Agostinho compreendeu profundamente a tensão entre a alma individual e as realizações coletivas.
“Mas minha mãe sabia quantos e quais turbilhões de tentações me ameaçavam após a puerícia, e queria entregar a eles a argila com que seria formado, em vez da efígie já pronta.”
Confissões, p. 47
Quando nos deparamos com uma obra da estatura das Confissões de Agostinho, talvez a primeira pergunta que nos vem à mente se refira não a uma virtual impossibilidade de se acrescentar algo ao que já foi dito, comentado e analisado durante séculos de estudo filosófico, literário e teológico; antes, a indagação imediata e quase espontânea de todo leitor é: “Afinal, qual tema Santo Agostinho não abordou? Quais territórios da alma, das circunstâncias e interesses humanos não foram tocados, ainda que delicadamente, pela sua penetrante mas sutil curiosidade?”
Em Confissões, concisamente falando, vemos tanto o desnudamento de uma alma que narra seu processo de conversão ao cristianismo quanto o cingir dessa alma com todos as armas e instrumentos propícios à investigação da realidade. A despeito das eventuais discussões acadêmicas[1], a obra de Agostinho ainda é considerada como a primeira autobiografia ocidental, não somente porque o autor inicia sua narrativa desde a tenra infância, incluindo seus pecados e erros cometidos nesse período, mas também porque, diferentemente das narrativas dos príncipes e potestades da Antiguidade, o santo criteriosamente selecionou e declamou abertamente suas falhas, culpas, vergonhas e misérias.
Nesse grandioso De profundis que entrelaça a exegese alegórica mais fina, a elucubração filosófica mais distinta e a espiritualidade mais devota, Agostinho, já nos preâmbulos, confessa que não é inutilmente que expõe seu íntimo a um Ser onisciente; pelo contrário, falando de si próprio para alguém que o conhece mais profundamente do que ele mesmo, o bispo de Hipona, por meio da iluminação advinda de um coração sincero para com Deus, descobre mais do que revela acerca de si mesmo. Em outras palavras, dirigindo-se aos céus, Agostinho percebe que o Deus elevado acima de tudo é também o alicerce de sua própria identidade, o fundamento pétreo de sua existência. Paradoxalmente, reflete o santo, aquele que nem os céus nem a terra podem conter está contido dentro do espaço de sua alma, moldando e sustentando a substância mesma de sua personalidade.
Se Harold Bloom afirma que Shakespeare, trazendo à tona a tempestade da alma humana em seus dramas, é responsável pela invenção do humano, então teólogos e filósofos não exageram, portanto, quando atribuem a Agostinho a invenção, ou ao menos a mais portentosa exposição da autoconsciência humana. De fato, ascendendo, por meio de seus louvores, aos mais altos céus, o Doutor da Graça escavou e penetrou no mais profundo da alma humana, à anima animi – a alma da alma, o coração do coração, em suma, à raiz mesma da personalidade humana. Como já dissera o filósofo e teólogo holandês Herman Bavinck:
[O] eu é em si mesmo imanente aos fenômenos psíquicos, desenvolvendo-se neles, por meio e com eles; é capaz tanto de desenvolver sua própria salvação com temor e tremor quanto de arquitetar sua própria destruição e ruína. Ele é, mas ao mesmo tempo se torna e se desenvolve; é uma plenitude de vida, uma totalidade de dons e poderes, os quais não representam seus papéis atrás da cortina, antes, se revelam e se deparam com o desenvolvimento nas multiformes atividades da vida psíquica, na totalidade do homem com todas suas obras. Agostinho foi o primeiro a entender a autoconsciência. Sócrates não a havia compreendido, pois, embora ele tenha trazido de volta para o homem a filosofia, que estava voltada, então, para a natureza, ele se encontrava exclusivamente interessado em alcançar concepções verdadeiras acerca do conhecimento e conduta. Posteriormente, é verdade, Descartes tomou o pensamento como ponto de partida – contudo, para tal filósofo, o pensamento era a essência da alma. Agostinho foi mais fundo ainda, descobrindo mais coisas – ele descobriu a realidade dentro de si mesmo.
Ora, com relação à forma de Confissões, a primeira dificuldade com que a crítica se deparou, desde os tempos áureos da Patrística até os tempos atuais de quase obsessão com a chamada autoficção, foi precisamente a definição do gênero em que a obra se enquadra. De memórias íntimas somos de súbito transportados para uma reflexão sobre o tempo – e não é coincidência que o homem que forjou a primeira filosofia sistemática da história seja também o primeiro a construir uma concepção estrutural do que é o tempo. De reflexões sobre a pedagogia e o ensino das crianças somos içados à derrisão da astrologia. Isto, todavia, não significa que não haja uma unidade subjacente ao texto ou uma disposição de espírito permanente que desencadeia as reflexões.
Ora, no excelente prefácio do tradutor Lorenzo Mammì, deparamo-nos com uma breve mas sucinta recapitulação das interpretações que a obra suscitou nos meios acadêmicos. O próprio título do livro é possivelmente uma referência à sua origem etimológica de “pronunciamento público (cum + fateri, literalmente ‘falar com’, ‘falar junto’). Mas já no latim clássico a confessio passou a significar de preferência um pronunciamento perante uma autoridade, geralmente um tribunal, adquirindo assim o sentido ainda hoje corrente de admissão de uma falta ou de um crime”. Sem mencionar, é claro, o sentido do termo, na igreja primitiva, como “a confissão dos pecados diante da assembleia, prática da Igreja primitiva, a declaração de fé – que, aliás, em época de perseguições, podia equivaler a uma confissão em sentido jurídico”.
Porém, a percepção de Joseph Ratzinger, num seu artigo publicado em 1957, trouxe à luz o modo como Agostinho, além de saturar suas invocações, reflexões e discurso com versos bíblicos, também se instaurou voluntariamente na linha da tradição escriturística, seja pela pluralidade de gêneros utilizados para a expressão dramática, seja pela oscilação e mapeamento colossal dos movimentos da alma.
Nesse seu ensaio, Ratzinger “identificou um sentido mais preciso de confessio. Tradução de um termo mais abrangente da Bíblia grega (exomologesis, que significa tanto confissão quanto agradecimento), remete a uma forma literária judaica, indicando o discurso composto tanto para reconhecer os próprios pecados quanto para louvar a Deus por sua clemência. O Livro dos Salmos oferece vasto repertório de composições desse tipo”.
Portanto, sendo os Salmos, na definição de João Calvino, uma anatomia da alma humana, que expressa, numa grande composição, os mais diversos timbres e tons que reverberam em nossas profundidades, as Confissões, por sua vez, são uma espécie de dissecação, ou, antes, vivissecção de um espírito sub species aeternitatis.
O tribunal perante o qual a consciência de Agostinho se apresenta é o próprio Deus, a quem suplica o conhecimento de suas próprias faltas, a coerência de sua própria identidade que havia se esfacelado em sua rebelião espiritual:
Faço isso por amor do amor de ti, retraçando meus caminhos mais vis na amargura do meu arrependimento, para que tu te tornes doce para mim, doçura que não falha, doçura fértil e segura, que me recolhe da dispersão na qual me cindi inutilmente quando, vertendo de tua unidade, me dissipei na multiplicidade.
E assim ele se depara com sua própria unidade e interioridade no contato e entrega àquele que, embora Totalmente Outro (das ganz Andere, na terminologia de Karl Barth), é também a substância amorosa que subjaz ao próprio ser do confessor: “Tu, porém, eras mais interior do que meu íntimo, e mais alto do que meu cume”. No entanto, o bispo de Hipona sabe que suas confissões, embora íntimas e individuais, ecoam também na unidade da autoconsciência humana, na universalidade do desiderium aeternitatis (o desejo pela eternidade) comum a todos os homens:
A quem conto isso? Não a ti, meu Deus, mas perante ti conto ao meu gênero, ao gênero humano, por pequena que possa ser a porção dele que se deparar com meus escritos. E para que isso? Evidentemente, para que eu e qualquer um que leia essas coisas reflitamos sobre quanto é necessário clamar a ti das profundezas.
E o tratamento antitético de Agostinho, o jogo entre as aparentes oposições que se resolvem em Deus, perpassa e constitui a dinâmica de todo seu raciocínio. Por exemplo, sendo Deus a unidade absoluta, a multiplicidade e singularidade dos homens encontram um denominador comum precisamente na sua criação à imagem e semelhança da Divindade. Dito de outro modo, embora a alma e personalidade humanas sejam irredutíveis e únicas, todas elas são consubstanciais, feitas de um mesmo sangue, visto que criadas e sustentadas por um mesmo Criador.
Disto se deduz a possibilidade de uma história da raça humana, governada pelo princípio da Providência Divina – o tema central de sua obra A Cidade de Deus. Se Eusébio de Cesareia absorveu os eventos anteriores ao Cristo à sua história sacra, entendendo todas as circunstâncias e acontecimentos da Antiguidade como uma preparatio evangélica que culmina no advento do Filho de Deus, Agostinho, por seu turno, lançou não somente os fundamentos da filosofia e teologia da história, mas também compreendeu profundamente a tensão entre a alma individual e as realizações coletivas: “[…] a vida inteira de um homem, cujas partes são as ações do homem; e também para toda a história dos filhos dos homens, cujas partes são todas as vidas do homens”.
Por fim, algumas considerações sobre a edição. Sem ressalvas, a tradução é impecável, em nada inferior àquelas já consagradas e também excelentes, como é o caso da tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, publicada pela Editora Paulus, na coleção Patrística. A musicalidade e complexidade da frase agostiniana são mantidas a todo momento, e as partes mais obscuras são esclarecidas por providenciais notas de rodapé.
Além do acabamento editorial sempre exímio da editora, um dos pontos mais fortes da presente edição é, conforme já aludido, o prefácio do tradutor – uma introdução profunda, erudita e abrangente da obra, ainda mais pelo fato de situá-la dentro do contexto do pensamento e demais produções de Agostinho.
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NOTA:
[1] Alguns acadêmicos argumentam que, antes de Agostinho, imperadores e generais já assinavam relatos de guerra com descrições pormenorizadas de seus próprios feitos, ou relatos de sua própria formação moral, especificando os ensinamentos e experiências que foram cruciais para a ascensão até suas respectivas posições de autoridade ou destaque social.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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