Quem se aliena é mais feliz. Repare nessas pessoas que se digladiam por política nas redes sociais.
Votar nulo pode parecer uma saída mais fácil e sobretudo mais covarde. Ao menos para quem acredita que as eleições funcionam assim como uma batalha épica, daquelas que distinguem homens de meninos (e usuários de clichês de não-usuários de clichês). Mas não é nem fácil, nem covarde, como se verá a seguir. Ao contrário, pretendo convencê-lo a votar nulo hoje e sempre, mostrando que este tipo de voto é mais sábio, mais criativo, mais corajoso e, paradoxalmente, mais difícil do que votar em qualquer candidato nesta ou nas eleições futuras – se houver.
“Sábio é aquele que, diante da escolha obrigatória pela Constituição, anula seu votinho”, disse Confúcio (acho). E, se você duvida dessa sabedoria milenar e de olhinhos puxados, é porque provavelmente já chegou embriagado à festa da democracia. Ou é jovem – e, neste caso, não há solução no curto prazo. Envelheça e volte a este texto e à urna daqui a alguns anos.
O voto nulo (não confundir com o voto em branco, aquele racista!) é mais sábio porque a abstenção é uma atitude invariavelmente muito mais inteligente em todas as situações em que a tal da participação democrática se faz necessária. A pessoa que fica em casa assistindo à novela em vez de descer até o salão de festas para votar na reunião de condomínio é alguém que está prestes a alcançar o Nirvana. Já a pessoa que troca o domingo de sol para ir até a seção eleitoral demonstrar sua preferência por esse ou aquele candidato é alguém que já morreu por dentro – pode até enterrar que já está fedendo.
Mais do que isso, o voto nulo é um exemplo de sofisticação filosófica, literária e, por que não?, política. Acredito em mula-sem-cabeça e acredito também que o seu Oriosvaldo, lá no interior do Acre, decidiu anular o voto porque tem plena consciência do papel opressor do Estado, do Leviatã, de como as instituições ditas democráticas violam sua liberdade individual e do quanto imposto é, sim, roubo. Acredito também que a Maria engravidou do boto e que o eleitor que anula o voto é um ser superior, que já leu, ouviu falar ou simplesmente interiorizou intuitivamente a máxima bartlebyana do “prefiro não”. Ou seja, ele tem dentro de si (ai!) algo daquela liberdade anárquica e transcendente (além de bem-humorada) que vai contra essa coisa cafona de Estado, festa da democracia e, arght!, voto útil.
Votar nulo também é um exercício de criatividade. A começar pela moda. Porque o eleitor que sai de casa para votar nulo não pode correr o risco de ser confundido com um eleitor do candidato X, Y, Z ou Boulos. Então ele tem de usar a indumentária mais discreta, mais blasé, mais tô-nem-aí possível. Assim, suas roupas refletirão a escolha consciente pela não-escolha. Se, por acaso, você for uma dessas pessoas que nas próximas eleições pretende anular o voto, repare: não existe a menor chance de aquele homem ali na fila, usando sandália de couro e meia soquete branca, votar de outra forma que não nulo. Palmas para ele.
Como não há ato criativo sem alguma dificuldade, o voto nulo é também o mais difícil. Porque, se por um lado você não precisa escolher entre partidos e candidatos, se você não precisa assistir a sonolentos debates nem ler intermináveis, confusos e mentirosos planos de governo, se não precisa decorar duzentos mil combinações para sei lá quantos cargos inúteis, por outro lado você precisa escapar das armadilhas do voto eletrônico. Afinal, o sistema todo pode ser à prova de hackers, como juram de pés juntos as autoridades, mas ele também é feito para que você vote num filhodaputa qualquer, mesmo que por acidente.
Digamos, por exemplo, que você acorde todo alegre e faceiro no dia das eleições, que converse animadamente na fila com uma moça linda que achou sua combinação meia soquete/sandália de couro linda, que entregue ao mesário seu documento com um sorriso no rosto, sentindo uma solidariedade sincera por aquele escravo da democracia, e que se dirija à cabine de votação com aquela sensação incômoda de ser um completo e inequívoco idiota, subtipo brasileiro. Agora você tem diante de si o teclado numérico que usará para expressar toda a sua rebeldia eleitoral, sua sapiência, cultura e eloquência anárquica.
Aí se abate sobre você um espírito religioso e, na ânsia por anular o voto, você digita a idade de Cristo. Sinto muito ser eu a lhe dizer isso, mas você acaba de se foder. Porque inadvertidamente votou no Partido da Mobilização Nacional (PMN). Ah, mas digamos que você seja uma pessoa excêntrica, dessas que têm números-primos preferidos, use gravata-borboleta e suspensórios. Novamente, sinto muito, mas você votou no Partido Progressista (11), Partido dos Trabalhadores (13), no Partido Social Liberal (17) (aquele mesmo!), Podemos (19), Partido Popular Socialista (23), Partido da Causa Operária (29), Partido Humanista da Solidariedade (31) ou no Partido Verde (43).
Meu conselho, neste caso, é apelar para o erótico 69 – pelo menos enquanto algum partido não percebe o potencial eleitoral do sugestivo número.
Por fim, votar nulo é mais saudável. Mental e fisicamente. Mental por motivos óbvios. Quem se aliena é mais feliz. Repare nessas pessoas que se digladiam por política nas redes sociais. Ou mesmo nos pobres-diabos que declaram voto nesse ou naquele candidato. Todos têm aquele ar pálido de quem acredita ser possível ditar os rumos da cidade, estado, país; todos têm as olheiras fundas de quem passa a noite procurando contradições nas falas do candidato inimigo; todos têm aquele fiozinho de baba escorrendo pelo canto da boca de quem se esqueceu de tomar o Gardenal.
Fisicamente porque, ao votar nulo, você se obriga a sair de casa, nem que seja para dar uma volta no quarteirão, admirar as árvores e os mendigos espalhados pelas calçadas e talvez até comer uma coxinha vegana na padaria da esquina – só para descobrir que gosto tem aquela porcaria. No trajeto até a seção eleitoral, você vai respirar o delicioso ar poluído das grandes cidades e, se mora no interior do Piauí, quem sabe você não se depara com um poço d´água razoavelmente potável?
Não, amigo, o voto nulo não serve para invalidar as eleições e fazer do juiz Sérgio Moro o novo presidente, nem para causar o retorno da monarquia e muito menos para dar legitimidade à volta dos militares ao poder. A rigor, o voto nulo não serve para nada – assim como o seu queridinho voto útil. E a graça está justamente aí. Por isso, nas próximas eleições e pelas décadas vindouras, vou anular meu voto e sair da cabine da votação rindo da deliciosa possibilidade de ter votado no 69.
Vem pro nulo você também, vem!
Paulo Polzonoff Jr
Tradutor, jornalista e escritor. Autor de O homem que matou Luiz Inácio. Vive em Curitiba.