Uma das bases de sustentação dos direitos individuais na sociedade moderna consiste nos mecanismos de segurança de informação.
“Onde impera a transparência já não há espaço para a confiança.”
Byung-Chul Han
Em Além do Bem e do Mal, Friedrich Nietzsche nota que, às portas do século XX, a humanidade seguia o curso da história para acreditar que o verdadeiro valor de uma ação residiria no valor de suas intenções. O filósofo alemão percebeu que as mais desprezíveis condutas eram facilmente justificadas pela nobreza de encantadoras finalidades que nutriam ideais de ordem e prosperidade daqueles que pretendiam conduzir ao homem à redenção final.
Relembro esta passagem à luz do caso que monopoliza a discussão deste momento ultrapolitizado. Não se fala em outra coisa no país antigamente conhecido como do futebol. O acesso ao conteúdo de conversas de membros integrantes da operação Lava-Jato tornou-se, tal como a própria investigação, sucesso de público e crítica como raramente se produz no país. Independentemente do conteúdo das conversas, a questão toda revela um sério problema de cibersegurança, urgente e perigosamente negligenciado no Brasil. Contudo, o que se comenta sobre o tema apenas confirma a assertividade da afirmação com notas de Maquiavel de Além do Bem e do Mal: a elevação moral da humanidade se perdeu no ímpeto de justificar qualquer tipo de ação sob o manto da nobreza de propósito.
Ainda que o conteúdo das conversas divulgadas eventualmente seja de interesse público, é preciso discutir com seriedade não somente a gravidade das invasões – e violações de privacidade e do sigilo de telecomunicações – dos celulares das vítimas, mas também dos que concordam em fazer uso de informações decorrentes de uma flagrante ilicitude.
É possível, afinal, que sob o pretexto de combater males que julgam aterrorizantes, os responsáveis pela divulgação das informações obtidas por meios ilegais e em clara afronta a fundamentos de nossa democracia liberal estejam nos atirando a perigos ainda maiores.
A democracia conectada
A sociedade da informação, assentada essencialmente no valor dos dados que transitam em meio digital, opera na confiança dos usuários na confidencialidade de suas ações online. Em outras palavras, a comunidade internacional de usuários da rede (a poética “aldeia global”) acredita na estrutura de telecomunicações que utiliza ininterruptamente. Praticidade, rapidez, baixo custo e segurança, são os pilares que sustentam a adoção maciça da tecnologia que revolucionou relações sociais, transações comerciais, laços familiares e a própria forma de se fazer política. A despeito dos inegáveis contras que decorrem desse mundo novo, há muitos benefícios decorrentes da popularização da Internet. Em especial, vale destacar o ápice da efetivação da liberdade de expressão e do livre acesso à informação.
Não se pretende negar a existência de problemas sérios. A própria confiança exacerbada nos controles de segurança e na boa-fé dos responsáveis pelas plataformas de serviços que utilizamos representa um sério risco. Há uma fé cega em terceiros desconhecidos ilustrada pela adesão quase irrefletida a termos e condições de uso usualmente negligenciados. A despeito do problema de natureza evidentemente individual (embora a tendência mundial seja terceirizar essa responsabilidade), a sociedade parece ter reconhecido a importância destas relações de confiança, a ponto de surgirem, por todo globo, leis de proteção de dados voltadas à proteção da privacidade, liberdades e autodeterminação das pessoas.
Se a ascensão da privacidade está estreitamente relacionada à efetivação de direitos individuais fundamentais como liberdade de expressão, livre associação, liberdade de culto ou exercício de atividade política, pode-se afirmar, sem medo, que uma das bases de sustentação dos direitos individuais na sociedade moderna consiste nos mecanismos de segurança de informação. Essa macroestrutura que garante a segurança das informações que transitam nas relações cotidianas envolve não apenas medidas técnicas de proteção, mas também compromissos pessoais, obrigações legais e valores morais. O caso do “vazamento” das autoridades de diversas esferas do poder revela uma cadeia de falhas que deveria apavorar os membros de uma sociedade tida por livre. Operadoras de um serviço de telecomunicação negligenciaram uma grave vulnerabilidade de segurança, um sujeito com muito tempo ocioso violou proibições legais e interceptou ilicitamente conversas de terceiros e, por fim, um veículo da mídia concordou em divulgar informações de natureza privada obtidas por meio de ato criminoso, uma grave violação à privacidade de dezenas (e indiretamente centenas) de pessoas.
A fragilidade dos sistemas de segurança de informação no Brasil não surpreende. O problema com a falta de capacitação técnica de usuários e prestadores de serviços é objeto de recorrentes advertências de profissionais da área. A possibilidade de um agente malicioso explorar uma vulnerabilidade de segurança tampouco é novidade e existem leis específicas voltadas a tipificar e penalizar a conduta. O que pouco se discute é o grau de responsabilidade que terceiros que fazem uso de informações indevidamente obtidas (“furtadas” caberia bem aqui, mas “interceptadas” parece mais propício) acabam assumindo sobre ações como a dos invasores de Araraquara. Divulgar informações sabidamente obtidas por meios criminosos é correto?
O problema inerente à Interceptação de Dados
De partida vale esclarecer que as informações até o momento tornadas públicas pelos responsáveis pela investigação não sugerem qualquer ação criminosa ou ilícita por parte dos veículos de imprensa que divulgaram o conteúdo das informações obtidas pelos invasores dos celulares das autoridades envolvidas. Salvo venha a ser demonstrado algum tipo de envolvimento dos jornalistas na obtenção do acesso não autorizado, seja orientando o procedimento de interceptação (e quero acreditar que o nome da publicação seja apenas um infeliz case de branding para o jornalismo na era digital), seja oferecendo qualquer tipo de recompensa, a divulgação do conteúdo obtido seria lícito e protegido pelo direito ao exercício da livre imprensa. Contudo, a reflexão que se mostra necessária diz respeito à retidão moral da publicação das conversas resultantes de invasão e cópia – ou, em termo técnico, interceptação – do conteúdo dos aparelhos celulares de terceiros desavisados.
O Direito não ignora que a privacidade e o direito à intimidade poderiam ser empregados por agentes maliciosos como manto de proteção para atividades ilícitas. Desta forma, balanceando garantias fundamentais, em especial o direito à segurança pública e proteção da vida, o ordenamento jurídico prevê a possibilidade de exceção à regra da privacidade com as interceptações telefônicas.
As interceptações de telecomunicações nada mais são do que acesso ao conteúdo privado de terceiros e, como exceção, ocorrem apenas mediante autorização judicial devidamente justificada pela demonstração de finalidade maior que se pretenda alcançar com a quebra de sigilo entre particulares. Em teoria, a interceptação deveria ser aplicada com cuidado e em último dos casos em processos investigatórios. Na prática, se demonstrou uma ferramenta extremamente útil e, portanto, empregado por padrão em qualquer investigação, das mais complexas às mais elementares. Há um possível abuso no emprego da medida, mas a discussão é seria e com bons argumentos entre críticos e defensores.
A despeito das falhas na concretização do instituto, a interceptação ao menos é monopólio da justiça, onde ainda existem direitos e garantias, e são empregadas apenas sob o justo fundamento da proteção da segurança e do interesse público. Todas as demais hipóteses de violação de sigilo de telecomunicações são vedadas e criminalizadas no sistema penal brasileiro. No equilíbrio entre diversos direitos e garantias, o sigilo das comunicações prevalece como regra de ouro.
Uma Ética para a informação na Democracia em Rede
Conquanto a lei já regulamente a proteção de dados pessoais como instrumento para efetivação da privacidade, surge a urgente necessidade de debater também na esfera ética o problema, levando em conta os riscos às próprias liberdades individuais representadas por terceiros com propósitos pretensamente nobres agindo por vias inegavelmente baixas.
Este é ponto que leva à questão da importância da reflexão pela imprensa acerca do uso destas informações. Afinal, qualquer conduta, ainda que não tipificada como crime, mas que de alguma forma coopere com o propósito inicial do agente que efetivamente pratica o ilícito, acaba estimulando novas invasões e coloca em cheque o ambiente de segurança que viabiliza nossas relações sociais na era da informação. Afinal, o sinal emitido à sociedade é de que as portas estão abertas a quem quiser sacrificar a própria liberdade cometendo um crime de invasão de privacidade e nos enviar as informações que beneficiam suas visões pessoais. O resultado é a mais absoluta insegurança e a limitação da sensação de liberdade de expressão e de privacidade.
Aos que entendem que a origem ilícita das informações não deveria ser fator impeditivo de sua divulgação, vale esclarecer que em cibersegurança é reconhecido que os ataques invasivos no mundo digital costumam envolver agentes movidos por ao menos dois de três fatores: habilidade (conhecimento técnico acima da média), recursos (financeiros ou estruturais) e um propósito claro (dinheiro, fim política ou causa ideológica). Ninguém é mais capacitado a ostentar uma conjunção destes três fatores (técnica, recursos e causa) que agentes de Inteligência de órgãos de Estado, em especial, totalitários. Num ambiente de histeria coletiva em que proliferam teses sobre a morte, crise, degeneração ou obsolescência da democracia, um veículo de mídia verdadeiramente preocupado com a manutenção de princípios democráticos deveria se atentar aos riscos de agir contra os interesses do ambiente livre e de confiança recíproca que sustentam uma sociedade de direito.
Fica, em contribuição ao debate na esfera ética, a advertência de Nietzsche que serve de alerta a todos os lados dessa guerra de fins: “quem luta com monstros, que se cuide para não se tornar um monstro ao fazê-lo”.
Norival Silva Júnior
Advogado especialista em Direito Digital.
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