A perspectiva da criatura de Corção é similar, talvez idêntica, à de um personagem de Kierkegaard.
Like love we don’t know where or why,
Like love we can’t compel or fly,
Like love we often weep,
Like love we seldom keep.
– W.H.Auden, “Law Like Love”
Lições de Abismo é um romance intrigante, tanto pela temática profunda e grave (câncer, conversão, etc), como por sua estrutura singular, por vezes esquisita. Há, porém, um episódio em particular, já às vésperas do fim do livro, que se salienta. Inclusive parece destacado do restante: surge de súbito e desaparece sem deixar rastro.
Falo do episódio alegórico (no capítulo “20 de fevereiro”), em que o protagonista – José Maria – em uma espécie de sonho, ou visão, se depara com uma criatura bizarra e caricata em algo como uma antessala do inferno – a personagem lembra, é claro, o diabo –. Como já está perto de sua morte e a essa altura concretizou boa parte de sua redenção – beira a conversão –,o episódio deve ser entendido como uma preparação, um presságio, ou, como a própria criatura indica:
Isto aqui é um teatro, ou uma escola, se prefere. Um lugar de exercício, de ensaio… (p.296)
1.
A interação que se segue mantém o teor já bizarro do episódio. José Maria lhe dita toda a sua trajetória de redenção; confessa sua angústia inicial, seus conflitos e seus dramas. Porém, a tudo que diz, recebe a mesma resposta: riso. E quando conta seu ato de caridade – em que gastou todo seu dinheiro para comprar um par de rubis à moça do café–, que é em si o cume de seu processo de redenção, a criatura silencia por um momento e pede para que repita a história; não havia compreendido direito. Eis que, depois de repetir, ela torna a rir, agora de modo escandaloso.
E sem compreender o deboche, desconcertado, José Maria presume que ela seguiu sem entender a história – o episódio não é nada engraçado, pensa, é sério e grave—. Mas, a essa insinuação, a criatura responde contando de volta sua própria história nos mínimos detalhes:
E começou efetivamente a contar-me a minha própria história. E eu pasmava. A história que ele contava tinha uma precisão milimétrica. Era exatamente, rigorosamente, a minha história. Mas ao mesmo tempo era monstruosamente falsa, como se ele a tivesse desidratado, como se ele tivesse queimado a sua carne, destruído suas junturas, apagado seus matizes, esvaziado suas artérias, e viesse mostrar-me somente as nervuras carbonizadas, mas exatas, de minha lamentável história. Não que omitisse fatos ou circunstâncias, não que mutilasse: a história estava inteira, mas morta. E disto resultava um inexcedível grotesco, sem que eu pudesse apontar onde estava a falsidade e o erro. (p. 298; marcações minhas)
E já depois de muito remoer consigo mesmo e se humilhar tentando explicar que a história é séria e que o riso não convém, José Maria descobre, enfim, aquilo que falta na versão diabólica: o amor. E, ao pronunciar sua resposta, súbito, a criatura desespera e a aparente antessala se queima e se encerra.
E debati-me, lutei, feri-me na pedra de meu trono, mas afinal consegui com voz estrangulada gritar por Aldebarã:
— Amor! Amor! Amor!
Caiu então a estrela do céu, e um fogo enorme, uma clara vermelhidão, iluminou a gruta. Ah! agora eu via nos rostos, nos braços, nas pernas, que voavam no ar como folhas dançando nas chamas, o que me faltava naquele sepulcro. Via a dor, a dor viva, a dor viva do amor. O vulcão entrara em atividade. (p.300)
2.
Eis o que importa notar desse inusitado capítulo: a criatura escutou a história inteira de José Maria e, ainda assim, foi incapaz de apreender-lhe o cerne – que é o amor, a caridade –. Isso acontece porque a caridade, virtude maior do cristianismo, é rodeada por uma complicação singular, por vezes esquecida: é quase impossível distinguir o ato feito por caridade do ato feito apesar dela. Não há uma palavra, uma circunstância, uma consequência, ou mesmo um sentimento que identifique a presença do espírito da caridade em determinada ação. A caridade ou se pratica ou se presume – através da fé –; não se comprova.
Soren Kierkegaard, ao abordar a complicação, chegou à seguinte conclusão:
Pois, assim como não se pode ver o amor como tal, e por isso mesmo se tem de crer nele, assim também ele não pode, de jeito nenhum, ser reconhecido incondicional e diretamente em nenhuma de suas manifestações como tais Não há nenhuma palavra em linguagem humana, nem uma única, nem a mais sagrada, sobre a qual pudéssemos dizer: quando um homem emprega esta palavra, fica com isso incondicionalmente provado que há amor nele. Pelo contrário, é inclusive assim que uma palavra de alguém pode assegurar-nos de que haja amor nele, e a palavra oposta de um outro pode assegurar-nos de que também haja amor neste outro(…) (As Obras do Amor, p.27, Editora Vozes, 2013)
Ora, por isso, ainda que a criatura tenha apreendido todos os fatos da história de José Maria, foi incapaz de perceber o amor ali subjacente. E mesmo extirpando o amor da história, remanesceram inteiros todos os fatos, as circunstâncias, etc. Restando José Maria angustiado, incapaz de identificar, de nomear, o que faltava.
3.
Esse mesmo problema representa uma dificuldade intransponível ao escritor de ficção que sustente uma perspectiva cristã, interessado em representar a caridade. Na ficção é preciso que se represente a virtude por meio de uma ação, de uma sucessão de eventos específica. Disso decorre o problema, aparentemente sem resposta: que ato, que fato, que circunstância representar?
Repare que nem com todos os pretextos marcados por Corção em sua própria descrição — o fato de José Maria não se deixar ver, pois caridade prescinde do reconhecimento; de ele gastar todo seu dinheiro, pois a caridade prescinde do racional e do prudente; e de a endereçada ser uma estranha, pois a caridade não tem endereço fixo e pode ser depreendida em qualquer um — se resolve o problema: a criatura escutou tudo isso com máxima atenção e ainda assim ignorou a presença do amor.
Insisto: quer José Maria desse rubis a uma desconhecida que o ignora, quer ele entregasse um copo de água a sua mãe que pede e agradece, a caridade poderia se manifestar, ou não, em ambas as ações. Não há contrariar o reconhecimento como vetor oposto, mas sim transcender o reconhecimento. Podendo existir com ou sem sua presença.
4.
A perspectiva da criatura de Corção é similar, talvez idêntica, à de um personagem de Kierkegaard, em O Banquete; o Mancebo. E o último discurso deste pode nos ser útil para compreender a criatura, visto que se trata de uma espécie de desabafo, uma longa explicação de sua própria situação. O Mancebo tenta justificar sua escolha por nunca experimentar o amor; diz que todo ato de amor lhe soa contraditório, ridículo e cômico. Mas ressalta que não só os atos exagerados, os grandes martírios românticos, como também são cômicos os comedidos e tímidos sacrifícios de amor que emergem no cotidiano. Argumenta:
(…) Se me entrego à hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém, esses loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que podem de bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos (O Banquete, p.86, Guimarães Editores)
Por não querer arriscar fazer papel de ridículo, nunca experimentará por conta própria o amor; por outro lado é incapaz de conhecê-lo por testemunho de terceiros. Assim como a criatura, o mancebo não apreende aquilo que daria seriedade a esses testemunhos, por isso toda história de amor lhe soa cômica:
Sempre que me aplico a pensar no amor, não alcanço mais do que contradição. Parece-me às vezes que algo escapa: o quê, isso é que não sei dizer. (O Banquete, p.79)
Ora, sendo assim, não tem a criatura sua razão em reagir com riso à história contada por José Maria? Sem amor, seu sacrifício é um grande e abobalhado escândalo. Cômico, portanto. Porém, se for a criatura coerente como o mancebo, ela riria de qualquer que fosse a história contada por José Maria. Qualquer que fosse o exemplo escolhido por Corção, sua reação não mudaria. Todos, igualmente, soariam ridículos, porque sem sentido e contraditórios.
O escritor de ficção que quer representar a caridade, como o homem que conta sua história de amor a um terceiro, está sempre correndo risco desse mesmo ridículo. E o que Corção faz, nessa curiosa cena, é, de modo perspicaz, antecipar o deboche. Não se importa com o riso. E em não se importar com o riso do mancebo, escancarou a fatal ironia de seu destino: ao evitar as contradições do amor para manter-se em rigorosa seriedade, converteu-se em uma piada de um romance esquisito.
Gustavo Corção, incapaz transmitir a caridade por meio de uma mera história àquele que o amor desconhece, contentou-se, pois, em devolver o riso à ridícula seriedade do abismo.
Pedro Almendra
Estudante. Vive em Teresina.
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