Até o fatídico nove de agosto, tudo era treino. Finalmente a bola começou a rolar.
Parte do Brasil aguarda ansiosamente, a cada quadriênio, os meses de junho e julho. A Copa do Mundo, com seus jogos de tirar o fôlego, são a melhor parte desses anos pares para alguns. Para outros, o melhor do fim do ciclo se dá de agosto a outubro: começa o período eleitoral, no qual será escolhido o nosso novo (ou nova) presidente da República. Com ansiedade aguardamos os memes, as gafes, as renhidas disputas políticas, a baixaria de campanha, e os debates, que são, afinal, os grandes jogos que o público gosta de assistir.
Alguns querem conhecer o seu candidato a salvador da pátria. Outros, querem avaliar a sério as propostas. Muitos querem ver, de quatro em quatro anos, aqueles que comem do nosso dinheiro sendo espremidos em frente às câmeras. Todos, independentemente da situação, queremos acompanhar o desenrolar da decisão coletiva – culminando nas votações do primeiro e segundo turno – que vai mudar o nosso futuro significativamente.
Até o fatídico nove de agosto, tudo era treino. Finalmente a bola começou a rolar. O apito inicial foi dado com o debate presidencial promovido pela Rede Bandeirantes de Televisão, tradicional evento que marca o início do período eleitoral desde 1989. Estiveram presentes, por ordem de intenção de voto: o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL); o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB); a ex-senadora e ministra Marina Silva (REDE); o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes (PDT); o senador Álvaro Dias (Podemos); o ex-ministro da Fazenda e presidente do Banco Central, Henrique Meirelles (MDB); o líder do Movimento dos Sem Teto, Guilherme Boulos (PSOL); e a grande revelação do debate, o deputado Cabo Daciolo (Patriotas).
O debate foi surpreendente. A grande expectativa de todos os que acompanham as movimentações políticas – esporte que desbancou o futebol desde junho de 2013, em terras brasileiras – era de que Jair Bolsonaro seria espezinhado pelos adversários, a começar por Ciro Gomes. Foi exatamente o contrário do que vimos.
O capitão de artilharia da reserva do Exército, como gosta de se identificar, foi o grande vencedor do confronto presidencial. Apresentou-se calmo, sereno, respondendo diretamente, sem grandes problemas. Soube esquivar-se das tentativas de desqualificação de adversários. Num grande momento, Guilherme Boulos o qualificou como “machista, racista e homofóbico”, dizendo que o candidato deveria ter “vergonha”. Sem alterar-se e sem deixar-se cair em provocação, Bolsonaro disse-lhe que “vergonha deveria ter quem invade a casa dos outros”, em alusão ao movimento social chefiado pelo candidato do PSOL. Noutro momento, Álvaro Dias tentou polemizar com o candidato do PSL, ao lembrar declarações polêmicas de que mulheres deveriam ganhar menos que os homens. Bolsonaro matou no peito e fingiu que não era com ele, dizendo que as mulheres têm melhor desempenho na universidade e em concursos públicos que os homens, e que são melhores em tudo o que fazem, claramente acenando para o eleitorado feminino.
Durante o confronto, esquivou-se de polêmicas. Não falou de homossexuais, não falou de teorias conspiratórias, não falou absolutamente nada que chamasse a atenção. A vacuidade de sua plataforma política não foi sequer trazida à luz pelos seus adversários, que o deixaram deitar e rolar. Guilherme Boulos, que precisa antagonizar com o candidato do PSL para conseguir ter chances de subir um mínimo nas pesquisas, levou inúmeras invertidas. Álvaro Dias, que fez menção de bater no candidato, tornou-se mera linha auxiliar da candidatura nos debates. Tudo isso por conta de uma equivocada estratégia, pelo timing, de ignorar Jair Bolsonaro. Isso deveria ter sido executado um ano antes, e não agora, durante o alvorecer do período eleitoral. Terminou Bolsonaro, com o confronto de ontem na Band, ganhando mais votos do que perdeu. Sua assessoria política está de parabéns por ter conseguido domar a fera e por ensiná-lo a vencer na base da tática e estratégia.
Marina Silva, por sua vez, teve o pior desempenho do debate – embora não tenha sido a perdedora, como veremos adiante. Apagada, contrastando com a sua performance durante as sabatinas presidenciais, demonstrou estar cansada de tudo aquilo. Não conseguia responder com clareza – grande fraqueza, muito evidente desde 2010 – a nenhuma pergunta feita. Perguntada sobre sua opinião a respeito do aborto, pareceu vomitar um texto retirado de um gerador de lero-lero publicitário, declarando por fim que o assunto deveria ser tratado através de um plebiscito. Resolveu optar por atacar, muito equivocadamente, Geraldo Alckmin, candidato que lhe é mais próximo em posições diante de todo o panorama eleitoral. Em permanecendo com a mesma postura durante a corrida eleitoral, Marina Silva tende a sequer conseguir repetir o feito de 2010 e 2014 – quando ficou em terceiro lugar – derretendo à luz das câmeras de televisão.
O cearense de Pindamonhangaba, Ciro Gomes, foi decepcionante. De eleitores a detratores, todos sempre reconhecem no candidato uma desenvoltura retórica fantástica, esperando dele um desempenho avassalador durante os debates. O que vimos foi uma criatura apagada, quase sem voz. A única coisa digna de nota dita pelo candidato foi a de que “limparia o nome dos brasileiros no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito)”. Não antagonizou com ninguém, não aproveitou os momentos para atacar Jair Bolsonaro, e até mesmo levou uma invertida do candidato do PSL: na primeira vez em que declarou essa bobagem de limpar os débitos dos consumidores brasileiros, deixou-se impingir por Bolsonaro a pecha de “mentiroso”, posto que é francamente impossível fazê-lo na base do canetaço. Terminou, ao fim, declarando que limparia os débitos melhorando emprego e renda, e não da forma fantástica como supostamente faria (e que declarou à GloboNews).
Geraldo Alckmin, embora não tenha vencido o confronto, teve um desempenho bastante razoável. Não perdeu absolutamente nada, embora não tenha possivelmente conquistado mais que um voto ali ou aqui. Respondeu às perguntas com muita segurança e repetiu, à exaustão, sua dita preferita: sublata causa, tollitur effectus (suprima a causa que o efeito cessa). Com o mesmo carisma de uma pedra que repousa à beira do mar, sua marca registrada, conseguiu defender suas posições em defesa da agenda de reformas do governo Temer sem, com isso, sujar-se. Não vacilou – ao contrário de 2006 – em defender o legado de Fernando Henrique Cardoso e as privatizações. Seu momento mais destacado foi quando, a respeito do imposto sindical – todos achavam sua posição dúbia a respeito do tema – chamou aquilo de “excrescência”, e se comprometeu a não deixá-lo voltar. Na altercação com Marina Silva, soube bater à altura, dizendo que “nunca foi do PT e nem ministro do PT”, batendo no calcanhar de aquiles da ex-senadora acriana. (Porque a imagem do Partido dos Trabalhadores, a bem da verdade, está mais fortemente ligada à corrupção e a incompetência do que a de qualquer outro partido, no imaginário popular. Todos querem livrar-se de qualquer associação possível ao partido e tentar, se possível aproveitar o legado positivo de Lula).
Triste, de verdade, foi a participação do senador Álvaro Dias, do Paraná. O candidato do Podemos, claramente fantasiado de Fábio Júnior, parecia estar desconectado da realidade do debate brasileiro. Tentava sugar a credibilidade do juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, dizendo que o nomearia ministro da Justiça – algo que certamente não foi combinado com Moro. Repetiu algumas vezes a bobajada de que refundaria a república. Tentou bater em Henrique Meirelles, mas, terminou sendo tratado como sujeito ignorante e primário pelo candidato do MDB. Tentou bater em Jair Bolsonaro, porém, foi feito de escada pelo deputado. Tentou atacar qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, como uma espécie de cachorro louco cuja água da tigela foi trocada por vodka: não teve nenhum sucesso em seu ataque. Seu desempenho nas pesquisas eleitorais tende a sofrer substancialmente depois desse debate, e sua candidatura esvanecerá se o senador Dias não mudar a postura francamente populista e bizarra.
Henrique Meirelles, por sua vez, foi o saco de pancada oficial do debate. Embora seja provavelmente o candidato mais capacitado das eleições – esse é um sentimento meu, do qual a imensa parte dos brasileiros não partilha – apanhou de todos os candidatos. Seu carisma inexistente, coisa em que perde até para Geraldo Alckmin, não consegue ajudá-lo a responder efetivamente aos ataques dos adversários, muitas vezes injustos. A única pessoa que foi arranhada pelo ex-ministro da Fazenda foi o candidato do PSOL, mais por incompetência do segundo do que por bom jogo de bola do goiano.
Por falar na candidatura do PSOL, o único sentimento possível com relação à participação de Guilherme Boulos no debate da Bandeirantes é o de vergonha alheia. O poste de Lula transplantado dentro do PSOL parecia em dúvida se estava disputando a presidência da República ou do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de São Paulo. No primeiro ataque a Jair Bolsonaro levou aquilo que nós, nordestinos, convencionamos por chamar de peia. Durante todas as suas intervenções, tentava emular uma espécie de Luiz Inácio criado a leite de cabras alpinas da Suíça e queijo Camembert num espaçoso apartamento do Morumbi. Saiu do debate como entrou: minúsculo, inexpressivo, sem chances, uma verdadeira fraude humana. Soou como um aproveitador, que tentava usar o cadáver de Marielle Franco, a quem chamou de companheira – o que nunca foi, posto que a vereadora morreu poucos dias antes da filiação de Boulos ao PSOL! – como estandarte sangrento de batalha, numa emulação do Blutfahne.
A grande revelação do debate foi o – até aqui, completamente desconhecido do grande público – o deputado federal Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos, o cabo Daciolo. Eleito pelo PSOL fluminense, e depois expulso, o candidato parecia francamente confuso a respeito de que lugar estava, se num púlpito da Igreja Apostólica Plenitude do Poder de Deus, ou se num debate presidencial. Foi a verdadeira personificação das correntes conspiratórias de Whatsapp em forma de homem.
Acusou Ciro Gomes de ser membro-fundador do Foro de São Paulo e de planejar instalar a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, uma tal URSAL, num momento em que quase todo o Brasil chorou de rir. Iniciou e terminou todas as falas com um “para honra e glória do Senhor Jesus”. Profetizou que essa era “a vez do novo”, e apontou – até com certa razão – que ele era o único candidato que não pertencia ao establishment (ou “estabiche”, como dito por Jair Bolsonaro). Prometeu derrubar os preços do combustível em 50%, para honra e glória do Senhor Jesus. Iluminado pelo Espírito Santo, declarou que o Brasil será a primeira economia do mundo e deixará de ser uma colônia para virar uma nação durante o seu governo, para honra e glória do Senhor Jesus. Disse que respeitará os católicos, cristãos, espíritas, evangélicos e ateus, fazendo o país inteiro clamar a Deus, para honra e glória do Senhor Jesus. Demonstrou sua raiz política no PSOL, quando falou dos quatrocentos bilhões de sonegadores (isso é, umas oitenta vezes a população do planeta Terra) que supostamente deviam ao Governo Federal.
Daciolo é um homem do povo. Muito inocente, genuíno e completamente esquizofrênico, foi a verdadeira estrela do debate da Bandeirantes. Tem exatamente a mesma conversa do tio do pavê, do aposentado que debate política na fila da lotérica, do cobrador que discute em voz alta sobre o governo com o motorista de ônibus – tudo isso, claro, com o brilho no olhar de um maníaco. Sacou, nas considerações finais, uma bíblia surrada de seu paletó, e começou a ler passagens do profeta Jeremias sobre a nação brasileira (que loucura!), clamando também pelo profeta Doutor Enéas (1938-2007). Vai pontuar lindamente nas próximas pesquisas – um feito e tanto, para quem “tinha menos de zero por cento”, pérola disparada duas vezes durante o confronto.
No debate, tivemos, em resumo, um vencedor, que foi Jair Bolsonaro (nos pênaltis). Tivemos um bom vice-campeão, que foi Geraldo Alckmin. Tivemos um jogador revelação, que foi o cabo Daciolo – sujeito que transformou a participação de Ricardo Boechat em desnecessária, já que o debate deixou de precisar de um moderador para precisar de um psiquiatra e um enfermeiro, a postos, com uma injeção de Haldol e uma camisa de força. Vimos o ocaso de Marina Silva e Álvaro Dias, os equivalentes à Alemanha e Argentina da nossa copa presidencial. Até mesmo assistimos Guilherme Boulos dar sequência à decadência no desempenho do PSOL nas eleições presidenciais, posto que certamente será menos votado que todos seus antecessores presidenciáveis do partido. Mas, quem foi o grande perdedor?
Quem mais perdeu com o debate foi o candidato ausente. Não se trata de Lula, um preso por corrupção que não poderá concorrer à presidência da República. A grande ausência é de Fernando Haddad, que será o substituto de última hora do ex-presidente petista. Ao ter faltado ao confronto, perdeu grande possibilidade de entrar na disputa presidencial em pé de igualdade com outros candidatos. Em insistindo o Partido dos Trabalhadores na estulta postura de manter a farsa da candidatura de Lula, amargará Haddad a pior colocação de seu partido em eleições presidenciais. O PT nunca logrou menos do que a segunda colocação, até aqui. Ou o PT renuncia à farsa de que seu candidato não é o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, no intuito de alisar o ego de um homem que se sente dono do Brasil e da esquerda política – Lula – ou vai realmente ser varrido para o limbo.
No dia 17 de agosto teremos mais um debate. O confronto, desta vez, será na RedeTV, em parceria com a revista IstoÉ. Ainda dá tempo de Lula renunciar à candidatura farsesca e deixar Fernando Haddad participar. Se a sua vaidade é maior do que a visão política, o que contrasta grandemente com o maquiavelismo que transformou-o em líder inconteste e popular, e o que vai lhe afastar definitivamente do poder, só o tempo dirá. Estamos no aguardo para saber se Haddad não será apenas o grande perdedor dos debates, por W.O., mas também das eleições.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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