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Os brucutus ideomaníacos da intelectualidade brasileira

por Daniel Lopes (25/08/2017)

Flávio Gordon analisa como a perversão da linguagem e da inteligência empobreceu o Brasil e produziu tragédias como o lulopetismo.

“A corrupção da inteligência: Intelectuais e poder no Brasil”, de Flávio Gordon (Record, 2017, 364 páginas)

Tal como Flávio Gordon, que é apenas cinco anos mais velho do que eu, também tive minha cota de corrupção intelectual. Não fui à posse de Lula em Brasília no primeiro dia de 2003, como fez Gordon, mas a assisti emocionado pela tevê, após ter passado o ano anterior inteiro empolgado com a campanha petista. A exemplo de Gordon, eu via pessoas que não gostavam de Lula e pessoas de direita como seres defeituosos, que apenas talvez, quem sabe, um dia veriam a luz da razão. A corrupção intelectual de Gordon encontrou ambiente fértil na UFRJ dos anos 2000. A minha, mais humildemente, na UFPI do mesmo período, uma universidade completamente rendida ao petismo e ao parapetismo.

Então, antes de tudo, vejo A corrupção da inteligência como um valioso documento da parcela da nossa geração que, depois de uma paixão vergonhosa, acabaria largando não só o petismo, como o esquerdismo. Uns mais, outros menos, deslizamos para a direita. Até por isso, acredito que o tipo de leitor que mais pode se beneficiar do livro de Gordon é aquele que ainda possui algum vestígio de simpatia pelo petismo, ou aquele que, mesmo já tendo superado o fantasma de Lula, ainda associa a esquerda ao “lado certo da história”. Para quem se encaixa nessa descrição, A corrupção da inteligência pode ser a leitura que faltava para abandonar a covardia e até mesmo sentir orgulho quando nulidades o xingarem de direitista, conservador ou neoliberal.

É bem verdade que, para o meu gosto, o livro tem Gramsci demais, KGB demais. Entendo que Gordon quis deixar bem contextualizada a forma como correntes intelectuais e políticas estrangeiras colaboraram para a corrupção dos intelectuais brasileiros, mas isso poderia ter sido alcançado de forma mais sucinta. Há muitas páginas que não são essenciais para a argumentação do autor, e pior, podem ser distrações.

De qualquer forma, a argumentação está sólida. E ela parte da obviedade de que Lula não é uma pessoa iluminada e excepcional. Pelo contrário, ele sempre foi o patife que, em pleno mês eleitoral de outubro de 2002, dizia a um repórter do Le Monde que a eleição era uma “farsa” pela qual se deveria passar, mas o importante mesmo era o poder. Nas palavras de Gordon, Lula possui “uma autopiedade histriônica e sentimentaloide, nada compatível com a têmpera de um grande estadista”. Carente de atrativos ele mesmo, Lula é no entanto representativo de uma sociedade que, esta sim, merece um exame mais detido. Que tipo de perversão estrutural permitiu que um sujeito como Luiz Inácio fosse alçado à condição de deus e lhe perdoou diversos erros e crimes acumulados nos anos de poder, no final das contas ainda lhe permitindo eleger como sucessora uma figura que carece de existência própria?

Isso só pôde acontecer, diz Gordon, porque há décadas a sociedade brasileira está moralmente entorpecida. E a principal responsável por essa agonia é exatamente nossa classe intelectual. Gramsci interessa a Gordon porque, segundo este, a proposta do marxista italiano de politização total da vida intelectual e cultural virou um programa de nossos intelectuais, saídos da ditadura com aura de campeões da democracia e intérpretes dos “interesses do povo”. Desde o surgimento do partido, a intelectualidade é unha e carne com o Partido dos Trabalhadores e seu ícone, Luiz Inácio. Esse estado de coisas é sentido não apenas nas manifestações de Marilenas e Emires, mas também, eternamente, nas colunas dos formadorezinhos de opiniõezinhas que veem o PT como uma espécie de Partido Trabalhista britânico, para não falar nas manifestações políticas de cantoras de funk, atores de telenovela e da Marcia Tiburi – sim, a definição de intelectual no livro de Gordon é ampla o bastante para incluir artistas deficientes com acesso a holofotes.

Aqueles da nossa geração que nos afastamos do esquerdismo não o fizemos sempre pelas mesmas razões, ou nas mesmas proporções. Alguns já na época do mensalão sentiram o ambiente infestado do progressismo e pularam do barco. Outros foram para a direita liberal diante das evidências de que o nacional-desenvolvimentismo renderia algumas décadas perdidas para o país. Outros, ainda, antes mesmo de se decepcionarem com a esquerda política, já sentiram repulsa insuportável pelo esquerdismo de costumes. Nos melhores casos, a mudança para a direita foi acompanhada de um roteiro de leitura próprio, com obras liberais e conservadoras de difícil acesso em português ou em formato físico. A “nova direita” brasileira não é fruto da CIA, mas do PDF e da Amazon.

Lembro que, no meu caso, ocorreu mais ou menos ao mesmo tempo: 1)leituras que não nos indicaram na escola, e muito menos na universidade; 2)nojo pela ignorância arrogante da sucessora de Lula e de seus defensores lacradores; 3)e não menos pelo politicamente correto que perdoava autoritarismo na Venezuela e menores de idade com ficha corrida de atos brutais, mas não cantadas de pedreiros. Simplesmente chega o dia em que você percebe que não faz parte da esquerda e a felicidade é tanta que, mesmo se é um ateu como este que vos escreve, agradece a Deus pela descoberta.

O que quero dizer é que sou bastante simpático à tese de Flávio Gordon de que a perversão da linguagem está na base da perversão moral progressista. O politicamente correto, a “desconstrução”, a “problematização”, a relativização ajudaram a criar a mitologia política que foi consumida pelas massas da Nova República. Houve um tempo em que “rouba, mas faz” era um slogan de denúncia irônica da esquerda para com os Malufs do Brasil. Hoje, ainda que não expresso com todas as letras, o slogan é sua única chance de lavar os crimes cometidos pelo grupo político que dominou o país pela maior parte do século 21.

O politicamente correto, diz Gordon, não é apenas uma patetice estética, mas antes um problema ético. O autor contrapõe a imaginação idílica à imaginação moral. Esta significa a capacidade humana de compreender os dilemas morais enfrentados por outras pessoas mesmo não estando em sua pele – “apreendendo por alegoria, como Kirk glosou platonicamente, a correta ordem da alma necessária à justa ordem da sociedade”. A intelectualidade brasileira, assevera Gordon, carece enormemente deste atributo, que não é produzido por mera formação universitária, sendo mais facilmente desenvolvido no contato com a literatura clássica mundial.

No que nossos intelectuais são Ph.D. é em imaginação idílica, que vê a subjetividade como fonte da moral e joga fora a moralidade tradicional. Assim, diante de um escândalo de corrupção, não são bem os fatos que importam, mas qual versão sairá vencedora. Espero não ter lido Gordon mal ao concluir que o intelectual brasileiro dominante é essencialmente um brucutu ideomaníaco, um defensor do establishment com eterna pose de revolucionário. Mas brucutu com uma “causa”, vejam bem. De modo que sua imoralidade é inseparável de seu vitimismo.

Flávio Gordon tem a vantagem de não ser um sectário. Seu alvo não é a esquerda em bloco. Entre os autores que merecem menção simpática em seu livro, estão Doris Lessing, George Orwell, Fernando Gabeira, Tony Judt e outros não direitistas. Gordon vê no cenário do debate intelectual brasileiro da primeira metade do século passado quase um Éden, em comparação com a doxa dos anos 1960 em diante, chegando ao virtual pensamento único da Nova República, que só agora começa a ser rompido.

Essa atitude de Gordon é alvissareira. De fato, a direita brasileira está mais avançada na tarefa de enterrar a ditadura militar do que a esquerda na tarefa de enterrar o lulopetismo. Se algum dia voltarmos a ter um debate intelectual de verdade, com ideias plurais, e uma classe política menos vagabunda, terá sido em grande parte pelos esforços de gente como Flávio Gordon e Fernando Gabeira.

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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