Um ensaio sobre o falseamento narrativo da verdade política.
Em julho deste ano, o Facebook eliminou páginas difusoras de fake news ligadas ao MBL. Isso é ótimo, porque a direita brasileira tem o costume de incorrer a factoides para promover sua ideologia e impulsionar sua agenda. Ótimo, parte do trabalho está feito. Como não sou parte do MBL, jamais votarei em Bolsonaro, e acho o “liberal na economia, conservador nos costumes” uma jabuticaba ainda mais nonsense que o próprio MBL, me sinto à vontade para questionar o outro espectro do problema da verdade online: o que fazer quando as notícias são verdadeiras, mas nem tanto? Escolho conduzir esse ensaio falando sobre o papel do intelectual na sociedade brasileira — porque é aqui que vejo a face mais nociva da falta de comprometimento com a verdade. É fácil ignorar a notícia de que “Dona Marisa está viva, planejando fugir para a Etiópia com Lula”. Odiar é sempre fácil para quem já está odiando. Fica mais difícil ter discernimento quando se é sensível a causas sociais, quando se espera mais da política, e quando se procura entender o que realmente acontece no país.
O debate sobre o papel do intelectual na sociedade brasileira é antigo. Ele fica ainda mais difícil quando as nações que lideram, hoje, o mundo tendem a ser mais pragmáticas que o intelectualismo conhecido pelo brasileiro. O próprio termo “intellectual”, em inglês, é muito pouco popular — o equivalente mais usado é thinker, ou “pensador”. E um pensador pode ser um professor universitário, um cientista, um filósofo ou um empreendedor do Vale do Silício. A maneira mais tradicional de enxergar o intelectual ainda é a ideia europeia do “acadêmico pensador”, com Umberto Eco, Thomas Piketty ou (nos EUA) Noam Chomsky como expoentes desse tipo de atividade (ou ativismo).
Entendo que cada sociedade — em especial, conforme sua doutrina acadêmica — estabelece o campo de influência ou ação de seus intelectuais. Seja no diagnóstico contemporâneo de Bauman ou Chomsky, na autoparódia de Zizek, na classe de Umberto Eco, no conservadorismo de Vargas Llosa, na tradição francesa de Deleuze e Foucault a Piketty, na irreverência da Charlie Hebdo, a maneira como o intelectual se estabelece e exerce sua influência relaciona-se proximamente com o tecido do poder. Quem os escuta?
No Brasil de hoje, contudo, uma característica primária desse papel social é seu aspecto fragmentado. Há intelectuais para diversas tarefas do dia. Essa fragmentação lembra mais a seção de sabão em pó do supermercado do que uma bibliografia extensa sobre o pensamento brasileiro contemporâneo. Em primeira análise, há a ilusória divisão absoluta entre “esquerda” e “direita”. Cometem até o absurdo de definirem-se assim, seja por extenso ou implicitamente (e nada diz tanto sobre uma visão atrasada de mundo quanto definir-se dessa maneira, hoje).
Depois, há os graus de profundidade com os quais os intelectuais dialogam com a sociedade. Tendo a dar a cara a tapa e assumir a relevância dos tais “popular books” de ciência e pensamento social. Eles são perigosos, porque comumente abordam temas complexos de maneira resumida, e incorrem no risco de passarem a ideia de que ali, dentro das 180 páginas do livro, está todo o conteúdo a ser estudado. O que se disseminava em entrevistas, em cursos introdutórios ou palestras (todos fartamente disponíveis no YouTube, hoje) passa a ser o conteúdo do livro paperback cujo selo “New York Times Best Seller” faz qualquer leitor de negócios pensar ser especialista no assunto. No outro lado, há os bons autores que fizeram livros nem tão populares e acessíveis, mas que cumpriram com excelência seu papel de popularização da ciência: Stephen Hawkins, Thomas Piketty, Richard Dawkins, Daniel Dennet, Umberto Eco e até Roland Barthes. Cada qual com sua abordagem, uns mais e outros menos sensacionalistas, performáticos ou profundos nas suas obras de alto alcance.
No Brasil, contudo, isso não se deu da mesma forma. Os intelectuais passaram a perfazer um papel que antes era dos vendedores mais banais. Enquanto os franceses lidam com abstrações e os anglo-saxões diagnosticam e dizem como tratar o mundo, os brasileiros dão “gotas de conhecimento” para a vida diária, numa interminável lista de autoajuda escrita por aqueles que se denominam intelectuais. A vulgaridade das obras, a superficialidade com que lidam e o teor de venda fácil são tamanhos, que basta listar os títulos para incitar a vergonha alheia que merecem:
* Mario Sergio Cortella, Viver em paz para morrer em paz, Não nascemos prontos, A sorte segue a coragem
* Leandro Karnal, Crer ou não crer, Pecar e perdoar, Felicidade ou morte
* Luis Felipe Pondé, Espiritualidade para corajosos, Os dez mandamentos, Amor para corajosos
* Clóvis de Barros Filho, Kit Filosofia, A vida que vale a pena ser vivida
É fácil notar que se trata de, na melhor das hipóteses, obras paroquiais. As ideias velhas de religiosidade, espiritualidade, pecado e moral cristã “para uma vida melhor” vêm em embalagens vagamente contrastantes, em obras frequentemente co-escritas uns pelos outros, e nada oferecem para a sociedade em termos de projetos de sociedade. A prateleira parece mofada, escrita nos anos 50 por padres jesuítas procurando maior integração sobre suas congregações.
Já escrevi aqui e ali alguns ensaios sobre o deserto dos intelectuais midiáticos que assola o Brasil. Tomando frente numa prateleira interminável de autoajuda, sabão em pó e definições rasas de conceitos complexos, esses autores relativizaram o alcance, a importância e a influência de mentes pensantes na sociedade brasileira.
Em resumo, os midiáticos promovem um banquete de groselhas (Pondé, Karnal, Clóvis de Barros, Mario Sergio Cortella), com obras menores e embaraçosamente paroquiais. Mas essas figuras importam pouco, porque sabemos que suas obras estão aí para dizer o que se quer ouvir: reiterar a moral do trabalho; lidar com a iminência de se entender que deus é uma ficção; naturalizar as aberrações da sociedade brasileira (“não é preciso se preocupar com os pobres”), legitimar alguns preconceitos etc.
Num outro matiz de um elenco próximo, está a tropa de choque da direita, com Rodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo ou Olavo de Carvalho — variando entre o contorcionismo retórico, o achismo jurídico, o sensacionalismo alarmista (“rasgam a Constituição”) e o pleno e desbragado delírio ideológico (“a Globo, essa organização comunista”). Entre economistas e autodidatas, eles se imiscuem com jornalistas e aí outras figuras surgem, como Raquel Sheherazade, os Antagonistas, a Jovem Pan etc. Essa tropa de choque conta até com um editor da Editora Record, o Carlos Andreazza, para emitir as opiniões da “fila da padaria” junto de (pasme-se), Marcelo Madureira, “ex-Casseta & Planeta” e a jornalista Vera Magalhães. São esses os novos “intelectuais políticos”. A velha guarda tem Merval Pereira, Arnaldo Jabor ou Augusto Nunes — os “generalistas” que entendem um pouco de tudo e se credenciam por “ser inteligente”, ou por estar no jornalismo político há muitas décadas. Nenhuma dessas credenciais é suficiente para que se produza conhecimento teórico com estrutura, método ou com a sofisticação intelectual que uma sociedade como a brasileira merece.
E aí chegamos no espectro à esquerda, que domina a maior parte do que, por excelência, deveria ser o ninho do pensamento cultural — afinal, é na Universidade das ciências humanas, sociais e culturais que se deveria vir o estudo dessas entidades. O intelectual de esquerda, sem dúvida, preserva maior estima pela retórica acadêmica. É seu habitat natural, afinal. Temos Marilena Chauí, Vladimir Safatle, Christian Dunker, Jessé Souza, Ivana Bentes, Bruno Torturra, Fabio Malini, Márcia Tiburi e outros.
Mas é aí que mora o fato curioso — a esquerda deixa de ser influente pelo que produz de mais complexo, mas sim pelas suas opiniões mais estridentes. Eles abdicam de seu papel papel estrutural (e estruturante) de construção de pensamento, e se tornam conhecidos pelo que falam de mais contundente, estridente ou polêmico. Sendo assim, o estatuto do intelectual fica momentaneamente vago, uma vez que os que faziam o trabalho mental estão ocupados em fazer vídeos para o YouTube. E como passam a competir na esfera midiática, perdem espaço para aqueles que dominam melhor essa técnica de comunicação. Toma o lugar do intelectual, assim, o intelectual midiático — ele produz livros rapidamente, é telegênico e prolífico na produção audiovisual, é participante das redes sociais etc. O intelectual midiático fagocita o intelectual de origem.
O maior exemplo disso é que Marilena Chauí se tornou decisivamente um símbolo do petismo contemporâneo com um vídeo em que ela discute a moral e motivação da classe média paulistana. Com o que se tornou bordão — “eu odeio a classe média” — a interpretação superficial fez parecer que o petismo, afinal, finalmente dissera abertamente que “odeia” a classe média brasileira, eleitora de Aécio Neves e com um projeto nacional fora do PT. Não se tratava disso. O caso era sobre a desambiguação do que é classe média e classe trabalhadora. Na opinião da autora, a autointitulada “classe média” é uma caricatura, que pensa ser dona dos meios de produção, e na verdade é uma classe trabalhadora que jamais sera, propriamente, “elite” ou “burguesia”.
As obras paroquiais desses pseudointelectuais tomaram o lugar que tinham os intelectuais de origem? Ou foi a ausência desses intelectuais que lhes fez perder o lugar para o discurso fácil, midiático, paroquial?
Enquanto vicejam os escritos sobre temas ultrapassados como pecado e perdão, ou aspirinas mentais como “a vida que vale a pena ser vivida”, muitos acadêmicos que produzem novas subjetividades que tangenciam a esfera política sofrem uma espécie de narcose.
É claro, há muita produção acadêmica brasileira rica. Há também pensadores de excelência, inclusive pensando a esquerda. O próprio Vladimir Safatle é um dissidente da esquerda brasileira que percebeu o lulopetismo como projeto esgotado. Resta saber aonde Safatle pretende ir — a sua ideia de sociedade geralmente acaba num ponto de ônibus vago, que não despreza nem abraça a lógica de mercado. Por outro lado, um parceiro seu em escritos, é Christian Dunker, que criou a excelente metáfora para a classe média brasileira da lógica do condomínio. Ainda entre ideólogos, há a pesquisa publicada em Vozes do Bolsa-Família, de Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani. E por aí vai. Há quem possa criar listas melhores que a minha.
Mas esse ensaio procura evidenciar o que há de errado, e por isso insisto na prática que vejo ocorrer entre a enorme corrente emocional e perigosamente demagógica que se criou desde a queda de Dilma. É claro, ninguém em sã consciência, na academia, estaria satisfeito com a ascensão de Michel Temer. Some-se isso o doloroso processo de investigação e julgamento de Lula. E aí… é que um número assustador de professores e acadêmicos entrou num caminho de sedativos mentais que é aterrador. Porque essa narcose se desvencilha da verdade factual, da análise minuciosa de fatos, no conhecimento dos processos e instituições. Repetem-se os bordões (“Fora Temer”, “Foi golpe”, “Lula Livre”) sem o mínimo comprometimento com verdades factuais. E isso é grave, porque não se trata de um grupo iletrado, mas justamente do grupo mais diplomado do país, literalmente.
São conduzidos a uma eutanásia prolongada, que resulta, em ultima instância, na zumbificação de seu pensamento e na produção sistemática de obras sem qualquer valor acadêmico, intelectual ou estrutural. Essa não é uma tese solitária.
É sobre uma dessas que pretendo falar, primeiro dando exemplos que testemunhei sobre o intelectual acadêmico usando seu papel para promover verdades partidárias. Depois, usando como exemplo o livro que perdi o tempo lendo nesse fim-de-semana, A Elite do Atraso, de Jessé Souza.
Professores propagandistas
Não é a forma que se torna o maior problema que temos, contudo. É a perda que se tem no rigor técnico, método científico e imparcialidade acadêmica. Estes professores universitários, engajados politicamente, passam a utilizar suas personas publicitárias e acadêmicas — indissociáveis — para defender uma agenda que não tem qualquer comprometimento factual. O intelectual, o professor acadêmico e o cabo eleitoral passam a ser um só ente, comprometido com a produção de “conhecimento” fundamentada em princípios de propaganda.
Tomo aqui o livro de Jessé Souza, A Elite do Atraso, como exemplo fundamental. Mas há outros.
Por exemplo, o prof. Fabio Malini, da UFES, que trabalha com dados e visualização. Ele comanda o Labic, um laboratório de estudos de redes e dados. Sua relação com o coletivo Mídia Ninja é estreita, como mostra o recorte. Malini publica um trabalho onde ele define do que se trata o coletivo, caracterizando-o como um projeto de “governabilidade coletiva”, civil, sem copyright etc. Esses fatos isolados são realidade, mas não se encontram nas pesquisas publicadas quaisquer questionamento sobre o viés político do coletivo, ou a possibilidade de cooptação por grupos organizados politicamente, ou da instrumentalização desses grupos por agentes partidários.
Aqui, Malini publica uma pesquisa elogiosa ao coletivo, onde a metodologia carece de rigor. Malini publica no Facebook um resumo, deixando escapar ao olho menos clínico o dado que infla o tamanho da Mídia Ninja no gráfico: enquanto Jornal Nacional tem contabilizados compartilhamentos e likes, a Mídia Ninja tem somada à sua estatística o número de visualizações do vídeo. Ora, um pesquisador sabe que equacionar compartilhamentos e visualizações para medir impacto é uma incoerência (pois compartilhamentos são multiplicações, e visualizações são números absolutos). Mais que isso, os dados são somados e não há métrica equivalente para equalizar as interações do Jornal Nacional, que não exibiu vídeo online (mas certamente tem estatísticas não discriminadas sobre visualizações de seu conteúdo, o “reach” na métrica do Facebook, por exemplo).
O que ocorre é que aí a Mídia Ninja noticia uma notícia “verdadeira” pero no mucho, a partir da publicação de Malini em seu próprio Facebook. Dessa forma, Malini não disse textualmente que “a Mídia Ninja ultrapassou o JN”. Malini sequer publicou uma pesquisa acadêmica, visto que estava só “brincando com os números” e publicou em seu perfil pessoal do Facebook a pesquisa sem rigor científico.
Vê-se que até mesmo no próprio post, vozes dissonantes questionam a “hegemonia” da Mídia Ninja. A resposta vem em humanês, numa espécie de desconversa: “sim, pode haver problema de hegemonia … porque dá muito trabalho”.
Na prática, e em especial depois da ascenção do governo Temer, a Midia Ninja se alinha politicamente com o Partido dos Trabalhadores, e produz e promove conteúdo que só pode, por qualquer medida, ser comparado a uma produção coordenada de propaganda. Não há contradição no que se publica, não há dissonância. O que se promove como um coletivo que possibilita “vozes civis”, “descentralizadas”, e, mais perigosamente, a ideia de “verdade”, “imediata”, “sem filtros”, passa a ser mera produção de matéria prima para jornalistas com agenda semelhante — um banco de imagens de alta qualidade, um instituto de relações públicas da causa partidária a que se filiam.
Emblema dessa atuação partidária foi a ostensiva divulgação das imagens dramáticas da prisão do ex-presidente Lula.
Um caso adjacente é o da Prof. Ivana Bentes, por muitos anos diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Ivana tornou-se uma espécie de mentora intelectual do grupo Fora do Eixo, cuja atuação tomou contornos sombrios desde que denúncias de convidados, membros e ex-membros vieram a público. O vocabulário, as definições, a racionalização metalinguística — era evidente que Ivana teve um papel seminal em formar e formatar a conceituação do grupo como algo “fora do sistema capitalista”, “alheio à financeirização da vida”.
Quando Bruno Torturra (idealizador do Mídia Ninja) e Pablo Capilé (idealizador do Fora do Eixo) foram no Roda Viva, em 2013. O olhar nacional colocou os dois sob escrutínio. Na época, Mídia Ninja era incipiente e mantinha a aparência de “midalivrismo”. O Fora do Eixo, por sua vez, apareceu logo depois como uma organização fechada, hierárquica, e com contornos de “seita”. Sem exagero, os depoimentos são estarrecedores. De intimidação, cartão de crédito da mãe, assédio moral, trabalho não-remunerado, vigilância, e até cooptação sexual de meninas vulneráveis.
Quem quiser saber sobre o caso Fora do Eixo, procure pelos depoimentos da cineasta Beatriz Seigner, da ex-integrante Lais Belini, Carolina Santos e outros. Alguns links: um perfil no site Passa Palavra, uma matéria do Diário de Pernambuco repercutida no site Pragmatismo Político, esse depoimento na Revista Forum e até uma conta no Twitter intitulada Fora do Eixo Leaks. Para quem gostou de Wild Wild Country, uma rápida busca no Google abre o quebra-cabeças.
Na época, dizia-se que Pablo Capilé logo despontaria para algum cargo político. Foi Ivana Bentes, contudo, que ganhou um cargo político — e demonstrou seu interesse em ajudar o financiamento do grupo, tentando “desburocratizar a prestação de contas”.
Esse exemplo, sintomático e ilustrativo, corrobora com a postura contínua, sistemática, da professora. Não se trata apenas da confusa e difícil tarefa de dissociar espaço privado de espaço público — no Facebook, onde termina a postura acadêmica, a responsabilidade pública, o cargo de direção institucional, e onde começa a mesa de bar? A questão é mais séria.
A questão passa, inevitavelmente, em questionar e entender onde os limites do patrimônio público terminam e onde a esfera ideológica, cívica, começam. Quando o Prof. Fabio Malini usa o Labic para publicar gráficos elogiosos para a Mídia Ninja, com metodologia ambígua, no seu próprio Facebook, que tipo de mensagem se emite? Quando a Prof. Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, utiliza seu cargo público no Ministério da Cultura para facilitar o uso de verba pública pelo Fora do Eixo, grupo ao qual é umbilicalmente ligada, que tipo de separação é esse? Ou quando ambos os professores promovem, elogiam e balizam a Mídia Ninja como um centro de produção midiática livre, e emprestam sua autoridade acadêmica para juramentar que se trata de uma iniciativa civil, descentralizada e “neutra” — o que dizer quando se é evidente, e de fácil constatação, o alinhamento radical com um partido político?
O horror publicitário de Jessé Souza
Devo ser parte da “esquerda Oslo”, caricaturada por Jessé Souza no seu livro A Elite do Atraso.
Para começar, porque moro em Helsinki, capital da Finlândia, há quase dez anos. Jessé considera que a esquerda Oslo preocupa-se com o que não devia. Tendo a concordar que isso ocorre muito no Brasil. A novela da Globo promovendo plantar vegetais na varanda do apartamento, por exemplo. Eu vi isso, certa vez. Ou a entrada numa livraria qualquer: a enxurrada de livros sobre temas absolutamente alheios e irrelevantes à vida brasileira. Os poloneses que ajudaram Hitler. A terceira biografia do príncipe Harry. A condição feminina americana em Jojo Moyes.
Me parece, contudo, uma injustiça atribuir a mim o rótulo de esquerda Oslo — e isso é parte da campanha crítica feita à Marina Silva e seus eleitores (p. 176), tema que uso como fio da meada para falar sobre o livro de Jessé. Devo dizer neste ponto que provavelmente vou votar em Marina Silva. Mas não é porque ela defende a preservação da lavoisiera sampaioana do cerrado mineiro. Ora, a candidata tem uma agenda para cada área do país, como os demais. Essa é uma pecha utilizada para desqualificar a candidata — como se o foco da candidata fossem assuntos irrelevantes para a vida nacional, em especial a preservação da natureza. A tática é velha. O que surpreende é que esteja publicada pela editora LeYa, entre os livros mais vendidos nas principais livrarias nacionais, e descrito (entre tantos outros factoides) como fato conhecido.
Quando comecei a ler o livro, percebi um panorama interessante de revisitação de Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan e outros teóricos. Foi por isso que me interessei pelo livro: a ideia de rever Raízes do Brasil, e entender outros ângulos que expliquem o subdesenvolvimento do Brasil.
A tese de Jessé é sobre um certo culturalismo racista. Quando li a introdução ao conceito, pulei da cadeira. O grau de desconexão com a realidade é estarrecedor. Diz Souza:
Hoje em dia (sic), na Europa e nos EUA, absolutamente ninguém deixa de se achar superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o esforço “politicamente correto” de se tratar um africano ou um latino-americano como se este fosse efetivamente igual.
Ora, por onde começar? É preciso, de fato, explicar a aberração em que consiste essas afirmativas? Para mim, pessoalmente, é um insulto. E um insulto do tipo fogo amigo, porque vem de um compatriota. Está visto, aí, em expressão absolutamente perfeita, o complexo de vira-lata. Esse complexo não se manifesta como o desdém por aquilo que é feito em casa, em comparação com o produto estrangeiro (quem tem um DVD fabricado pela CCE pode discordar). O viralatismo vem da ideia de se pensar, em automático, que o outro nos considera inferiores. A minha vontade é mandar Jessé Souza à putaquepariu, em sentido figurado.
Além desses, vejo ainda dois problemas: primeiro, a incapacidade do autor em destilar os conceitos formativos como relativos, para daí lançar a ideia equivocada de “melhor” ou “pior”. Ele questiona se “modernizar-se” é bom ou ruim. Tudo bem, é possível lançar essa questão — afinal, temos Elon Musk fazendo espaçonaves, mas há fome no mundo. Dentro desses termos de modernização, sim; os países latino-americanos e africanos têm mais problemas que os europeus ou norte-americanos. Os índices são quantitativos. Mas até nisso o conceito falha, porque países como o Brasil têm tecnologia de ponta em nichos específicos (basta ver que Boeing, empresa americana simbólica de sua tecnologia robusta, e Embraer, projeto nacional Brasileiro, estão se fundindo).
Mas essa não é a questão de Jessé. Não é uma figura de linguagem, ou uma metonímia que confunde “pessoa” ou “povo” com “país”. A crença de Jessé é que “o protestantismo individualista, tipicamente americano, cria seres excepcionais, mais inteligentes, produtivos e moralmente superiores” (p. 18). É aí que nasce o conceito central do livro, o culturalismo racista. Basicamente, ele cria uma fábula nazifascista de que os Estados Unidos e a Europa consideram-se superiores porque são protestantes, e os depois são “raças” inferiores. Sinceramente, Jessé Souza deveria ser processado por publicar um absurdo dessa magnitude.
E aí que Eduardo Gianetti, em um livro que me parece ser uma espécie de resposta ou revide deste, faz o Elogio do Vira-Lata. Mas é claro. Em termos rápidos: nascemos e nos desenvolvemos de forma distinta das outras sociedades. O clima é tropical, o catolicismo é folgado, o Bispo Macedo é um gênio financeiro-social original. Mais ainda: qualquer fórmula que possa ser transplantada ao Brasil provavelmente falhará. É um país continental com suas próprias idiossincrasias. Portanto, não há formula para equiparar se americanos ou europeus “fariam melhor” nas condições históricas e geográficas brasileiras.
Fiquei enormemente desgostoso de ler isso num livro que tem aderência de pessoas cuja vontade política é a mudança, é a inclusão social, é um país melhor. Não há um nome para o que esse livro faz, porque é basicamente acusar um conjunto difuso de países de promoverem uma política nazista, racial e excludente — e, pior, incutir o sentimento de inferioridade na população que o lê.
Isso é desnecessário, mas posso atestar que, diariamente, sinto reconhecimento e prestígio em meu trabalho e em minha produção acadêmica, por parte de pessoas de status elevado, proveniente de inúmeros países (vá lá, os ingleses pensam ser melhores em tudo, mas isso é absolutamente indiscriminado).
E qual o principal problema desse texto? É o verniz de pseudociência, de “teoria social”, e pior: a catalografia em Economia, Ciência social, História. Não se trata de nenhuma dessas coisas, visto que nenhuma dessas ciências pode verificar a afirmação do autor. Pelo contrário, ele apenas reescreve, sem reformular, o que já foi dito por Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro: a classe média procura opor-se ao negro e ao pobre. Jessé Souza recoloca a questão sem muita originalidade: “um brasileiro de classe média sente-se como um alemão ou um americano”. A tese é interessante. Mas é tão conhecida que a novidade aqui só poderia ser um processo por plágio.
Mas a história piora.
Isso porque Jessé começa a introduzir, de forma arbitrária, dilemas e questões da vida política atual neste tecido de diagnóstico histórico e social. Começa por introduzir uma defesa da Petrobrás manter-se como estatal (sem qualquer cálculo, ponderação ou dissertação sobre o assunto).
Na página 67, ele coloca como junho de 2013 como marco da saída às ruas de “classes médias indignadas” com a corrupção do PT, e não dos demais partidos. Sabe-se que é apressada essa generalização, uma vez que Junho de 2013 foi útil ao lulopetismo num primeiro momento, para depois voltar-se contra o próprio partido, quando a corrupção foi exposta irreversivelmente, e quando criou-se o ditongo entre junho e os protestos pelo impeachment de Dilma.
A falta de objetividade e do pudor em refrear-se para juízos de valor é, também, impressionante. Na página 75, o autor — que, como lhe é de direito, tem posição contrária à lógica de mercado — diz que as condições de trabalho na São Paulo do século passado foram degradantes aos negros libertos por causa da “concorrência dos imigrantes, especialmente dos italianos, que não temiam a degradação moral do trabalho produtivo manual”. Não bastasse a aparente maluquice histórica, é simbólico entender que a contrariedade do autor à lógica de mercado não é colocada como posição autoral, mas sim como a única verdade disponível. Isso se opõe frontalmente à sua visão do sistema mais perfeito possível, “o capitalismo regulado, e não o socialismo estadizado” da Alemanha ocidental da década de 70(p. 158). A adjetivação descamba para o patético, quando Jessé diz que:
os capitalistas não sabiam o que fazer com tanto dinheiro. Mas queriam mais. Sempre muito mais. A velha acumulação infinita do narcisismo infantil que luta por uma conta com mais zeros do que outros. Um dinheiro que não se consegue gastar e não tem mais nenhuma relação com necessidades reais. Uma versão adulta da brincadeira infantil de medir o pênis para ver quem tinha o mais comprido.
Nenhum gráfico, nenhum dado sobre acumulação, nenhuma estatística, nem uma única referência a dados reais, a despeito da enorme pesquisa sobre a História da acumulação, recentemente publicada em Capital, de Thomas Piketty.
Uma busca rápida no Google, resultando na primeira ocorrência (a Wikipédia), e na primeira fonte da entrada, traz informação extremamente interessante para o tema: foi a reunificação das Alemanhas, juntando uma Alemanha moderna (Oeste) a uma industrialmente defasada (Leste), que ampliou a desigualdade, e criou desemprego e sub-emprego (fonte).
É neste conjunto de características que consiste a tônica do livro, sua abordagem teórica e seu modus operandi — e, portanto, é infrutífero analisar o livro em pormenores, adiante. De que adianta esquadrinhar uma casa, se no hall de entrada já se percebe irrefutavelmente que está condenada?
As narrativas subjacentes (como aquela que afirma que a totalidade dos americanos e europeus riem de todos os brasileiros) continua com a criação de mais inimigos: Deltan Dallagnol seria o “mentor intelectual” da Operação Lava Jato, em seu desígnio “protofascista”, fascismo esse finalmente “legitimado por Sérgio de Hollanda e Raymundo Faoro”. Como se vê, as acusações são graves (p. 187).
Seria preciso fazer um parêntesis embaraçoso, aqui, para explicar a Jessé Souza qual o problema epistemológico das suas conclusões: é claro que seria revitalizante revisitar Sérgio de Hollanda; é claro que, hoje, conhecemos melhor o mundo, nós mesmos, e os vetores e forças políticas formativos do Brasil. Contudo, o tema é abordado superficialmente e desenvolvido, figurativamente, por um surto esquizofrênico do autor, que delira e devaneia por onde não deveria, por expressa falta de conhecimento e traquejo.
Esclareço, humanitariamente, o erro epistemológico que ocorre: é claro que o país, suas instituições, sua iniciativa privada, e até sua classe média e trabalhadora, operam dentro da lógica do capital. É claro, é sadio questionar de tempos em tempos essa lógica; perguntar ao peixe o que é água. Mas quando pessoas ou instituições, públicas e privadas, operam dentro dessa lógica, não se trata de uma “conspiração”. Trata-se das trocas culturais, financeiras e objetivas inerentes a esse sistema ideológico vigente.
Com isso, me refiro a isso em resposta à conspiração de Deltan Dallagnol, que em outras palavras, estaria rifando o Brasil aos Estados Unidos, porque suas proposições de Direito vêm de escolas americanas. O mesmo com todas as fake news que diziam que “Moro é espião treinado pela CIA”, porque o juiz teve intercâmbios com instituições de Direito americanas. Sim, são alinhados ideologicamente aos Estados Unidos, como poderiam ser à França ou à Alemanha.
Trazer métodos ao Brasil importados dos Estados Unidos é uma ideia ousada, requer cautela e discussão. Mas certamente, não se trata de medidas que iniciam o gérmen do fascismo no Brasil — a despeito de Trump se aproximar do fascismo como nenhum presidente americano tenha se aproximado antes. Dallagnol pode ser quadrado, caxias, e advogar em causa própria — a pecha que tenta se impor sobre o procurador, contudo, é de moralista. É curioso que seja exatamente esta característica a ser criticada: como se a busca do procurador fosse inapropriada; Jessé parece advogar pela admissibilidade do comportamento moralmente flexível na política, pela tolerância com os casos em questão, pela complacência do procurador, enfim.
Há também lamentações sobre o Ministro Luiz Barroso falar em universidades americanas, e até o lamento de que até “mentes brilhantes” erram, como Fernando Haddad, que “defende posições muito próximas do ministro Barroso e do procurador Dallagnol” (p. 188) — mas, curiosamente, afasta-se de Haddad a ideia de fascismo.
Não falta uma nova construção de inimigo, e aqui na forma de “red herring” ou “pista falsa”, para que os leitores passem a debater, pesquisar e reivindicar: o fato de que no depoimento de Emilio Odebrecht, ele disse que “isso é feito há trinta anos (…) nós ajudamos a quebra dos monopólios, inclusive sobre a parte de telecomunicações (…) chegamos a montar umas três, quatro empresas… uma delas era até a Globo”. Música retumbante.
Não é possível entender o que Jessé Souza esperava do depoimento, que tem limites específicos, ou da legalidade de se abrir empresas privadas, ainda que tivessem o intento de quebra de monopólio. O fato é que Jessé pretende que o leitor termine sua obra com raiva da Globo porque ela se fez “à sombra da Ditadura Militar”. Alguém não sabia disso? Como isso contribui para o depoimento de Emílio Odebrecht? Não se fala, portanto, no propósito do depoimento — sequer questiona-se por que, e com base em que indícios, fatos e contextos, Emílio Odebrecht estava na frente de um juiz. As páginas subsequentes continuam jogando pedra na bunda da Globo, mas a agenda dessa ideia vai muito além da repetição das reputação volúvel da Rede Globo: Souza julga ser causa desses problemas “uma imprensa desregulada e venal”. O ovo da serpente moraria nesse clamor por regulação da imprensa? O tema é sério. Mastigar os defeitos da Globo, portanto, serve para sugerir a regulação da imprensa. E sabe-se que a base de toda democracia desenvolvida é a imprensa livre — algo que Jessé Souza não parece apreciar, porque no início do livro questiona e relativiza exatamente a natureza do Estado “modernizado”.
Por fim, e aí é o ápice e conclusão, finalmente, do subtítulo, procura criar uma aliança entre os inimigos perfilados pelo livro: Globo estaria de mãos dadas com a Operação Lava Jato, e juntos procurariam proporcionar uma “verdadeira regressão civilizacional que mente, pela ação coordenada desses agentes”. Alguém precisava contar pro Jessé que, nos anos Lula, a Avenida Brasil modificou o conceito de novela, incluiu a “nova classe média” e lucrou R$2 bilhões. Novela boa assim, nunca antes na história desse país.
A tese também afirma que a Lava Jato e a Globo estão mancomunadas com interesses corporativos dos procuradores para “promover a pior recessão econômica com milhões de desempregados”, e que “o início da Lava Jato foi a perspectiva de se acabar com os BRICS” (irônico notar que a Rússia, filha-problema da equação dos BRICS, é hoje a grande parceira da administração Trump).
Uma das maiores pérolas do livro, contudo, é eximir Sérgio Cabral de culpa pelo descalabro no Rio de Janeiro, e culpar “o conluio Globo/Operação Lava Jato” por isso. Ora, os procuradores devem mesmo ser filhos do demônio para tamanha crueldade gratuita. Merecem aspas:
Esse foi o resultado real (…) Aí se empobrece o Estado do Rio de Janeiro ao ponto do descalabro público e tem-se a pachorra de culpar os 3% de propina do Sérgio Cabral. Mas quem matou o Rio de Janeiro foi a ação da Globo à frente da imprensa golpista e da Lava Jato ao acabarem com a Petrobras (…).
Para citar Orwell: Liberdade é escravidão. Ignorância é força.
Afinal, ficamos aqui com a ponderação do autor: vale a pena promover a Operação Lava Jato, ao preço da destruição de milhões de empregos? Essa é, para o autor, a tese-título e a elite do atraso.
Liberdade é escravidão. Ignorância é força.
É aterrador que uma tese farsesca, superficial e populista como essa encontre ressonância fora de grupos de WhatsApp e esteja disponível em livrarias, encapadas por livros.
É realmente aterrador perceber que, se a direita tem um nível simplório e banal de fake news, já sendo combatido, a parafernalia propagandística da esquerda (ex-querda?) é complexa, camuflada e francamente ativa.
A Academia Brasileira de Propaganda
Infelizmente, Orwell não está citado na rala bibliografia do livro. Uma lista relativamente pobre cita uma pensadores que nada trazem de novo ao debate de hoje — Habermas, Weber, Adorno, Horkheimer, zzz. Até eu que sou de humanas já li o que precisava sobre eles, e já achei novos esquerdopatas mais influentes que esses.
Estamos, ainda, num império de propaganda. A propaganda da direita, tosca como o próprio ideário dessa direita brasileira, é tacanha e já foi, em parte neutralizada. Resta a propaganda sofisticada da esquerda. Mesmo com Duda Mendonça fora de cena, mesmo com João Santana com o rabinho e sua delação premiada entre as pernas, ela persiste. As imagens dramáticas, os blogs distorcidos, os factoides, as pechas, as campanhas difamatórias coordenadas. É preciso entender que estamos, além da propaganda, vivendo dentro da lógica do líder carismático. Costumo dizer que é fácil odiar Temer. Claro, é fácil — 99% do Brasil odeia Temer. Odiar Lula, e separar carisma de fato, forças de atraso e forças de progresso, elites e legislação, emoção de razão, é uma tarefa complexa.
Mais ainda, é uma tarefa custosa. Parte de meus amigos me chama de comunista, esquerdista, que acredita em conto da carochinha e pensa que o Estado fabrica dinheiro. Outra parte, me chama de filhodaputa, liberal capitalista sem coração, camisa-amarela denunciando a bandeira comunista do Japão. É péssimo sentir-se rotulado, ou agrupado com essas caricaturas. É uma tarefa incômoda se pronunciar. Porque é imediato pensar que amigos, colegas de faculdade ou familiares pensam de forma rápida, rasteira e absoluta que ou se está conosco, ou na massa estúpida das caricaturas. É tarefa árdua se pronunciar contra uma direita quando não se é de esquerda, ou se pronunciar contra a esquerda quando não se é de direita. Mas tendo em vista o estado de coisas, é, mais que nunca, uma tarefa absolutamente necessária. É preciso repactuar. Se comprometer com a verdade é, no mínimo, a primeira coisa a se fazer.
Sérgio Tavares
Doutor em cultura contemporânea, e consultor digital em Helsinki. Blog: Lutav.com.
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