Quando Machado critica o realismo, está se referindo ao quê?
No primeiro ensaio, apresentei as críticas que Machado de Assis, nos anos anteriores à publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, fazia ao realismo. Apesar de se basearem em princípios moralistas e anacrônicos, tais críticas tocavam em alguns pontos pertinentes e desvendavam sendas que o autor não estaria disposto a trilhar, embora lhe chegasse à consciência que o romantismo, ao qual estava vinculado seus quatro primeiros romances, experimentava o declínio. Em Memórias póstumas…, Machado se reinventa como escritor, deixando para trás as características românticas de sua produção anterior, mas sem aderir aos pressupostos da nova corrente literária, da qual o principal representante em língua portuguesa era Eça de Queirós. Concluiu-se que Machado não pode ser classificado como realista se temos em mente o que, em seus textos críticos, ele definia como realismo. A visão corrente de que o autor, em sua fase madura, convertera-se àquilo o que antes criticava é falsa, portanto.
Mas isso que o autor descreve como realismo seria a mesma coisa à qual nos referimos quando o chamamos de realista? Em torno do rótulo — “realista” —, há uma relativa indefinição. Muitas vezes, não se distingue o realismo como corrente literária historicamente circunscrita ao século XIX do realismo como princípio formal que atravessa a tradição literária.
Os limites do realismo histórico não são um ponto pacífico na historiografia literária. Há aqueles que, na esteira de Erich Auerbach, referem-se a uma tendência realista (o que o teórico denomina “realismo moderno”) na literatura francesa da primeira metade do século XIX, que consiste no tratamento sério e até mesmo trágico dado tanto às pessoas comuns quanto à vida cotidiana e contemporânea — conjunto de temas que, na divisão de estilos da poética clássica, era reservado, via de regra, aos gêneros humorísticos[1]. Estaríamos falando de autores como Stendhal e Balzac, que, cronologicamente inseridos na geração romântica, desenvolveram características fundamentais à ficção da segunda metade do século XIX.
Por outro lado, houve um movimento autoproclamado realista na França em meados do século XIX. Em 1855, o pintor Gustave Courbet inaugurava uma exposição de suas obras com o título Le Réalisme; no ano seguinte, Champfleury, à frente do jornal La Gazette, fazia profissão de fé da causa realista, chegando a publicar um livro que levava o mesmo título da exposição de Courbet — título que também estamparia uma revista dirigida por Edmond Duranty, trazida a lume em 1857. Em torno de tais eventos, articulavam-se artistas que se posicionavam ativamente contra o legado romântico em específico e o gosto burguês em geral, de maneira mais ou menos organizada, caracterizando um movimento artístico-literário.
Na literatura de ficção, a obra que teria sintetizado os anseios antirromânticos desse grupo e lançado as bases da prosa realista foi Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, que acabou se erigindo como modelo para outros autores. Como um desdobramento do realismo flaubertiano, intensificando algumas de suas características estilísticas e o imbuindo das ideias cientificistas da época, irrompeu o naturalismo, inaugurado por Émile Zola, em 1867, com o romance Thérèse Raquin (embora alguns autores prefiram apontar Germinie Lacerteux dos irmãos Goncourt, escrito em 1864, como primeiro romance naturalista). As fronteiras entre realismo e naturalismo nem sempre foram muito claras. Contudo, em 1880, Zola publica O romance experimental, texto teórico no qual define de vez as bases da ficção naturalista, gerando uma versão mais ortodoxa de tal movimento.
A posição de Flaubert varia de acordo com a versão histórica adotada. Se o realismo tem início com os ficcionistas da primeira metade do século XIX, então Madame Bovary é o ápice da produção propriamente realista, que se desdobraria nos anos seguintes na ficção naturalista, a qual o referido autor ajudou a criar formalizando o método descritivo. Contudo, se o realismo se refere especificamente às manifestações antirromânticas da segunda metade do século XIX, então o livro é a nascente da escola literária que desembocaria no naturalismo. Para mostrar o quanto esses termos — realismo e naturalismo — eram um tanto nebulosos mesmo para seus contemporâneos, tomemos a resposta que Eça de Queirós escreveu à crítica de Machado de Assis a O primo Basílio. Tal resposta fora concebida a princípio para a segunda edição de O crime do padre Amaro, de 1880, mas publicada na íntegra apenas postumamente. Em certa passagem, Eça diz:
Foi por ocasião do aparecimento destes meus livros, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, que se começou a falar em Portugal no Realismo e numa outra instituição que me dizem chamar-se a ideia nova. (…)
Eu sou pois associado a estes dois movimentos, e se ainda ignoro o que seja a ideia nova, sei pouco mais ou menos o que chamam aí a escola realista. Creio que em Portugal e no Brasil se chama realismo, termo já velho em 1840, ao movimento artístico que em França e em Inglaterra é conhecido por “naturalismo” ou “arte experimental”. Aceitemos porém realismo, como a alcunha familiar e amiga pela qual o Brasil e Portugal conhecem uma certa fase na evolução da arte.[2]
Eça de Queirós, um dos introdutores e divulgadores do realismo-naturalismo em Portugal, acusa o termo “realismo” utilizado por Machado de ser vago e, ainda por cima, obsoleto e provinciano. Para ele, que então vivia na Inglaterra, as críticas do escritor brasileiro referiam-se ao naturalismo, ao passo que realistas seriam as obras daqueles autores da primeira metade do século XIX. Entretanto, ele concede que em Portugal e no Brasil costumava-se usar genericamente “realismo” para designar a corrente literária na qual sua obra se insere. O que Eça não concede é que exista uma “escola realista”:
A opinião, porém, que os nossos inimigos fazem deste movimento literário, parece ser a seguinte: Que é uma “escola” e se chama a escola realista. Que foi o Sr. Zola que a inventou, um belo dia, em Paris. (…)
Não — perdoem-me — não há escola realista. Escola é a imitação sistemática dos processos de um mestre. Pressupõe uma origem individual, uma retórica ou uma maneira consagrada. Ora o naturalismo não nasceu da estética peculiar de um artista; é um movimento geral da arte, num certo momento da sua evolução. A sua maneira não está consagrada, porque cada temperamento individual tem a sua maneira própria: Daudet é tão diferente de Flaubert, como Zola é diferente de Dickens. (…). O naturalismo é a forma científica que toma a arte, (…).[3]
Eça está de acordo que existe um “movimento literário” cuja criação se costuma atribuir a Zola, embora não tenha sido fundado, pois consistiria num produto previsível da evolução da cultura europeia, cada vez mais voltada à ciência. Presume-se que o autor esteja falando do naturalismo (“arte experimental”) e se filiando a tal movimento. Porém, ao incluir Flaubert, anterior a Zola, e Dickens, cuja obra remonta à primeira metade do século XIX e que não é um predecessor direto do naturalismo, Eça embola o meio de campo e nos faz pensar numa grande corrente literária que, além de transcender a literatura francesa, abarca pelo menos meio século de existência. O autor de O primo Basílio embaralha as duas versões citadas sobre o que seja o realismo histórico. Além disso, sua visão do naturalismo como um “momento geral” da evolução da arte europeia deve muito às ideias cientificistas da época (e não deixa de ser irônico que tal argumento tenha sido defendido originalmente pelo próprio Zola, em seus textos teóricos de difusão dos princípios naturalistas).
Como se não bastasse esse imbróglio para se tentar definir o realismo como corrente literária, realismo pode ser também uma tendência geral da literatura de se representar a realidade em suas circunstâncias concretas e materiais, assim como os aspectos sociais da vida comum:
Neste século, porém, no período científico do naturalismo, o Sr. Zola teve precursores ilustres: antes dele, estão os Goncourts; antes dos Goncourts, Flaubert, Taine e Sainte-Beuve — (porque o método do crítico penetrante que estuda um romancista, não difere do método do romancista que estuda um personagem) — e antes destes, havia ainda Stendhal, e ao lado dele, Balzac, e no século passado, Molière… Não me obriguem a remontar até Homero!… É verdadeiramente uma genealogia ilustre![4]
Para que eu também não seja obrigado a recuar até Homero, permitam-me circunscrever a argumentação ao conceito de “realismo formal”, desenvolvido por Ian Watt em A ascensão do romance. Analisando os romances ingleses do século XVIII, de autores como Defoe, Richardson e Fielding, Watt afirma que é próprio da forma romanesca a pretensão de se elaborar um “relato autêntico das verdadeiras experiências individuais”[5]. Dessa maneira, o realismo formal “não se refere a nenhuma doutrina ou propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros literários que podem ser considerados típicos dessa forma”. Ainda segundo Watt, “(…) o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações — detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias”[6].
Quando Machado critica o realismo, está se referindo ao quê? À tendência realista da primeira metade do século XIX, aos movimentos realista e naturalista que encontravam em Flaubert e Zola, respectivamente, seus principais expoentes ou ao realismo formal do romance moderno? Não é difícil responder. Machado critica o realismo que tem como características a estética do inventário e a atração pelos aspectos mais repugnantes da existência e cujo primeiro representante em língua portuguesa seria Eça de Queirós. Logo, está se referindo à ficção realista-naturalista da segunda metade do século XIX na França.
Podemos, então, afirmar com segurança que o alvo das invectivas do Machado crítico literário da década de 1870 é a prosa realista-naturalista. Entretanto, nós, quando nos referimos a um Machado realista, estamos nos referindo à mesma coisa? Não me parece o caso do realismo formal, pois, sendo este uma característica inerente à forma romanesca dos séculos XVIII e XIX, é ocioso classificar os romances machadianos de realistas, pois isso não os diferiria da prosa romântica que o antecedeu, nem seria um critério válido para dividir a obra do autor entre uma primeira fase romântica e outra realista. No máximo, poderíamos falar de diferentes graus de acuidade na representação da realidade, variando do alegórico ao documental.
Caso estejamos nos referindo à tendência da primeira metade do século XIX, que se caracteriza pelo tratamento sério da contemporaneidade e das pessoas comuns, o que Auerbach define como “realismo moderno” (que se distingue do tratamento cômico anteriormente concedido a tais temas), parece-me forçoso eleger José de Alencar, o dos romances urbanos, como o primeiro grande nome do realismo brasileiro. Enquanto Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba (1891) ocupam um lugar meio indefinido entre o realismo humorístico e o “moderno”, Senhora (1875) apresenta um caráter realista mais resoluto e acabado segundo aquela tendência da primeira metade do século XIX. Numa “escala realista”, pensada nos termos propostos por Auerbach, Memórias póstumas… se situaria numa posição intermediária entre Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, e Senhora. Os romances machadianos de 1880 e 1891, por conta de seu tom geral, talvez estejam mais próximos aos romances pré-românticos ingleses do século XVIII do que do realismo balzaquiano, por exemplo. Para confundir ainda mais, basta lembrar que num texto de 1954, “A comédia brasileira”, Alencar se filiava, como dramaturgo, ao teatro realista francês e lamentava o gosto romântico do público.
Ao se classificar Machado como realista, procurando, assim, diferenciá-lo da obra de seus antecessores, o que parece existir é uma tentativa de incluí-lo na corrente literária que leva de Flaubert a Eça de Queirós, passando por Zola — ainda que se costume atribuir ao autor brasileiro um “realismo puro”, isento de características naturalistas. Os motivos disso são presumíveis: a partir de Memórias póstumas…, fica evidente que não se está mais no âmbito do romantismo, então, por uma questão mais cronológica do que analítica, tenta-se encaixar a nova obra num modelo histórico baseado na dinâmica própria do campo literário francês, no qual o romantismo, na ficção, fora suplantado pelo movimento realista-naturalista. Correndo o risco de apresentar a lógica desse argumento de maneira simplista, acho que o raciocínio é o seguinte: dentro das coordenadas históricas em jogo, qualquer obra de ficção que se oponha ou se afaste do romantismo só pode ser considerada realista, no mesmo sentido em que se define Eça de Queirós como tal. Contudo, o escritor português manifesta diversas características estilísticas que o vinculam diretamente ao movimento francês da segunda metade do século XIX, já Machado não (ou nem tanto). A prática rotineira em sala de aula que induz os alunos a suporem uma continuidade entre Flaubert, Zola, Eça e Machado (excluindo-se, por vezes, Zola) é falsa. Se Machado fosse de fato “realista”, ele o seria por outros critérios e segundo uma concepção diversa de realismo.
A inadequação do rótulo de realista para a obra de Machado de Assis — ou seu escasso poder explicativo, quando se pensa em realismo como uma categoria mais genérica e não como um estilo de época — fez com que muitos críticos sentissem a necessidade de acrescentar qualificativos à designação. Gustavo Bernardo realizou um interessante levantamento a respeito:
Por todas essas razões é que suponho que: Alfredo Bosi entenda Machado de Assis como realista sim, mas considerando seu realismo “superior”, porque “de sondagem moral”; John Gledson entenda Machado de Assis como realista sim, mas considerando seu realismo “enganoso”, porque a deceptive realism; Patrick Pessoa entenda Machado de Assis como realista sim, mas considerando seu realismo “fenomenológico”, porque “não ingênuo”; Eugênio Gomes entenda Machado de Assis como realista sim, as considerando seu realismo “microscópico” e “psicológico”, porque voltado ao detalhe da condição humana; Massaud Moisés entenda Machado de Assis realista sim, mas considerando seu realismo “interior”, justamente para combater o realismo “exterior” do naturalismo; Sérgio Paulo Rouanet entenda Machado de Assis como realista sim, mas considerando seu realismo “autoral”, porque singular e também porque cria personagens-autores, representando a própria representação; Carlos Nelson Coutinho entenda Machado de Assis como realista sim, mas também considerando seu realismo “superior”, tão superior que apenas a obra da maturidade do escritor teria logrado “alcançar uma plena e profunda vitória do realismo”.[7]
Não considero nenhuma dessas categorias necessariamente falsas, mas é preciso levar em consideração que elas, em sua maioria, deslocam o termo “realismo” do campo conceitual no qual ele acabou se estabelecendo, que é o da dinâmica histórica dos movimentos literários ou dos estilos de época.
Classificar Machado de realista, entendendo-se com isso uma filiação ao movimento realista da segunda metade do século XIX, é analiticamente equivocado; por outro lado, se Machado é realista porque “representa a sociedade brasileira de sua época”, o termo é historicamente vago e impreciso, pois outros autores brasileiros, que nem por isso costumam receber a mesma alcunha, já o haviam feito antes dele. No máximo, dá para incluir Machado numa vertente realista do romance brasileiro que começa no romantismo, passa por sua obra e na de seus contemporâneos, atingindo os limiares do modernismo. Neste caso, o epíteto “realista” perde seu poder de situar o autor dentro de um período literário específico.
Nada disso quer dizer que Machado não tenha sofrido influência dos realistas da primeira metade do século XIX (Balzac é uma referência marcante) ou mesmo do realismo-naturalismo. O que acontece é que tal influência não foi decisiva a ponto de definir o caráter de sua obra. Tampouco parece-me lícito negar à ficção machadiana uma dimensão realista, se com isso entendemos a formalização literária dos aspectos sociais da realidade brasileira e não sua adesão a um programa estético definido. O próximo passo desta análise seria discutir qual é a posição de Machado de Assis na literatura brasileira e à qual tradição romanesca ele se vincula. Entretanto, isso fica para um futuro texto, pois tal discussão aumentaria demais as dimensões deste ensaio.
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NOTAS:
[1] AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 424.
[2] QUEIRÓS, Eça de. “Idealismo e realismo”. In: Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas.
[3] Idem, ibidem, p.
[4] Idem, ibidem, p. 55.
[5] WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 27.
[6] Idem, ibidem, p. 31.
[7] BERNARDO, Gustavo. O problema do realismo em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, pp. 109-10.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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