As nossas íntimas misérias

por Wagner Schadeck (24/08/2017)

"Os Irmãos Tanner", de Walser, é uma narrativa psicológica. Por meio da visão das personagens, o mundo é distorcido.

“Os irmãos Tanner”, de Robert Walser (Companhia das Letras, 2017, 288 páginas)

Com a chamada “revolução linguística”, termo do marxista Eagleton, a crítica de vanguarda chegou a decretar a morte do autor (com Barthes) e a usurpação do texto literário. E à medida que a crítica historiográfica esvaecia, a crítica especializada, herdeira da Escola de Frankfurt, engordava nas cátedras universitárias. Racionalista, para esta, o “pensamento crítico” consiste na confusão entre os domínios do debate público e literário. O domínio literário é o prélio espiritual entre o autor e sua circunstância. Sendo o debate público a guerra entre aliados e adversários, por outro lado, nesta disputa, não é a verdade, mas o convencimento que vence. E ao contrário da antiga crítica, que se voltava para as circunstâncias biografia e psicologia do autor, a crítica especializada é a invasão de territórios.

No Brasil, “revolução linguística”, “pensamento crítico” e a usurpação literária são sintomas dessa confusão. Um exemplo disso foi Robert Walser (1878-1956) ser conhecido primeiramente pela leitura de Walter Benjamin, não por sua literatura. E como o autor de Magia e Técnica, Arte e Política o considerava um precursor de Kafka, que realmente o admirava, só então a literatura walseriana começou a ser traduzida e publicada. Além de Benjamin, Elias Canetti e J. M. Coetzee deram-lhe a credibilidade que em vida não teve.

De uma saúde psíquica conturbada, vivendo uma vida medíocre, o escritor suíço morreu louco. Mas legou sua angústia biográfica para seus personagens. Para Benjamin:

Eles vêm da loucura, e de nenhum outro lugar. São personagens que têm a loucura atrás de si, e por isso sobrevivem numa superficialidade tão despedaçadora, tão desumana, tão imperturbável.

Depois de O ajudante e Jakob von Gunten, este considerado o romance mais importante do autor, é lançado agora no Brasil Os irmãos Tanner. Nele podemos notar o interesse que os expressionistas alemães tiveram na obra – ela fora editada por Christian Morgenstern em 1907.

Trata-se de uma narrativa psicológica. Por meio da visão das personagens, o mundo é distorcido – é o noturno alucinado de Narciso. Centrada no esquizoide Simon, conhecemos seus irmãos: o neurótico Klaus, o único estabelecido, o pintor e paranoico Kaspar, a bipolar Hedwig e vagamente Emil, interno em Hospício, participando ainda da trama Sebastian, o poeta antissocial, a dissoluta Klara Agappaia, mulher casada com quem os irmãos Simon e Kaspar relacionam-se.

Do que saía da boca de Klara não se entendia muita coisa, a não ser algumas frases curtas, incoerentes, em parte cantadas, em parte faladas: […] “Uma violeta brota da minha boca. Está cantando. Você ouve? Pode ouvi-la? As pessoas hão de dizer que morri afogada. […] A Klara! Onde está agora? Procure, procure por ela. Mas você terá de entrar na água. (p. 82)

Além desse devaneio febril de Klara, aos demais personagens, faltam-lhes sentido de vida. Até mesmo para o prático Klaus a dificuldade de relacionar-se com os irmãos é pungente. A única comunicação não-narcísica que há entre todos é por meio da arte. Sobre isso Simon confidencia ao irmão Kaspar:

“E quando contemplo uma de suas paisagens, pintadas com pinceladas tão amplas e calorosas, é sempre você que vejo, e compartilho dessa sua espécie de dor, que me diz que a arte nunca tem fim.” (p. 97)

No entanto, ao contrário do que dizia Schopenhauer, nem a arte pode livrar Simon e seus irmãos das doenças da alma. A mania deambulatória do protagonista e sua inconstância revelam-se na anulação de perspectivas. Para Simon, a vida é o tempo presente que devora a si mesmo. De fato, o esteio narrativo de Walser são as estações do ano. Devido à falta de sentido, as personagens parecem máscaras sem rosto. É o niilismo da modernidade, na apostasia por sua auto-redenção:

Desperdicei minha vida até agora porque quis, uma vez que ela sempre me pareceu desprovida de valor. A interesses dos outros, eu me dedicaria por completo, isto está claro, porque quem não tem objetivos próprios vive, justamente, para os propósitos, interesses e intenções dos outros. (p. 161)

De emprego em emprego, Simon torna-se enfermeiro, cujo fetiche era ser espancado por sua senhora, escrevente e estroina, a flertar com a homossexualidade por vontade alheia, além de viver na indigência e morar com o irmão, Hedwig, a qual o repreende:

“…dê uma olhada em suas calças, Simon. As barras estão esfarrapadas! Sim, eu sei, é apenas uma calça, mas calças precisam estar em ordem tanto quanto a alma, porque vestir calças puídas e esfarrapas dá mostras de desleixo, e o desleixo vem da alma. Portanto, você deve ter também uma alma esfarrapada.” (p. 53)

Há, de fato, algo na narrativa que toca o nonsense, e essa fora a abertura para o “fantástico-alegórico”, como no sonho de Simon:

Foi quando chegaram os terríveis moleques de rua parisienses e começaram a fazer cócegas nas nuvens com palitos de fósforo acessos… (p. 189)

Ou ainda neste laivo poético:

Mas a figura desapareceu na esquina, sem deixar na viela mais do que aquele perfume de melancolia que a beleza sempre deixa em lugares sombrios. (p. 247)

O mais chocante, no entanto, é o testemunho de seu triste tempo, que é também o nosso.

Nos últimos tempos, o decoro humano profundo transformou-se em nossa religião. Quando as pessoas preservam o decoro diante das outras, preservam-no também perante Deus. (p. 228)

Esse relato romanesco é a antípoda do romance de edificação goetheano. Enquanto o personagem do romance de formação centra-se no sentido da vida e na busca pelo Supremo Bem, o personagem niilista tem de escolher entre o covil de ideologias, que já infestaram quase totalmente a cultura, e a idolatria de regras morais ou legais, como salvacionistas de nossas mais íntimas misérias.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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