passado tal como um parasita, que quer utiliza-lo para dar vazão as suas frustrações pessoais, para gritar contra o mundo moderno. Ele pretende ser uma espécie de corretor da Providência Divina, um instrutor de Deus.

Essa mistificação da tradição vem acompanhada da arrogante perspectiva de que uma cultura de outrora precisa ser reconstituída (como se a Verdade não fosse perene e precisasse de nossos imensos esforços para que Deus continuasse presente). Por se sentir rebaixado diante da hegemonia estabelecida pela cultura liberal, este tipo de homem se sente subtraído no subsolo, afastado das decisões, sem o reconhecimento de sua importância. Diferente do primeiro caso de revolta, este segundo homem resolve sua dor e angústia autoelevando-se. Na sua soberba, ele é um agente de restauração de uma cultura hegemônica de outrora que nos trará a paz a este mundo. No entanto, o mundo moderno é também obra da cultura cristã.

Na política, um dos primeiros tradicionalistas foi Joseph de Maistre. O francês era um admirador do Antigo Regime e um crítico da Revolução Francesa e das suas instituições posteriores. Para ele, as monarquias hereditárias eram feitas por inspiração divina, o que garantiria ao soberano o arbítrio infalível desde que baseado na constituição cristã. Maistre transforma Deus em cultura, o todo no tudo, pois a presença divina se encontra no poder, criando a sua sacralização. As monarquias católicas tornam-se sacralizadas, como se a ação do soberano fossem a do próprio Deus.

Maistre não percebia que esta era o primeiro passo da secularização e também uma espécie de imitação. E isto ocorre quando trocamos a nossa consciência diante de Deus pela cultura posterior a Cruz e ao poder que foi se formando no Ocidente. Deixamos de olhar para a Cruz e a aceitar nossos sacrifícios pessoais, e passamos a sacrificar o outro em nome de Cristo, em nome do retorno glorioso de outrora. É uma “ascese do outro”, onde o pobre coitado do próximo se torna o alvo da expiação de nossos pecados.

Em termos filosóficos e espirituais, este segundo tipo de homem no subsolo do Ocidente irá se aproximar do esoterismo de René Guénon ou Julius Évola. Com o primeiro, irá se interessar pela restauração do Ocidente por uma nova elite esotérica, talvez islâmica. Com o segundo, além de certa simpatia com os regimes fascistas, aprenderá a macaquear os valores aristocráticos de outrora, confundindo honra com afetação de força, segurança com masculinismo infantil.

Embora tenham criticado o mundo moderno por seu materialismo, por não perceberem a real origem deste, nem terem primeiro percebido a si próprios como – todos nós, afinal – homens modernos, não escaparam dessa temporalidade. Todo anti-moderno é extremamente moderno, pois – como na cultura liberal – encontramos aquela percepção de si diante do tempo que projeta um futuro desejável longe das suas experiências. Neste caso, continuamos tendo aquele mesmo desejo de reformar este mundo.

5. O materialismo, a política e as ideologias

A cultura liberal e o seu outro por reciprocidade, as nostalgias, possuem como substrato uma mesma percepção temporal. Este tipo de percepção do tempo, ou seja, a maneira como o homem se enxerga dentro do tempo dos acontecimentos com suas experiências e expectativas, é o que chamo de materialismo.

O Dicionário Filosófico de Nicola Abbagnano aponta que o termo materialismo foi utilizado pela primeira vez em 1674, na obra The Excellence and Grounds of the Mechanical Philosophy, de Robert Bayle. O materialismo era a doutrina que tem por causa a matéria. Depois, o termo foi utilizado para se referir ao primado da matéria em vários aspectos: gnosiológicos, metodológicos, etc. Como rival da Cruz, a cultura liberal se estabelece com uma percepção do tempo oposta, pois enquanto a cristã olha para a salvação, ou seja, o seu fundamento de vida neste mundo está para além dele, a liberal olha para o aqui e agora com um futuro substancialmente aberto e em transformação, variando sua perspectiva (como utópica ou não-utópica), o seu instrumento (gradual ou a partir dos diversos meios revolucionários não só militares), o tipo de progresso (jurídico, cultural, social, etc.), o grau (do reino de liberdade messiânico ao pragmatismo), entre outros. Essas infinitas variabilidades compõem várias tipologias de ideologias internas a cultura liberal. Por ver o sentido como contido no tempo, ou seja, no mundo material, denomino de materialismo essa temporalidade.

Santo Agostinho foi o principal autor que desenvolveu o tema do tempo para o cristianismo. Para isto, é preciso compreender o livre-arbítrio. O mal não é uma coisa, logo, não pode ser escolhido. Então, o que escolhemos? Deus é o próprio bem, então, o mal é a separação de Deus. Agir mal é escolher se afastar do bem, em diferentes graus e níveis. Então, podemos escolher apenas nos privar do bem. Ele nos deu o livre-arbítrio para amá-lo ou nos afastarmos Dele. A opção entre dois modelos. O homem possui, então, o livre-arbítrio para amar Deus de volta ou negá-lo se afastando Dele.

Compreendendo essa perspectiva, fica mais fácil entender porque Agostinho colocava a eternidade como medida do tempo. O que conhecemos como tempo não pode existir em si mesmo e só pode ser percebido a partir do que lhe dá forma, mas não reside nele, o eterno. Afirma Agostinho:

O que agora parece claro e evidente para mim é que nem o futuro, nem o passado existem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro. Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem em nossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança.

Não existe tempo na eternidade, mas é esta que permite a sua existência para nós. No eterno, existimos sem limitação temporal. No tempo, somos limitados: nascemos e morremos para esta vida material. O tempo está diretamente relacionado a alma, pois o tempo é criatura e não criador. E a criação existe dentro da eternidade de Deus, a ausência do tempo. Então, o tempo está diretamente ligado à nossa consciência dele. E esta consciência, por sua vez, relaciona-se com a alma, como capacidade para compreender, perceber, sentir, raciocinar a partir do que propicia o espírito. Funcionando a partir da consciência, não pode existir passado, presente ou futuro, mas memória, percepção direta, e esperança ou expectativa. A realidade é essa consciência no entremeio, por isto, encontra-se no presente e se projeta ao passado enquanto memória e ao futuro como espera. Os três tempos estão na minha consciência e me permitem estar no mundo e dele ter consciência. A consciência do tempo nos permite a confissão diante de Deus, do eterno, redimindo nossos pecados.

Logo, o sentido da história não se encontra no tempo, mas no eterno. Foi esta percepção do tempo adequada a consciência do pecado que a Cruz instaurou. No materialismo, enquanto temporalidade, o sentido da história passa a residir no tempo e o eterno se instaura em futuro. Ou seja, o sentido da história sai da eternidade e se encontra no tempo, projetando o “reino dos céus” no futuro. O materialismo é a má imitação da Cruz de Cristo: tudo pela glória deste mundo e para este mundo. É a temporalidade do materialismo que sustenta a cultura liberal e também funda todas as ideologias.

O historiador alemão Reinhart Koselleck (para mim, o maior do século XX) abriu um grande caminho para entendermos o moderno a partir da sua consciência temporal. Estudando a história dos conceitos e das ideias, ele descobriu mudanças de temporalidade que estavam presentes em cada camada de um conceito e, assim, na própria história social.

O alemão pensa o tempo histórico como constituído pelas concepções que a sociedade tem sobre sua temporalidade. E, em todos os conceitos utilizados pelo homem no tempo para representar essa temporalidade, aparece duas categorias históricas fundamentais (que não são antitéticas): espaço de experiência e horizonte de expetativa. A primeira categoria representa a tradição que é recebida ao ser que se encontra no mundo; e a segunda, a projeção de futuro diante da vida corrente. O tempo histórico encontra-se na relação entre essas duas categorias formais. Portanto, a compreensão do tempo histórico está sempre ligada a maneira como os homens combinam a experiência do passado com suas expectativas do futuro, encontrando-se no mundo a partir dessa temporalidade. Em síntese, para citar Koselleck, “entre a experiência e a expectativa, constitui-se algo como um tempo histórico”.

Koselleck interpreta a modernidade na Europa continental a partir da emergência de uma nova percepção de tempo. Para ele, as duas ideias centrais da modernidade são: um futuro inédito, aberto a transformação, aonde experiência e expectativa vão se afastando; e a aceleração do tempo. Até o século XVI, Koselleck observava que a finalidade do mundo se encontrava para além dele. No mundo material, existiam apenas as histórias (no plural) como mestra da vida, pois possuíam como sentido maior uma escatologia que estava fora desse mundo. Esse tempo histórico cristão foi imanentizado na modernidade, e a História (no singular) que estava fora desse mundo veio para o aqui e agora.

Essa emergência de um novo tempo histórico pode ser percebida nas transformações conceituais da ideia de “história” como nota Koselleck. Na língua alemã, o termo Historie significava um relato de algo que tinha ocorrido, e o termo Geschichte o acontecimento em si e não o seu relato. Com o tempo, ambas passaram a se referir à história enquanto processo. Essa substituição de significado mostra a superação dos relatos históricos enquanto mestres da vida e a emergência da história enquanto processo. O mesmo ocorre com o termo “revolução”, que passa de um movimento circular para indicar uma transformação sem volta a sua origem. Koselleck indica que Robespierre pretende acelerar o tempo ao trazer o reino da liberdade à força, secularizando inconscientemente as expectativas apocalípticas da salvação. Essa emergência dissemina a experiência de coexistência num mesmo espaço temporal de várias camadas distintas de temporalidade. É nesse momento que vários autores criam a ideia de progresso enquanto ordenação desses vários tempos num processo linear e universal. O sentido da história sai da eternidade e passa para o tempo (a filosofia da história), e a história torna-se um processo em direção ao reino da liberdade. A providência não é mais divina, mas de humanos onipotentes querendo mudar a realidade e construir seus caminhos.

A história processual direcionada ao progresso é parte de uma utopia futura, repleta de expectativas na capacidade racional de agir instrumentalmente. As expectativas desse futuro promissor afastavam-se das experiências do passado. A razão humana, independente e autônoma, tornava-se consciência que podia planejar o futuro, alterá-lo e torna-lo melhor. A história torna-se um processo singular, onde sua finalidade é imanente a este mundo e chega ao seu fim no reino da liberdade. Voltando-se para um futuro utópico, os homens desprezam o passado e suas experiências.

A História aparece como futuro promissor da realização da autonomia do indivíduo. A sociedade em processo de esclarecimento acredita que a liberdade de consciência é a condição para a paz social e não mais o arbítrio do rei. A escatologia torna-se história processual e, agora, a sua finalidade está nela mesmo. Aparecem, então, as formulações conceituais, como “História”, “revolução”, democracia”, entre outras, sendo reveladoras estruturais dessas transformações sociais e políticas. É o nascimento dos “ismos” na sociedade política onde os homens disputam o seu futuro em aberto como senhores de si mesmo.

Estes novos conceitos se aproveitam da “abertura política” proporcionada pela crítica liberal, pela nova moral laica e secular, pela democracia liberal, pela fundação do público como foro independente do sagrado. O futuro em aberto é disputado pelas ideologias na arena política, e esta nova consciência temporal coloca-a no lugar da Providência Divina.

Aqui, chegamos na transformação da política que o materialismo acarreta. O termo política vem do grego politikos, que significava a arte de achar entendimentos entre os cidadãos (polites) que conviviam em comum na pólis. Assim colocado, a política é aquela esfera onde os cidadãos se encontram e tentam – por meio do consenso – achar soluções que coloque o interesse do bem-comum acima do interesse individual. Colocada dessa maneira, a política sempre existiu e sempre existirá: enquanto esfera em que os homens tentam arranjar soluções práticas para sua convivência mútua e para resolver seus conflitos.

Todavia, se a política é meio para o bem-comum, ela pôde se torna uma finalidade no mundo moderno. Quando o poder é democratizado, isto o torna ao alcance de todos, diminuindo o arbítrio e a força, mas estende a rivalidade para o campo da política. Somado a isso temos a modulação das expectativas com a criação dos “ismos”, e a política passa a viver na tensão entre a busca por soluções práticas para problemas evidentes e o seu exercício como utopia. A política deixa de ser um meio, para se tornar a finalidade da redenção neste mundo, num futuro pleno de expectativas. Ela é fim e também meio para acelerar esta finalidade.

Na própria família, podemos observar a essência da política para resolver questões colocadas. Quando um pai e uma mãe decidem em conjunto o momento de dar mesada para o filho, pesam uma série de questões tais como capacidade financeira da família, responsabilidade e maturação do filho, etc. A resposta é incerta, mas a ação (como meio) é tomada para que tal fim possa ser alcançado. Nada indica que o procedimento deva ser o mesmo para cada filho, podendo variar de acordo com o momento familiar e a estrutura do indivíduo. Essa é a essência da ação política, um meio incerto, mas necessário, para resolver a questão. Quando esta ação é transformada numa doutrina, num princípio, a política se torna fim, com a disputa de grupos ideológicos fortemente identificados nestes termos, e que aceleram a rivalidade aberta pela democratização o poder.

Isto ocorre porque o materialismo, enquanto temporalidade, abre uma nova percepção em que o futuro está em construção e em disputa. Os “ismos” preenchem esse futuro em aberto, criando princípios e projetos que realizem o sonho da sociedade futura. A doutrina se coloca no lugar da Providência e projeta um futuro a partir da ação política. A política deixa de ter sua realidade prática e passa a ser idealizada por princípios e conceitos que formatam uma realidade, mesmo que reativamente (conservadorismo). A esperança sai da salvação e passa para os princípios da política em disputa, e a misericórdia divina se transforma na concessão humana num delírio de um “mundo melhor” em construção.

A disputa democrática nos traz vantagens práticas, mas o seu “futuro em aberto” também fomenta as ideologias, enquanto “imanentização” do real. Chesterton dizia com razão que toda ideologia era parte da verdade. Por exemplo, é verdade que a falta de continuidade e de acordo entre as gerações leva a desestabilidade e a dissolução da sociedade; todavia, a ordem e as instituições deixam de possuir capacidade de se modificar substancialmente, tornando-se imóveis em essência, quando não estão em cheque. Um bom exemplo disso são instituições de conhecimento hoje. A transgressão também traz benefícios como mostra a história do cristianismo que transgrediu a ordem pagã, tendo a glória dos mártires como seu resultado. A ordem foi feita para ser transgredida, e a transgressão foi feita para gerar ordem. E a história dá exemplos disso a cada respiro. Ordem e transgressão são partes da realidade, com perdas e ganhos. A ideologia conta apenas uma parte dessa verdade.

Sobre este duplo, próprio da realidade no entremeio, e que vimos na história do cristianismo (transgressão do paganismo, construção da cultura cristã), criam-se princípios e ideologias que chamamos, como tipos-ideais, de “direita” (mais apelo às questões da ordem) e “esquerda” (mais apelo às questões da transgressão). As ideologias pegam uma parte da estrutura do real, a tomam como princípios materiais, e planejam (e aceleram) o futuro. Isto ocorre mesmo com o conservadorismo (que, em tese, poderia ser uma reação a ideologia), pois não só de utopia vive o futuro. Se a tradição conservadora costuma ser crítica da utopia, isto não garante que os conservadores políticos – enquanto interpretação parcial da realidade – não carreguem expectativas de futuro (o mundo melhor sem a utopia, por exemplo) que adeque o real e corrija o curso da história, como uma “escatologia realizada”. Ou seja, todas as ideologias são fruto da temporalidade materialista.

A cultura liberal se apresenta em várias formas ideológicas – de direita e de esquerda. A construção da democracia liberal, da moral laica civil, da volta do foro interior ao público, dos direitos fundamentais, algumas dessas invenções que tiveram consequências formidáveis, transformadas em princípios de mundo e doutrina criaram a ideologia do “liberalismo clássico”. As três características principais desse liberalismo, segundo Merquior, são: a autonomia, a liberdade e a independência do Estado. Está ligado a nomes como John Locke e Montesquieu e, em especial, aos whigs ingleses. As suas raízes encontram-se desde o humanismo renascentista aos vários tipos de iluminismo. Ele possui como principais características a defesa: da liberdade individual, do império da lei contra o arbítrio do rei, da igualdade perante a lei, da limitação do poder do Estado e de sua atuação, da separação de poderes, do direito de propriedade, e da liberdade econômica. Quanto a democracia e ao sufrágio universal, sua relação sempre foi ambígua e discutível.

Outro tipo de ideologia da cultura liberal é o “liberalismo conservador”. Em geral, ele emerge após a Revolução Francesa como reação as ideologias nascentes, como o liberalismo e o socialismo. Podemos observar no século XIX, dois tipos de conservadorismo diferentes do liberalismo conservador. O primeiro é um conservadorismo antiliberal que, na verdade, é uma nostalgia do Antigo Regime, trazendo novamente à tona temas levantados por Bodin e Bossuet. São exemplos: Joseph de Maistre e Louis de Bonald. O segundo é o conservadorismo romântico (um tipo de romantismo), que é esteticamente antiliberal e defende as forças da imaginação contra a racionalidade burguesa. Ele surge na época da revolução industrial e das revoluções burguesas. É uma resposta estética, cultural, e filosófica, a esta sociedade que está se formando. Opondo-se ao universo das formas racionalistas e da harmonia do classicismo, o romantismo representa, para o poeta alemão Novalis, uma “arma de defesa contra o cotidiano”, na modorra de sua banalidade. Não raro, o romantismo foi, por isto, estigmatizado – não sem alguma razão – pela nostalgia idílica do passado. Para Peter Gay, a chave do romantismo é o reencantamento do mundo. Todavia, o seu resultado era a melancolia diante da compreensão da inalcançabilidade dos seus desejos, sendo descrita como o estado de ânimo do anseio (Sehnsucht). Esse tipo de conservadorismo chegou a influenciar todo marxismo ocidental, em especial, figuras como Walter Benjamin, Ernst Bloch e Theodor Adorno.

O terceiro tipo é o liberalismo conservador, um produto basicamente anglo-saxão, extremamente influenciado pela separação entre fé e razão do protestantismo e pelo empirismo de David Hume. Contra o realismo metafísico, inspirado pelos empiristas, os liberais conservadores eram contrários a Revolução Francesa, pois a prudência era obra não de arroubos particulares, mas de instituições que passam no teste do tempo (uma espécie de historicismo), sendo adaptadas e modificadas lentamente de acordo com o que os homens da sua época aceitam. Essa primeira característica tira a ideia de verdade da transcendência e coloca na história e na tradição. Disso, decorre sua defesa da tradição como norte permanente que produz o encontro entre as gerações (passado, presente e futuro), criando um estado de virtuosidade coletiva. Outro ponto é a crença nas instituições humanas como garantia para liberdade individual. Por fim, são céticos em relação ao novo e às transgressões. Por fim, o terceiro tipo de liberalismo é o liberalismo-social do século XIX e XX, que já expliquei no primeiro ponto deste ensaio.

A cultura liberal se desenvolve também enquanto social-democracia. Esta é próxima do liberalismo-social, mas tem suas raízes fincadas mais no socialismo e no trabalhismo (defesa do trabalho na mediação com o capital). Os social-democratas acreditam na capacidade do Estado para intervir na sociedade – em seus vários aspectos – para promover o seu ideal de felicidade geral gradualmente, através da hegemonia na democracia.

A característica de todas as ideologias da cultura liberal não é acreditar nos pontos positivos da democracia liberal, do secular, do Estado racional, mas, tomar tudo isto como um valor, um princípio, um projeto a partir de uma nova concepção de tempo, onde a escatologia cristã torna-se imanente para a realização do futuro e correção ou consecução do curso da história processual. Como falei anteriormente, a variabilidade dessas ideologias vai desde o destaque dado a ordem ou a transgressão, sua perspectiva, o seu instrumento, o tipo de progresso, o grau etc.

Quando se nega a cultura liberal nos termos políticos e se mantém a temporalidade materialista, como toda projeção do futuro e percepção do sentido da história no tempo, temos então a sua negação por reciprocidade. São as ideologias antiliberais. Como já expliquei, o nazismo foi uma ideologia que representava o retorno violento dos mitos, sendo uma nostalgia das proteções sacrificiais. Outro tipo de ideologia antiliberal foi o socialismo marxista ou o socialismo propriamente dito.

Os elementos escatológicos do marxismo são evidentes. Numa idílica e famosa passagem da Ideologia alemã, Marx descreve o comunismo como “caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição”, tudo isto ao bel-prazer. Para chegar ao reino da liberdade, a verdadeira História, seria preciso passar antes pelo socialismo, quando o proletariado assume – pelas armas – o poder, governando por sua ditadura e impondo o fim de todas as divisões. Então, teremos o nosso céu. Na prática, a concentração de poder da “ditadura do proletariado” funcionou como uma “explosão do cotidiano”.

O marxismo nega a cultura liberal, mas faz parte dela enquanto consequência de uma dose exagerada. Na prática, funcionou como uma primeira experiência da máquina supervitimológica em ação, mas por concentrar todo o poder não podia lidar com sua excepcionalidade. O que restou do marxismo foi incorporado à cultura liberal. A nova esquerda não está preocupada com um novo “assalto aos céus”, nem com todo poder aos trabalhadores, mas com a ampliação da sua utopia de liberdade pelo poder integrado, como já expliquei no segundo ensaio.

Nesse sentido, 1968 é um símbolo lapidar para a nova esquerda. Agora é proibido proibir, pois “a emancipação do homem será total ou não será”, “a imaginação tomará o poder”, “a insolência é a nova arma revolucionária”, e “a liberdade do outro estende a minha ao infinito”. É um momento de transformação onde a vítima não é só uma classe social, mas qualquer um que sofra com os “limites” do real. A máquina supervitimológica deixa de ser um experimento com o poder concentrado, integra-se à sociedade e se incorpora ao centro da cultura liberal. Esse encontro pode ser percebido, como já expliquei em “A tirania da liberdade”, no encontro entre Foucault e Hayek.

Para Foucault, os regimes de verdade são maneiras de controle social pelos quais se constituem as instituições. Assim, ele vai a crítica desses regimes em diversas instituições: na psiquiatria, na medicina, nas prisões e nos padrões de sexualidade. A realidade é um processo de subjetivação e a verdade só existe enquanto poder que atua nas instituições como regimes de produção. Nos seus últimos livros, ele se dedica ao conceito de biopoder, aquele que investe sobre os corpos, oferecendo dominação e produzindo resistências. Esse interesse pela dominação e pela resistência leva-lhe direto a Hayek. Em 1979, Foucault deu seminários que depois se transformaram no livro O Nascimento da Biopolítica, em que ele foca na questão do poder e da repressão e dá atenção especial aos autores liberais. Foucault destaca em especial a seguinte questão: governamos demais. As revoltas de 1968 tinham mostrado para Foucault que o seu lema por mais liberdade individual (donde veio a luta pelo direito ao aborto, casamento gay e outros mais), era uma luta por mais liberdade individual e não nos moldes da luta de classes marxista. A opressão não era mais entre um patrão e um operário mediado pela mais-valia, mas opressão do homem para com sua mulher, da sexualidade normativa para com os gays, da sociedade para com os loucos, etc. O biopoder ia além da disciplina e controlava os corpos, não só a partir das instituições. Governar menos significa também ampliação dos direitos. Ninguém precisa mais de um soberano, um grande e autocrata Stalin, mas da ampliação da cultura liberal, do seu aspecto formal e utópico. Essa nova máquina supervitimológica vai unindo, em torno do poder integrado, a cultura liberal.

Junto com o materialismo e com as ideologias, vêm os perigos das identidades políticas. O sujeito dissolve a sua consciência, logo, o seu ser, em prol de uma crença política que ajustará os problemas ao eliminar o seu bode expiatório, donde logo se desenvolve o par “amigo” e “inimigo”. Amigo passa a ser quem está convicto com você em sua identidade política, inimigo é todo mundo que quer impedir isto. Diluído pela percepção do tempo materialista, ele deixa de se ver como um pecador – como tantos outros – diante de Deus, consciente da sua miséria neste “vale de lágrimas”, e passa a depositar suas esperanças e expectativas numa ação política futura que cambaleará o mal (seja a direita, esquerda etc.). Quando o materialismo expulsa Deus, está se colocando no lugar Dele. Quando o materialismo expulsa Cristo da Cruz, não aceita a sua, mas faz a performance da vítima a quem é dado o direito de vitimar sem culpa. As identidades políticas secularizam os mecanismos expiatórios, e fazem o seu retorno por outros meios. Mas esta só pode ser a emergência de uma violência desordenada.

6. A escatologia cristã e os “freios de emergência”

Sempre quando partimos da pergunta “qual é o problema do mundo?” estamos querendo nos enganar. Não é que o mundo não tem problemas, é que estes começam conosco. Não se trata de erradicar a cultura liberal, as nostalgias das proteções sacrificiais, o materialismo, a ideologia, etc. Trata-se de perceber a ação disso tudo no seu espírito e de como fracassamos esquecendo a Cruz. Como mostrou Girard, a desmistificação foi boa em termos absolutos, mas em termos relativos mostrou que o homem não consegue lidar com suas consequências.

Esse momento de finitude não significa a volta à religião arcaica ou a um paganismo que foi destruído pela Cruz, mas antes a um sagrado dessacralizado que foi satanizado pela má consciência que temos dele. A má imitação da Cruz em todos os contornos que vimos no mundo moderno, onde o bem e o mal se intensificam, confirma o paradigma cristão e o nega ao mesmo tempo, esta é a satanização do sagrado anunciado após a Cruz e também o que anuncia a iminência da segunda vinda de Cristo.

Chegamos novamente a questão do tempo e de como a imaginação apocalíptica pode nos ajudar. O primeiro passo é compreender que o sentido das coisas não está no tempo, mas no eterno. Uma resposta hipermoderna a história processual foi negar a existência da “história”, mas só de histórias. No entanto, se há várias coisas que reúno e classifico como parte da pluralidade de histórias, é porque em comum todas elas são antes uma história no singular. Mas se existe história no singular deve-se a existência do eterno. É só como decorrência da imortalidade da alma e da nossa vocação para a vida eterna, que podemos existir no mundo material dentro do tempo, pois este depende da consciência que temos dele.

A nossa consciência do tempo não deve ser para ele mesmo (o materialismo), caso contrário, estaremos nos percebendo temporalmente sempre como indivíduos prepotentes, controladores dos rumos gloriosos da história. Não existe sentido sem finalidade, e este só pode ser entendido após invocado. Como não estamos fora da história, mas dentro dela, só nos é acessível a finalidade através da revelação. A finalidade não está no tempo, mas no eterno. Acessível pela revelação e pelos símbolos condensados na história, e não por nosso desejo de eliminar os infortúnios. Quanto mais descobrimos nossos fracassos, mais percebemos a origem vindo diante de nós como assegurava Girard.

Ao mesmo tempo, a imaginação apocalíptica não se trata de uma profecia, mas de um reconhecimento dos dramas humanos no tempo em si mesmo e de como isto pode prefigurar a tragédia. Pois, o apocalipse não é uma figura de linguagem que inspira ou busca uma ação que toma o sentido das coisas como internas ao próprio mundo. A revelação do fim é o que dá sentido a história porque sem ela nada poderia ter sentido. O apocalipse é revelação, mas justamente por isto só pode ser revelação enquanto finitude da história humana, agindo no plano da salvação das almas. Outro sentido equivocado do apocalipse é costumeiramente adotado por fundamentalistas ou histéricos. Ele não é o destino traçado por um Deus mal que vai se vingar da iniquidade dos homens e fará justiça com sua onipotência. Não é obra de um Deus odioso, acusador e vingativo que destrói a humanidade por sua justa ira. Isso seria transformar o Deus do sagrado num mito arcaico e, assim, confundi-lo com Satanás.

Então, o que é o apocalipse? É uma revelação divina. Justamente por ser a revelação final das coisas que permaneciam ocultas, ela só pode ser finitude desse mundo. A revelação final é o momento derradeiro que liga toda a história humana e condensa o que somos e fizemos. O apocalipse é o símbolo que condensa todo o drama humano, desde a queda da humanidade pelo pecado original, o seu ímpeto destrutivo, sua crença onipotente no seu poder de conhecer as coisas materiais e pretensamente cria-las. Esse símbolo nos revela a escatologia da humanidade e, por isto, remete-se a Parusia (a segunda vinda de Cristo), consumando a participação do gênero humano na natureza divina de Deus.

Girard refere-se ao apocalipse como revelação do fim dos tempos, sem que por isto Deus tenha tirado a liberdade dos homens de agir em contrário como nos mostra as aparições de Maria. O fim tange, sobretudo, sobre a perspectiva escatológica da história e a revelação que nos leva a revelação do enredo da humanidade. Todavia, ninguém sabe quando e como se realizará essa finalidade, mas só a sua estrutura simbólica.

Quando assumo a escatologia e procuro ler os símbolos da história a partir dela, não me coloca fora da história como um observador atento (como os que anunciaram o reino da liberdade no futuro), mas como alguém que aceita a revelação por evidências racionais e que crê nelas. Como símbolo, tal como explicou Pedro Sampaio num post, três são os inimigos de Cristo: o Falso Profeta, a Besta do Apocalipse e a Prostituta da Babilônia. O primeiro liga-se aos erros e a arrogância do intelecto, a segunda refere-se à violência desordenada, e a terceira fala do apego ao dinheiro e as coisas deste mundo.

A partir destes elementos, podemos ter uma imaginação do apocalipse. Essa imaginação começa num sentimento como nos dizeres de Paulo: “o tempo se fez curto”. O sentimento torna-se apocalíptico quando tomamos consciência de que entre o desvelamento do mecanismo expiatório (o mundo desprovido de proteção sacrificial) e a possibilidade de nossa destruição não ficou nada além desses três elementos: perversão da razão, violência desordenada e apego ao mundo material. Foram sobre estes três elementos que trataram meus quatro ensaios.

Assim, a imaginação apocalíptica é a consciência disso. Eis então, o significado do apocalipse: o fracasso da humanidade em seguir a mensagem cristã, imitar positivamente Cristo. Esse fracasso é profetizado pelo próprio cristianismo desde a primeira vinda do Messias. Nesse sentido, toda experiência cristã desde a ressurreição é apocalíptica, porque conhece que seu fracasso será resultado também do seu sucesso, pois a decomposição da ordem sacrificial derrota os poderes de Satanás, mas libera sua violência desordenada contra o paradigma cristão. Satanás já não expulsa Satanás, mas sua violência revelada está sempre na iminência de ser desacorrentada, como provam as barbáries do século XX.

A humanidade pode escolher imitar Cristo (resistir a toda rivalidade) ou ir em direção ao fim do mundo, por sua arrogância e orgulho, sentimentos intensificados por nossa imensa vaidade em nos sentirmos onipotentes, criadores de uma liberdade ilusória. Parece que não aceitamos mais a Cruz, mas tentamos evita-la na repetição da tolice de Pedro em busca da espada. Entre a cultura liberal e o rastro de pólvora que ela deixa, parece que tudo nos induz ao ódio e a reciprocidade. As ruínas da destruição são visíveis a nossa frente, sucumbir à tentação é escolher as várias formas da espada e cair na tolice de dissolver nosso espírito, seja no “subsolo” ou na “falsa liberdade”. Parece que não existe mais alternativa: ou morte violenta ou luta sangrenta. Todavia, nosso olhar deve estar atento para o que se passa entre as duas. Este entremeio entre a fuga pela derrota e a tolice da vã vitória, trata do real significado da revelação. É entre estes dois momentos que percebemos o real significado da Cruz de Cristo: a revelação dos mecanismos expiatórios nos faz olhar para dentro de nós, para o pecado original, para nossa violência, arrogância, prepotência. Nem a indiferença, nem a guerra, pois isto é primeiro olhar para o sacrifício do outro e não para os próprios pecados. A imaginação apocalíptica nos liga, assim, de volta a consciência do eterno, que nos faz ter ciência do fracasso dos homens e do perigo para todas as almas que isto acarreta. Permite puxar o nosso “freio de emergência” e não o do todo como se fossemos o Eterno.

A imaginação apocalíptica nos ensina o tempo da Cruz, mas não para salvar o mundo, pois isto seria perverta-la e voltar novamente ao coração do materialismo. A imaginação apocalíptica deve inspirar nossa consciência diante de Deus, para tirar o nosso coração das trevas. Para, a partir disto, termos consciência de que somos parte da destruição e do sacrifício de Cristo, dirimindo as consequências do materialismo. Ao contrário do que pensou Walter Benjamin, puxar os “freios de emergência” não significa a união da teologia com a revolução para salvar o mundo que caminha para as ruínas do progresso, mas puxar os “freios de emergência” da nossa alma que está sucumbindo diante do abismo, impedindo a ruína do espírito.

Como Kevin Lomax, no filme Advogado do Diabo, há sempre uma opção. Podemos a qualquer momento parar esse rastro de destruição e negar – não Deus – mas os sentimentos que perigosos que andam a brotar em nossos corações diante dos nossos fracassos. Essa é nossa real batalha. E só a partir dela podemos ajudar o próximo na sua própria batalha.

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NOTAS

[1] No seu famoso livro Confissões, Agostinho utiliza por duas vezes a expressão “falsa liberdade” para descrever sua vida anterior à conversão.

[2] Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo tem um artigo extremamente interessante sobre o tema: A liberdade antes do liberalismo: o caso de Francisco Suárez.

Elton Flaubert

Doutor em História pela UnB.

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