Maurício*
No final dos anos 70 a sociedade brasileira começava a se articular pelo fim do regime militar. Um dos primeiros sinais do avanço foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores, cujas atividades se concentravam no ABC paulista. O PT entrava em cena a partir da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país, para transformá-la. Aproximava-se o fim da ditadura.
Durante uma curta temporada no Brasil, vindo de San Francisco, onde morava, participei de uma manifestação do PT em São Bernardo do Campo, onde conheci Maurício, um militante da ala jovem do partido, a Libelu (Liberdade e Luta), uma ruidosa facção ligada ao movimento estudantil. Naquela tarde em São Bernardo os ânimos estavam acirrados e o confronto com a polícia foi inevitável. Sentado no capô do carro de reportagem de uma emissora de TV, junto a outros jornalistas que faziam a cobertura, eu observava Maurício.
À primeira vista Maurício era uma sombra a mais entre as muitas sombras naquela arena de conflito. Usava uma máscara para se proteger do gás lacrimogêneo, enquanto recolhia as bombas jogadas pelos policiais nos grevistas e as atirava de volta nos meganhas com a ajuda de um pedaço de feltro enrolado na mão. Tirei um par de luvas de couro que trazia na mochila e o lancei em direção. Quando viu cair a seus pés o artigo que mais precisava na operação, Maurício ergueu o sua polegar em sinal de agradecimento e continuou seu trabalho até a manifestação terminar, horas depois, com muitos manifestantes presos e alguns feridos.
Depois que os ânimos serenaram, Maurício e eu caminhamos a esmo pelas ruas áridas de São Bernardo do Campo. Trocamos um breve resumo dos meus 26 anos e dos 21 dele. Descendente de italianos, Maurício fora criado na Casa Verde, em São Paulo. Viajava de ônibus todos os dias para trabalhar na linha de produção da Volkswagen. Deixara o curso de Economia pela metade e, antes de ingressar no Partido dos Trabalhadores, recém-saído da adolescência, já lutava na clandestinidade por um Brasil sem a pobreza e o desamparo dos quais ele mesmo era vítima.
Caminhamos e conversamos enquanto consumíamos os cigarros até quase queimar os dedos. Era preciso uma segunda olhada para descobrir a beleza discreta de Maurício, a graça dos seus gestos e a expressão límpida dos seus olhos que fazia tudo ao seu redor parecer sujo. Do que lhe contei a meu respeito nada o impressionou tanto quanto o brinco que eu usava na orelha esquerda. Quando demos por nós, estávamos no pátio da Volkswagen, depois de entrar por um portão lateral ao qual só os funcionários tinham acesso.
Por alguns minutos intermináveis, sequer nos olhamos, espantados pela proximidade um do outro. Sentados no chão de asfalto, entre fileiras de carros encalhados pela greve, nos beijamos na escuridão, nos acariciamos sem pressa entre palavras brandas, despimos um ao outro devagar, com ternura sossegada e uma felicidade parecida com o amor. Não sabíamos como fazer o que estávamos fazendo, fomos inventando, hesitantes, guiando–nos mutuamente numa mistura de medo e carinho. Aos 26 anos eu era uma enciclopédia de pornografia, mas tão virgem quanto Maurício em matéria de amor. Com Maurício descobri a indecência que é fazer sexo com estranhos. Ainda trago marcas dessas agressões no corpo e na alma. Não importava o que acontecesse depois, eu levaria comigo aquele dia em São Bernardo para recordar para sempre. A descoberta do prazer físico, do gozo sem violência entre iguais, regido pelo coração, me fez, pela primeira vez, me sentir um homem.
O pouco dinheiro que Maurício ganhava na Volkswagen dava apenas para ajudar nas despesas da família. Não sobrava nem para a cerveja. A precariedade do seu vestuário revelava a penúria em que ele vivia. Ao sentar–se não cruzava as pernas para esconder os buracos nas solas dos sapatos. Mesmo no calor mais inclemente, não tirava a jaqueta para não deixar à mostra as camisas remendadas e as mangas que nunca coincidiam no comprimento. Acordava cedo em manhãs geladas, sem roupa de inverno, para panfletar em portas de fábricas, antes do expediente, convocando companheiros a se levantarem contra os abusos e violações dos seus direitos em duas décadas de regime militar.
Apesar da dureza em que vivia, Maurício não aceitava convites nem favores que não pudesse retribuir. Quando lhe propus irmos juntos para San Francisco, ele recusou minha oferta de pagar a passagem. Preferiu vender o pouco que tinha: um pequeno busto de Trotsky de gesso, uma televisãozinha do tempo em que a gente ainda se levantava do sofá para mudar de canal, uma bicicleta surrada e um livro de poemas de Vladimir Maiakovsky. Poucos meses depois de nos conhecermos, Maurício se demitiu do emprego na Volkswagen e, com um vocabulário de meia-dúzia de palavras em inglês, partimos juntos para San Francisco.
Era bem outro o Taizen que encontramos em San Francisco. Como líder espiritual numa cidade que abriga a maior comunidade gay do mundo, Taizen vivia o desafio de apoiar essa comunidade em seu momento mais difícil. Na época a Aids dizimava os homossexuais e o pesadelo era sentido em São Francisco mais que em qualquer outra parte. As perdas eram diárias e, como monge, Taizen passou a ser chamado com freqüência para celebrar funerais.
– Garotos estão morrendo no fulgor da energia”, ele disse no dia em que nos reencontramos. Chegou-se a pensar que a Aids era uma epidemia com preferência sexual, pois só atacava homossexuais masculinos. A doença deixava um rastro de medo. Será que eu estou contaminado? E ele? Devo fazer o teste? E se der positivo, todo mundo vai ficar sabendo? Perguntas como estas, hoje corriqueiras, naquela época devastaram São Francisco. A Aids roubou a alegria da cidade. No lugar, deixou paranóia, confusão e luto numa comunidade ao mesmo tempo obcecada e aterrorizada pelo sexo.
Não havia tratamento. As pessoas contaminadas pelo vírus ficavam à mercê dos golpes impiedosos da doença e quando chegavam aos estágios finais, ninguém queria saber mais delas. Nessa época Taizen teve um encontro crucial. Visitou Jeff Smith, ex-residente da Zen House, que estava com Aids. Sem família em São Francisco, logo que adoeceu Jeff foi acolhido por um casal gay. Inicialmente os rapazes colocaram um quarto à disposição dele. À medida que a saúde de Jeff deteriorava, passaram a provê-lo também com alimentação e assistência médica. Taizen ficou impressionado com o tipo particular de atenção que Jeff recebia: diário, informal e, mais importante, em casa, entre amigos.
Ordenou então que fosse alugado um espaço para receber voluntários interessados em meditação e em ajudar nos cuidados às vítimas da Aids que se hospedariam no lugar. Em poucos meses, na região de São Francisco conhecida como Castro – um aglomerado de bares, boates, restaurantes e butiques – foi inaugurada a Karuna, que em sânscrito quer dizer “compaixão”. Um monge da Zen House foi designado como superior- residente da casa e muitos se apresentaram para ajudar. Recém-chegados do Brasil, Maurício e eu nos oferecemos como voluntários.
Taizen era acupunturista e praticava várias modalidades de medicina oriental. Tomava os vários pulsos dos pacientes nos braços e pernas e inseria agulhas em pontos misteriosos que só ele parecia conhecer. Vendo-o trabalhar, Maurício me perguntava qual seria a idade de Taizen. Eu imaginava que ele tivesse algo em torno dos 40 anos, mas quando sorria seu rosto ganhava as feições de um adolescente. Ao tocar um paciente, em concentração absoluta, séculos pesavam em seus ombros. Havia algo em Taizen que sempre me escapou. Não porque ele escondesse, mas porque pertencia a um mundo pouco familiar, com forças, correntes e regiões próprias. Na única vez em que perguntei sua idade, ele disse às gargalhadas que, somando todas as encarnações, devia estar perto dos dez mil anos.
Com o primeiro aidético ocupando um dos quartos, a Karuna passou a atrair a simpatia externa. Quando alguém morria de Aids na cidade, apareciam na residência cadeiras de rodas, camas de hospital e suprimentos médicos deixados pela vítima. Taizen mandou então um recado à comunidade gay: estava em condições de receber mais doentes. Quando a casa começou a se encher de vítimas desfiguradas pela Aids, muitos voluntários vacilaram e bateram em retirada, aturdidos pelo desafio de conviver com aquela face cruel do sofrimento humano. A Aids era uma prova da vocação democrática da morte quando se trata de dividir a dor.
Para manter-me em São Francisco voltei a escrever para jornais e revistas brasileiros, enquanto Maurício trabalhava numa padaria mantida pela Zen House e aproveitava para melhorar o inglês. A presença de Maurício na Karuna era uma injeção de ânimo. Seu bom humor levava todos a reagirem positivamente. Quando um doente já não podia falar, Maurício permanecia com ele, segurando sua mão durante longos períodos do dia. Em alguns casos, mais que os doentes, eram familiares e amigos os que precisavam de ajuda. Quando o desenlace era inevitável – e sempre era –, parentes e amigos tinham de lidar, às vezes pela primeira vez, com o desafio de encarar a vida sem uma pessoa querida.
Alguns pacientes que atendemos eram retratos da incoerência da Aids. O vírus nunca infectou Ray Jordan, por exemplo, embora ele chegasse a ter vinte relações anais passivas, com parceiros diferentes, numa mesma noite, nas saunas de San Francisco. Mas contaminou Phillip, cujo prazer erótico não era propriamente o ato sexual, mas um tipo estranho de masoquismo: gostava de deitar-se em miquitórios públicos para que outros homens urinassem nele. Philip contraiu a Aids na única vez em que transou com outro homem.
No final do dia eu acompanhava Taizen a um ofurô, banho público no estilo japonês, onde passávamos longos períodos nas salas de vapor, lavando minuciosamente nossos corpos à maneira oriental para tirar a energia pesada que impregnava nossa pele e aliviar a aflição que tudo aquilo representava para nós.
Difícil entender de onde vinha a força que movia Taizen, que o fazia abrir as portas para pessoas horrivelmente enfermas e tratar delas até o último golpe de uma doença que as reduzia a destroços físicos que pareciam causar repugnância às próprias almas. E continuar. No dia seguinte ele estava pronto para repetir tudo com dedicação inabalável. Não era preciso ser um adepto para perceber a importância da meditação na aceitação da calamidade da Aids: um dos pilares do zen é a noção de que tudo o que existe está sujeito a mudança e declínio.
Saber essas coisas, no entanto, não aliviava a dor de perder tanta gente querida, tão depressa. Sofríamos, mas não nos deixávamos abater pelo pânico ou pelo sentimento de que a morte é uma injustiça inexplicável. Com a ajuda de Taizen, procurávamos aceitá-la com serenidade. Para os pacientes muito jovens, porém, era difícil abrir mão dos planos de vida, dos projetos para o futuro. Mesmo à beira da morte, alimentavam a esperança de que seriam poupados na última hora, que uma exceção seria aberta para eles. A presença de Taizen era um divisor de águas:
– Ninguém vai morrer só porque está doente. Todos vamos morrer. Quando aceitamos isso, que podemos morrer hoje mesmo ou amanhã, passamos a morrer a cada instante. Só assim, livres da ilusão de que possuímos nossas vidas, podemos viver cada instante. Pena que tenha sido necessária uma epidemia para nos ensinar isso.
Quando Maurício e eu voltamos dos Estados Unidos a Aids ainda era uma crise distante do Brasil. Logo o círculo foi se fechando. Começaram a morrer conhecidos, depois amigos próximos, até que a doença atingiu Maurício. Mais uma vez acompanhei cada passo da peste, as febres que lhe queimavam as vísceras, diarréias repugnantes que tragavam suas energias, infecções corrosivas. Até que do militante do Partido dos Trabalhadores só restou um esqueleto demente sobre a cama, um monte de ossos embrulhados numa camada de pele suficiente apenas para impedir que sua alma fugisse. Nenhum morto que eu vi parecia tão morto quanto Maurício nos últimos dias de vida. Doía ver a decrepitude a que ele chegou antes de completar 30 anos. A última lembrança que tenho dele foi o dia quando, ainda com os movimentos dos braços, ele me deu a argolinha de ouro que usava na orelha esquerda, com uma tristeza insondável nos olhos por estar abandonando o barco no melhor da viagem. Um pedaço de mim morreu com Maurício.
* Este post é um trecho do romance autobiográfico As flores do jardim da nossa casa (Terceiro Nome, 2007), que é finalista do prêmio Jabuti deste ano.
-
http://www.caldodetipos.blogspot.com paulovilmar
-
Lucas Gamberini
-
Flávia Santos Nyrme
-
Miguel Sirgado
-
Marcos Souza
-
Alan Pedro Zambrona
-
Juão Tavares
-
Juão Tavares
-
Zenaide L. Almeida
-
Wellingsson Souza França
-
Hilquiane Xavier