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Por que votarei em Marina Silva

por Giuseppe Cocco (29/08/2018)

A mobilização econômica não se reduz ao equilíbrio contábil e precisa de uma mobilização social.

Um voto libertário

Votar ou chamar a votar em alguém não significa pensar que as eleições mudam a sociedade ou o país. Ainda menos significa relativizar a crise da representação. Ao contrário, se trata de fazer a operação inversa: qual é a figura política que mais se deixa atravessar pelas mudanças e as urgências que acontecem na sociedade e precisam acontecer. Sem dúvidas, Marina é hoje – como foi em 2010 e em 2014 – essa figura que não apenas se deixa atravessar pelas mudanças que no Brasil ocorrem desde 2013, mas as expressou antes de junho, rompendo com o lulismo desde o início do nefasto segundo mandato de Lula e colocando em debate uma outra pauta política: a sustentabilidade, no sentido mais amplo.

No âmbito mais engajado ou até militante (não estou falando aqui do voto “popular”), votar Marina é uma questão de liberdade. O voto em Marina é um voto libertário. Em 2014, a aparelho corrupto do marketing e dos robôs petistas destruiu a figura de Marina. O que os mercenários do PT fizeram cinicamente, o esquerdismo (chamado de “voto crítico”) fez de graça e com entusiasmo, repetindo – felizmente apenas em termos discursivos – o que se atribui ao stalinismo, mas na realidade é um modo de ser da esquerda quando ela se torna ideia, símbolo abstrato, bandeira (o que em termos mais filosófico se diz ideologia e transcendência).

Muita gente não sabe o que foi (e o que é) o stalinismo e pensa que era (ou seria) uma forma de radicalismo. Ao contrário, o stalinismo era (e é) – além de um sistema totalitário – a explicitação vergonhosa da face reacionária do partido-estado: aliado a Hitler, Stalin matava comunistas a rodo. Aliado a Temer e Odebrecht, o petismo destruiu toda a esquerda e fez de Bolsonaro uma referência da indignação nacional. Não é por acaso que a esquerda toda, desde o PT até o PSOL, passando pelo PCdoB e o PCB, se solidariza hoje com a nojenta ditadura venezuelana: é o modo de ser da esquerda quando quer ser mesmo esquerda. Ora, o stalinismo começou bem antes de Stalin. Rosa Luxemburgo, em 1918, chamou a revolução bolchevique de golpe e anteviu o que logo depois se confirmou no massacre dos sovietes (conselhos) de Kronstadt (em 1921). Os Conselhos dos operários e dos marinheiros do porto báltico, praticando a democracia radical, contestavam o decisionismo de Lenin e Trotsky, que mandaram o Exercito Vermelho massacrá-los, inclusive suas famílias.

Ser “marineiro”, votar Marina, é mesmo ser “marinheiro”. É afirmar sua liberdade, repetir esse gesto, não respeitar as grades da prisão que a esquerda é. Ser “marineiro” ou “marinista” (no sentido de defender abertamente o voto na Marina) na esquerda brasileira hoje é uma manifestação de desobediência e de liberdade que independe de Marina. Mas, claro, isso não é suficiente e sabemos bem que a candidatura de Marina não tem nada a ver com a democracia dos Conselhos.

Delírio e crédito

Depois do primeiro debate eleitoral entre candidatos presidenciais (na Band, no dia 9 de agosto de 2018), muita gente tirou sarro do esquisitão da vez, o Cabo Daciolo. Eleito deputado federal nas listas do PSOL do Rio de Janeiro (única cidade onde o PSOL não está confinado ao gueto), Daciolo foi a liderança do primeiro grande movimento social que se levantou contra o pacto mafioso que governava o Rio de Janeiro e o Brasil (a greve dos bombeiros, em maio de 2011). Todo o mundo acha ele “delirante”.

“Delirante” não é a fala do cabo, mas a situação que vivenciamos e sobretudo que vivenciam os pobres depois de 13 anos de governos lulistas. Só delirando os pobres aguentam. Delirante é a guerra generalizada que vigora em todas as grandes e pequenas cidades do Brasil. Delirantes são as condições da saúde pública e aquelas de vida nas masmorras que constituem um sistema prisional hediondo. Delirar é uma maneira de enfrentar esse delírio. Milhões de pobres vivem nessa situação delirante, entre transportes públicos que parecem transporte de gado, tiroteios, esgoto a céu aberto, tuberculose, zika, chikungunya, miséria e outras milícias. Delirante é essa miséria toda, no Rio de Janeiro, no meio de estádios e vilas olímpicas. Debochar desse delírio não resolve absolutamente nada. Só um novo pacto, novo mesmo, pode criar narrativas adequadas, uma moeda que não seja falsa.

No mesmo debate da Band, muita gente criticou Ciro Gomes por prometer “limpar o nome” de todos que estiverem no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito). O fato é que, quando fala aos endividados, Ciro está dizendo (talvez sem querer) que, no mundo contemporâneo do trabalho, ter crédito é uma das condições para ter renda, inclusive salarial. O SPC não é mais um serviço de proteção dos comerciantes diante da expansão do crédito ao consumo, mas a nova central do INSS; seus registros são tão importantes quanto a Carteira de Trabalho. Numa economia onde o trabalho junta a precariedade da modernização (aquela da automação e dos algoritmos) e da informalidade, que evolui de maneira acelerada na direção da terceirização com a multiplicação das plataformas de desintermediação (as mais conhecidas são Uber e AirBnB), a relação de débito e crédito substitui a relação de emprego salarial ao passo que a renda se torna mais importante do que o salário. Falar do “nome sujo” no SPC é como falar do desemprego, só que de maneira mais adequada. Ao mesmo tempo, prometer “limpar” o nome é como prometer “criar” emprego a partir de subsídios às grandes empresas.

Renda de Cidadania

Não é só do lado das finanças que a renda se torna importante, mas também do lado do trabalho. Os esforços que precisamos multiplicar não são para tornar industrial o capital financeiro, mas para socializar a renda que ele gera na economia global das redes e das plataformas. A invenção institucional que precisamos é a Renda Universal (ou de “cidadania”). Essa é a única maneira de reconhecer a dimensão produtiva das redes sociais (quando tudo é terceirizado), que o capital do Uber, do Facebook, do Whatsapp somos nós.

Marina tem anunciado que seu programa contém a proposta da instituição de uma Renda Universal. Isso indica que sua candidatura tem condições de se tornar um movimento, aquele movimento que o Brasil precisa para se reinventar. A necessária reforma da Previdência pode assim tornar-se o terreno de invenção de uma nova proteção social, não mais baseada no direito do emprego, mas na produção de direitos pela remuneração da empregabilidade.

Estabilidade macroeconômica e mobilização social

O cinismo petista não está nem aí com a moeda e a economia, só o preocupa quanto isso lhe rende em termos de renda: a evolução patrimonial de seus caciques e a mamata generalizada de seus militantes falam mais alto do que a Lava Jato. O moralismo esquerdista reduz as relações econômicas a um embate de justiça contábil: o déficit da Previdência não existiria e a falta de recursos é apenas “corte de gastos”. Inflação e preço nominais não entram no raciocínio.

Economia não é contabilidade, mas interdependência sistêmica. Como o Plano Real demonstrou, a estabilização macroeconômica – numa situação dada – é a condição sine qua non para que as lutas e as mobilizações que transformam os valores possam acontecer, criando novas formas de mobilização. Os economistas da equipe de Marina têm esse rigor técnico indispensável e urgente. Contudo, a greve dos caminhoneiros e a queda de Pedro Parente da presidência da Petrobras demonstram que a boa gestão (a gestão dos “melhores”) é sim condição necessária (no lugar do saque da empresa promovido por PT e PMDB), mas não suficiente.

Dito com outras palavras, a mobilização econômica não se reduz ao equilíbrio contábil e precisa de uma mobilização social. Sem mobilização não haverá inovação e a mobilização precisa de pautas que transformem os enigmas do desemprego, da miséria, da violência e da desigualdade em invenção institucional.

Candidatura–movimento

No restrito e deformado campo eleitoral, Marina é a inovação possível. Em primeiro lugar, ela não é um efeito de marketing, oportunismo ou transformismo, mas a consolidação de uma riquíssima trajetória de vida. Mulher, negra, índia, seringueira, nortista, de origem pobre, militante, companheira de luta do Chico Mendes, Marina é uma sobrevivente, no sentido forte de sobrevida: super vida. A vida de Marina é uma luta, a luta das pobres e dos pobres brasileiros que resistem e persistem na cidade e na floresta.

Contudo, Marina não é “pura”. O que interessa em sua candidatura é mesmo a possibilidade que ela tem de constituir realmente essa transição necessária. Que essa possibilidade se torne real depende – e sobra muito pouco tempo – da capacidade que ela terá de abrir mesmo sua candidatura a um conjunto de pautas inovadoras e, ao mesmo tempo, se desmarcar da Rede Sustentabilidade. A Rede não tem, nem de longe, a trajetória e o acumulo de Marina e, nessa curta duração, se mostrou totalmente inadequado à proposta. Sem contar episódios de tosco transformismo (a troca de partidos como se fosse de cuecas de dirigentes da Rede no Rio de Janeiro), a Rede não tem dinâmica.

Para ser forte, a candidatura de Marina tem que ser uma candidatura-movimento. Candidatura-movimento não é de movimento, mas um processo eleitoral horizontal e aberto, que não cabe nem na burocratização precoce da Rede nem na estrutural verticalizada e empresarial de praticamente todas as outras candidaturas. A incapacidade da Rede existir e a repetição nos Estados de alianças não apenas criticáveis mas inúteis, como as que foram feitas nas Municipais, mostram que estamos diante de um natimorto.

Na beira do abismo

O levante cidadão de junho de 2013 decretou a morte do pacto mafioso e patrimonialista que tomou conta da República Nova e abriu um infinito horizonte de inovação democrática. Junho é tudo que nos resta, junho quer ser tudo, mas ainda não é nada. Desde então, a coalizão da ordem predatória, da qual o PT tem se tornado um elo fundamental e perverso, depois da reorganização interna que foi o impeachment de Dilma (com o objetivo de se proteger diante da Lava Jato), está usando bilhões de dinheiro público para mais uma vez manipular as eleições em prol de sua reprodução.

O efeito de transparência que a Lava Jato promoveu confirmou o que já sabíamos. O chamado “caixa 2” é na realidade um mecanismo fundamental de entrega do interesse público aos interesses de oligopólios que controlam os mercados como as milícias e facções controlam os territórios: todos sugam o sangue dos mais pobres e dos pequenos empreendedores. Mas não se trata apenas disso: são mesmo as eleições que são “fraudadas” pelos leilões que os partidos promovem de seu “tempo gratuito” de televisão. Acabamos de assistir a mais um episódio desse mercado infame (entre Ciro, Alckmin e o PT).

A política está no impasse, rumo ao abismo, bem nos termos dramáticos do que acontece no Rio de Janeiro falido, entre desemprego, guerra e intervenção federal. A Venezuela nos mostra que podemos rapidamente passar do “fundo do poço” para um “poço sem fundo”: é urgente renovar Junho dentro de mediações institucionais adequadas. Precisamos de novas mediações institucionais e de forças políticas que, por um lado, levem a inovação para dentro da representação e, pelo outro, sejam as expressões múltiplas de uma inovação que só pode vir de baixo.

Votar em Marina é uma manifestação de liberdade, um apoio à implementação de uma nova proteção social (pela proposta da Renda Universal) e a abertura do debate sobre pautas adequadas (legalização das drogas, legalização do aborto, desarmamento, direitos LGBT). Se Marina conseguir, além disso, fazer de sua candidatura um movimento, abrindo-se horizontalmente, ela conseguirá ir além das barreiras que o sistema ergueu para impedir que o novo se afirme.

Giuseppe Cocco

Doutor em História Social pela Université de Paris (Panthéon-Sorbonne). Foi professor da UFRJ e escreveu, entre outros livros, MundoBraz (Record, 2009).