Para os dois casos, de renovação do ciclo político e contrarrevolução, as trilhas já estão abertas.
Toda revolução tem seu “Bonaparte”, aquele que encerra o processo, apazigua os ânimos, supera desencontros e promove reencontros. Trata-se da figura do conciliador, do pacificador; mas nem por isso do sujeito ameno ou apático. Basta lembrar que no caso de Napoleão Bonaparte engana-se quem o enxerga como aquele que desbarata a Revolução francesa, na verdade é ele quem a estabiliza através de uma série de ações cujos reflexos foram sentidos em todo o mundo: a tônica de guerras e ocupações por toda a Europa até a Rússia; a consolidação normativa – vide o Code Napoléon de 1804; a expressão moderna da França como moda para o mundo; e, especialmente, a superação de instituições que atravancavam a Revolução de 1789 através do esquema da substituição. O clero e a nobreza eram os principais opositores, e a estratégia napoleônica foi a de praticamente substituir para superar: a Igreja oficial por um clero atrelado a Paris (e não a Roma); a nobreza francesa pela titulação de quaisquer borra-botas (e não dentro dos conformes tradicionais do Antigo Regime). A lição de Napoleão foi a de que só é vencido o que é substituível[i].
Não analiso aqui o caráter positivo ou negativo desse processo. Se fosse esse o intuito deveria retratar todo o sentido perverso da Revolução[ii]. Outrossim, a tarefa é analisar a figura napoleônica para um processo revolucionário (ou contrarrevolucionário), com fins diferentes daquele de 1789 ou na sua sequência socialista de 1917. Pois é legítimo pensar em revolução, no sentido antigo, de mudança de ciclo político; ou, enquanto contrarrevolução. Em ambos os casos o horizonte está mais para restaurações, diferente do renitente processo de troca do presente em nome de um projeto futuro[iii].
No atual contexto brasileiro, a robustez de demandas por Deus, religião cristã, ordem, família, pátria, contra a impunidade, contra as ideologias de gênero, de forte crítica aos partidos políticos etc., denota que estamos exatamente sobre um momento de quebra de um ciclo político, e que acaba abrindo margem a um processo contrarrevolucionário também. Os ciclos políticos ocorrem de tempos em tempos, são quase a virada de uma geração. Na história política brasileira poderíamos citar algumas datas que trouxeram reconfigurações ao panorama político: 1842, 1889, 1930, 1964, 1988… Já a contrarrevolução é algo complexo, cujas ações são de difícil assimilação e continuidade, justamente por se tratar de uma disposição contra algo que se apresenta como permanente, a Revolução.
O fato é que para os dois casos, de renovação do ciclo político e contrarrevolução, as trilhas já estão abertas. A partir das jornadas de 2013 e 2015 surge uma nova compostura política no país, em que o modus operandi da política partidária nacional enfrenta com perplexidade e inadequação. Partidos mudam de nome, tentam se modernizar, procuram se tornar “partidos-movimento” artificiais, e até novas agremiações acabam surgindo. Mas ao final reitera-se o encastelamento, cuja maior prova foi a dotação orçamentária bilionária aprovada para o fundo partidário. Paralelamente uma série de acontecimentos políticos seguem se sucedendo e escapam do entendimento habitual dos agentes, como foi no caso da paralisação dos caminhoneiros em maio de 2018 – quase uma sequência abortada do que foram os domingos de 2015 com as maiores mobilizações sociais do país.
O arremate desse circuito de transformações pode se dar com a eleição de um candidato marcadamente à direita, conservador, enomorado com liberais na parte econômica, militar e anti-establishment: o ex-capitão do Exército e Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro (PSL). Candidato favorito às eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro é oriundo do baixo-clero da Câmara Federal, sendo mais fruto da fortuna do momento do que ocasião de sua própria projeção. Não que esteja deixando de seguir um script coerente, mas o próprio candidato confessa que está no pleito por algo “de Deus”. Pudera, sempre fora político de uma pauta única e clara, a defesa dos militares. Disto para uma campanha presidencial, de um país continental como o Brasil, é um salto que contou certamente com as questões do momento: o esgotamento de uma agenda política de esquerda; o desgaste moral da política tradicional, especialmente tomando os efeitos da Operação Lava-Jato; a crise econômica que se agravou a partir de 2014; e, a maré-montante de uma Nova Direita que deu a Bolsonaro um salto de qualidade e um horizonte que pudesse ir além dos homens de farda.
O impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016 foi um duro golpe ao maior partido socialista da América latina, e que seria também fustigado nas eleições municipais do mesmo ano, quando perdeu mais da metade das prefeituras. Inclusive a da maior cidade do país, onde o então prefeito Fernando Haddad (PT) não só deixou de se reeleger, como nem sequer foi ao segundo turno – sendo derrotado para um neófito em campanhas, o empresário João Dória (PSDB), que trazia consigo um tom de renovação, com aperto fiscal e práticas liberais. Esses eventos expressam como desde 2015 há um esgotamento da esquerda no poder. Mas não só dela, de todo um establishment político que está colapsando frente a ações que contam com pelo menos duas frentes não propriamente integradas. Primeiro, no flanco judiciário e institucional – a chamada “Revolução Lavajateira”[iv]. Segundo, no plano cultural, social e intelectual – uma Nova Direita brasileira, marcada por um amálgama de liberais e conservadores, que catapultou movimentos sociais desde 2015, pressionou o Congresso para aprovar o impedimento de Dilma Rousseff e já emplacou uma série de políticos a cargos no Executivo e no Legislativo, assim como turbinou a ascensão de Jair Bolsonaro.
Pelo menos desde 2017 Bolsonaro lidera as pesquisas para o Planalto, pau a pau com o rival petista e ex-presidente, Luís Inácio Lula da Silva – que está preso em Curitiba, e provavelmente não concorrerá ao pleito de outubro. De vulnerável franco-atirador, Bolsonaro realmente vem assumindo uma postura presidenciável, como mostrou no primeiro grande desafio de campanha – o primeiro debate entre os concorrentes, na TV Band na noite de 09 de agosto. Também havia se saído bem nas entrevistas nos programas Roda Viva (TV Cultura) e na sabatina com os jornalistas da Globo News (Globosat). Ao contrário do que se podia prever, que o candidato do PSL seria desidratado a cada um desses eventos, viu-se que a tese do antifrágil era reiteradamente posta a prova[v] e Bolsonaro se tornava mais sólido a cada episódio de confronto. Em parte isso se deve à própria inépcia dos confrontadores, em lidar com o inesperado – pois é assim que Bolsonaro pode ser tratado. É o único candidato, com chances de vencer, que está fora das circunstâncias políticas à esquerda e à direita, que convivem com as mesmas amarras desde o ocaso do regime militar (1964-1984).
De mero aventureiro arrivista, Bolsonaro se tornou um candidato real, o que nos leva a questionar sua capacidade. Muito mais do que consta num programa de governo X ou Y, é saber se será capaz de dar cabo de um ciclo político e alavancar outro. Se outrora Bolsonaro seria o Jean-Marie Le Pen brasileiro, nos últimos tempos procurou estar mais para um Trump tupiniquim. E como este inesperadamente ganhou nos Estados Unidos, configurando uma sequência de mudanças ainda não bem aceitas e muito menos compreendidas pelos cientistas políticos – já que a birra e a negação frente ao republicano sempre foram maiores do que a disposição da análise -, no caso brasileiro esse drama se repete: pouco se projeta sobre o day after das eleições brasileiras, sobre uma possível vitória de Jair Bolsonaro, sobre uma eleição que possa abalar crucialmente o âmago dos partidos fiadores da Nova República (de 1988) – MDB, PT, PSDB, DEM, e seus demais acompanhantes.
É por isso que vale a pena insistir na pergunta-título deste artigo: Bolsonaro conseguirá ser um Napoleão Bonaparte?
Isso depende da capacidade política de se arrematar o processo revolucionário (ou contrarrevolucionário) em voga, ou melhor, o momento de quebra de um ciclo político, que encontra paralelos mundiais. Nesse sentido Bolsonaro tem até agora um bônus e um desafio – ou uma bomba. A seu lado uma situação oportuna, que já rendeu frutos dentro do próprio âmbito eleitoral, e para a política nacional como um todo. Bolsonaro foi capaz de fornecer pautas para a política, tornar patente um problema que era rotineiramente negligenciado pela classe política: de como a sociedade brasileira é vítima da violência no Brasil. Ao invés de insistir no mantra dos “direitos humanos”, voltou-se justamente contra o garantismo penal, contra a flexibilidade da legislação brasileira e em apoio a militares e policiais. De fato abriu uma “janela de Overton” para a questão da Segurança Pública, numa perspectiva que privilegia a noção de ordem, de reintegração da autoridade pública. Junto a isso foi capaz de superar o entranhado estatismo militarista e se aliou a liberais na parte econômica, montando com o economista Paulo Guedes um plano em prol da desburocratização do Estado brasileiro, de privatizações, e acenando positivamente ao mercado, o que trouxe ao seu flanco ex-adversários[vi], como no caso do empresário Flávio Rocha, dono das Lojas Riachuelo.
Sobre esse conjunto de demandas Bolsonaro adquiriu um consenso social. Tornou-se um resumo nacional da negação quanto a “tudo que está aí”, e da indisposição frente a violência criminal no país, a impunidade, as políticas públicas que privilegiam agendas de gênero em escolas e espaços públicos, e a ampla falta de ordem no país. Por outro lado, o consensus que Bolsonaro não tem é no plano institucional e judiciário. Essa pode ser a sua bomba-relógio. Jamais ocupou cargo no poder Executivo, não domina as amarras políticas do Planalto e não conta com um grande partido que o blinde, assim como não está familiarizado com a institucionalidade brasileira – do funcionamento da máquina pública. Mais do que isso, não controla e não parece gozar da simpatia do Judiciário, muito menos do Supremo Tribunal Federal (STF), que de fato é o atual Poder Moderador brasileiro. Na verdade não só para um candidato de centro-direita que vença as eleições, como a qualquer político, o STF pode ser um problema, pois é nítida a invasão judiciarista na seara política. A recente discussão aberta pela ministra Rosa Weber sobre o aborto, em pleno ano eleitoral para o Legislativo federal, é uma provocação, uma clara mensagem do Supremo de vanguardismo político.
Ainda assim, é possível que a eleição de Bolsonaro pode significar o tiro de misericórdia no establishment político nacional, e representar o sepultamento de um ciclo político. Mas, para Bolsonaro realmente querer ser um Napoleão Bonaparte, não de uma revolução francesa do século XXI, mas justamente do oposto disso, de uma contrarrevolução, será preciso se vacinar quanto a dois males. Primeiro, não arrogar para si e sua família o monopólio desse processo. Segundo, não terminar parecido com aquilo que condena, evitando fazer do combate ao inimigo um mimetismo que o leve a ser tão parecido com ele – risco este que sua militância já está correndo. Esses dois vaticínios estão resumidos na lição de Joseph de Maistre: “a contrarrevolução não é a revolução no sentido contrário, mas o contrário de uma revolução”.
Em Sept leçons de politique, Père Jean-Dominique[x] apresenta os grandes eixos de uma política contrarrevolucionária. O primeiro é uma reforma intelectual e moral de cada um, tanto quanto a colaboração com as iniciativas sociais e políticas. Em boa medida essa “reforma das inteligências” já vem sendo feita através dessa Nova Direita que surgiu no Brasil, com a popularização da obra do filósofo Olavo de Carvalho, a abertura de editoras marcadamente com linha conservadora, think tanks “de direita”, jornais, blogs, Youtubers, influenciadores digitais e movimentos como MBL e Vem Pra Rua que revigoraram a opinião pública e a política nacional nos últimos anos.
O segundo passo é a recomposição das estruturas abaladas pelos influxos das políticas de agenda, dos extremismos à esquerda, e das enfáticas mudanças no plano educacional-cultural, conjunto de ações que demandam a reincorporação da autoridade e não apenas a tomada do poder. A seguir, trata-se de orientar a política a uma série de tarefas: primeiro por dar a Deus o que é de Deus; recolocar o Estado em seu devido lugar – como aquele que ajuda e contribui com a sociedade, e não aquele que a atrapalha e se torna seu adversário; dar valor aos corpos intermediários, e suas competências, o que significa fortalecer instituições como igrejas, clubes, associações livres, sindicatos independentes etc.; recompor a família como núcleo central da sociabilidade individual, da formação da pessoa; e, reintegrar o trabalho ao seu lugar, tornando-o livre, sobretudo do estatismo, que funciona como imã de atração no país.
Eis uma receita resumida para uma política do bem comum, de uma verdadeira conciliação. Em outras palavras, seria vencer a índole revolucionária da estratégia napoleônica da substituição, por uma outra substituição. Se Bolsonaro será capaz disso, não se sabe, mas que há condições estabelecidas para tal é algo inegável.
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NOTAS
[i] Uma feliz explicação sobre essa prática de Napoleão Bonaparte foi dada pelo apologista católico Orlando Fedelli em aula disponível no Youtube.
[ii] Para isso sugiro o livro de Monsenhor de Ségur, A Revolução explicada aos jovens. Trad. Luiz de Carvalho. São Paulo : Castela, 2017 [1861]. Recomendo ainda as aulas do pr. Luiz Cláudio Camargo, FSSPX sobre a Revolução Francesa, acessíveis em DVD.
[iii] Por sinal essa é a definição de Eric Voegelin para o espírito revolucionário, como explica em From Enlightenment to Revolution.
[iv] Sobre o assunto do ativismo judicial ocupando o espaço da política recomendo as análises em artigos e entrevistas do Cientista Político Christian Lynch (IESP-UERJ), como nesta para a BBC.
[v] A tese vem a partir da obra de Nicholas Nassim Taleb, e foi explicada nesse artigo de Flávio Morgenstern.
[vi] Basta ler as notas do site O Antagonista para avaliar o tom quase simpático ao candidato, igualmente é o que mostra os relatórios da XP Investimentos, que configuram Bolsonaro e Alckmin como os “melhores” para a economia liberal brasileira.
[vii] PÉRE JEAN-DOMINIQUE, O.P.. Sept leçons de politique. Sassierges-Saint-German : Éditions du Saint Nom, 2015.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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