É como se St. Aubyn escancarasse como uma criança é consciente e sensível de tudo o que acontece ao seu redor.
“Oh, I got plenty o’ nuttin’
And nuttin’s plenty for me
I got no car, got no mule
I got no misery”
George Gershwin
Na apresentação da edição brasileira de A fogueira das vaidades, Paulo Francis diz que Tom Wolfe encontrou “um autêntico ovo de Colombo”. Ao contrário de qualquer outro escritor americano contemporâneo, “escreveu um romance sobre como vive a gente de Nova York, os que estão no alto do pau de sebo, na Park Avenue, aqueles que se apertam em apartamento caríssimos em Manhattan, e os que se massacram em favelas como o Bronx”. E acrescenta: há ali “as minúcias de como vivem outras pessoas, assuntos de interesse de todos nós, pois sempre nos medimos com o próximo. Aquilo que o rico veste, come e bebe, ou o pobre, nos fascina, porque todos temos uma espécie de taxímetro do quanto valemos e dos outros. É alto mexerico, se quiserem, mas quem resiste?”
Edward St. Aubyn também encontrou seu próprio ovo de Colombo: resgatou um mundo tão central na literatura inglesa do século XIX e início do século XX, mas pouco lembrado desde então. Como ninguém há cinco ou seis décadas, retratou a alta classe britânica com a crueldade satírica de Evelyn Waugh, a capacidade de observação de Anthony Powell e a sagacidade de Oscar Wilde. Nas cinco novelas que compõem os Romances de Patrick Melrose, elaborou um bildungsroman autobiográfico tomado por gente cínica e odiosa, novos e velhos ricos, alpinistas sociais, figuras excêntricas e mobílias centenárias.
O fio condutor é a vida do narrador, alter ego de Aubyn. Membro de uma família aristocrata, ele sofrera abusos sexuais do próprio pai quando criança. A experiência traumática resulta no vício das drogas durante a juventude – que, mais tarde, transforma-se em uma visão resignada sobre a vida e os caminhos que sua família trilhou. Embora o resumo da história seja inegavelmente brutal, a leitura é leve, com um humor afiado e perspicaz.
Com algum atraso, a obra chegou ao Brasil em dois volumes: o primeiro, lançado em 2016, e o segundo, há poucos meses. Faz sentido dividir a história em duas partes – quando Aubyn começou a escrever o primeiro romance do segundo tomo, as personagens sequer tinham os mesmos nomes dos livros anteriores. As três primeiras novelas (“Não importa”, “Más notícias” e “Alguma esperança”) falam, essencialmente, da relação entre pai e filho. A trilogia poderia acabar por aí, mas o escritor decidiu continuar com “O leite da mãe” e “Enfim” e destrinchar a parte materna da equação.
A mudança da paternidade
Os holofotes vão para Eleanor Melrose – que se encaixa no arquétipo da grã-fina com culpa social. No leito de morte, ela vive cercada e ludibriada por charlatães messiânicos de uma fundação que promete a transpessoalidade. O que resta da fortuna e das posses da família se esvai em doações e iniciativas duvidosas, para desespero de Patrick, com quarenta e poucos anos e pai de duas crianças. Distante e sazonal, o convívio entre mãe e filho não muda com a chegada dos netos e o fim da vida.
Se tivéssemos tido duzentos e trinta e nove filhos bengaleses, ela teria sido mais calorosa conosco, mas esse Gargantua ocidental, que vai ocupar quilômetros de aterro sanitário com suas fraldas descartáveis e que logo vai exigir um computador poderoso o bastante para lançar um voo até Marte enquanto brinca de jogo da velha com um amigo virtual em Dubrovnik, não tem grandes chances de receber a aprovação dela.
Não há página sem um comentário sarcástico dessa natureza – uma estocada leve, uma graça qualquer, uma observação espirituosa. O melhor dos Romances de Patrick Melrose está aí, pois Edward St. Aubyn consegue fazê-lo sem cansar o leitor ou esgotar o assunto, além de tornar engraçado um tema aparentemente mórbido (“a maioria das pessoas espera os pais morrerem com um misto de apreensiva tristeza e planos para uma piscina nova”).
Isso está presente nas cinco novelas da série. Mas há uma clara divisão: o Volume 1 é muito mais galhofeiro, graças ao retrato dos diversos e extravagantes personagens do mundo de Patrick; o segundo, com um protagonista em crise de meia-idade, preocupa-se com relações, com a família, com situações e responsabilidades. Segue sendo Evelyn Waugh, mas agora com ares de Jane Austen ou Henry James.
O ponto que sustenta essa mudança de olhares é a paternidade. A primeira parte de “O leite da mãe” é narrada pelo primogênito de Patrick, Robert. Com cinco anos, ele possui uma eloquência, um olhar aguçado e um poder de análise pouco plausíveis para um menino tão novo.
Robert não sabia o que fazer. Seu pai odiava a própria mãe. Ele não podia juntar-se a ele e não podia condená-lo. Sua avó tinha feito certo mal à família dela, mas ela estava sofrendo demais. Robert podia apenas ater-se a como as coisas eram antes de terem sido obscurecidas pela decepção de seu pai. Aqueles dias límpidos em que ele só precisava amar sua avó, ele nem sabia ao certo se eles chegaram a existir, mas tinha certeza de que agora não existiam.
Mas essa característica não é gratuita: é como se St. Aubyn escancarasse como uma criança é consciente e sensível de tudo o que acontece ao seu redor. Assim como a idade de Robert tampouco é um acaso – pois é a mesma que seu pai tinha quando começou a sofrer os abusos.
Por tudo isso, a verdadeira saga de Patrick está em seu esforço de não repetir a desgraça familiar para a geração seguinte. Ser o contrário do que foi Eleanor – “a filha de uma família desnorteada e mãe de outra”. Seu medo era fracassar nessa missão e não conseguir ser o pai que desejava ser, “um homem que transcendera sua desordem ancestral e oferecia aos filhos um amor não assombrado”.
Contradições e verdades
Quando a velha Eleanor Melrose finalmente morre, o alívio momentâneo que o protagonista sente é logo sobreposto por outros fantasmas:
Até onde Patrick sabia, o passado era um cadáver à espera de ser cremado, e, embora seu desejo estivesse prestes a ser realizado da forma mais literal possível, numa fornalha a poucos metros de onde ele estava, outro tipo de fogo era necessário para incinerar as atitudes que assombravam (…); o impacto psicológico da riqueza herdada, o desejo feroz de se livrar dela e o desejo feroz de se agarrar a ela; o efeito moralizante de já ter o que todo mundo estava sacrificando sua preciosa vida para adquirir; a superioridade e a vergonha mais ou menos secretas de ser rico gerando seus disfarces característicos; a solução filantrópica, a solução alcoólica, a máscara da excentricidade, a busca pela salvação de perfeito bom gosto; os fracassados, os ociosos e os frívolos, e seus oponentes, os porta-bandeiras, todos vivendo num mundo em que o brilho denso de alternativas dificultava a entrada do amor e do trabalho.
Esse panorama da vida lá em cima, no topo do pau de sebo, não possui a exuberância, a ação e a riqueza de detalhes do primeiro romance de Tom Wolfe. Mas é muito superior em outro aspecto: a capacidade de empatia do autor e de sua criatura. Os Romances de Patrick Melrose falam sobre o que os ricos vestem, comem e bebem, mas também sobre o que pensam dos outros e de si mesmos, o que aparentam e tentam ser, o que há de contradição, de dissimulação e de verdade.
E aí, deixados de lado a residência de verão em Saint Nazaire, as consultas médicas em Zurique e o croque-monsieur em velórios bem frequentados, tudo se torna mais pedestre. De volta à planície, o leitor é recompensado pelo olhar generoso de um dos escritores mais habilidosos desta geração – alguém cujo privilégio não foi o bastante para salvá-lo, mas que encontrou na escrita a sua própria redenção.
Tomás Adam
Jornalista e empresário.