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“Deus” está de volta

por Daniel Lopes (09/09/2009)

por Daniel Lopes – Com a proeminência nos últimos anos do que se convencionou chamar “novo ateísmo”, muitos (ateus ou não) acabaram ficando com a impressão de que estaríamos vivendo numa gloriosa era de razão e secularismo. Impressão errada, porque quem leu a “santíssima trindade” do novo ateísmo – Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris […]

por Daniel Lopes – Com a proeminência nos últimos anos do que se convencionou chamar “novo ateísmo”, muitos (ateus ou não) acabaram ficando com a impressão de que estaríamos vivendo numa gloriosa era de razão e secularismo. Impressão errada, porque quem leu a “santíssima trindade” do novo ateísmo – Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris – sabe que as obras partiam da premissa de que o secularismo corre risco em várias partes do mundo, de que a oposição à liberdade individual e à ciência por parte de fanáticos religiosos está se acentuando preocupantemente e que, exatamente por isso, os autores se acharam no dever de escrever seus livros, como um ataque à religião, não por esta estar definhando, mas pelo motivo inverso.

Essa impressão equivocada marca presença em God is back: How the global rise of faith will change the world, dos jornalistas John Micklethwait e Adrian Wooldridge, ambos da britânica The Economist – o primeiro, editor-chefe, e o segundo, chefe da sucursal em Washington. No início do livro, ao apontarem estatísticas que mostram o aumento mundial do número de fiéis, o fazem como se isso representasse uma bomba na suposta teoria dos “novos ateus” e que, quer estes “gostem ou não”, a realidade está mostrando que o homem é uma “besta teotrópica”. Citam expressamente os títulos dos livros de Dawkins, Hitchens e Harris¹, mas nenhuma passagem específica que pudesse comprovar o canto da vitória por parte destes intelectuais – porque elas não existem, repito. (Na abertura do terceiro capítulo, os autores afirmam que “Robert Ingersoll foi o Christopher Hitchens da Era Dourada”. Em 1880, Ingersoll proclamou que “as igrejas estão se extinguindo por toda a terra”. Como se vê, a comparação entre os dois, nesse aspecto, é absurda. Dawkins, por sua vez, diz no documentário da BBC “The root of all evil?”, que um dia chegou a pensar que a razão venceria a superstição, mas reconhece que havia subestimado o poder desta última e, portanto, estava errado na previsão – e o documentário é de 2006, mesmo ano de seu livro anti-religião.)

Em relação à tese da “besta teotrópica”, os autores erroneamente acham que serve para comprová-la o atual crescimento da efervescência religiosa. Mas e em momentos passados, quando houve queda no grau de sentimento religioso (pelo menos na Europa, onde ele era altíssimo) – final do século 18, meados do 20 –, o homem não era (ainda) uma “besta teotrópica”? Ou foi tudo apenas uma fuga momentânea de sua verdadeira condição? Afinal de contas, qual a natureza humana? Ser ou não ser “teotrópico”, eis a questão. Por que os sauditas são mais “teotrópicos” que os franceses? Logo se vê que o termo não faz mais sentido do que chamar de “besta rubro-negrotrópica” àqueles que nasceram e cresceram em uma família tradicionalmente flamenguista e que, por isso, se tornaram também eles flamenguistas. Que em geral haja uma tendência à religiosidade é uma obviedade, pelo simples fato de que a maioria dos homens, desde que se tem notícia, cultiva algum tipo de crença no sobrenatural. Daí a sugerir que temos que encarar a religiosidade (e tudo que dela deriva) da mesma forma que encaramos o bipedalismo da espécie vai uma diferença considerável.

Descontados deslizes mais sérios como os apontados acima, God is back é uma excelente leitura, com mais algumas defesas duvidosas (mas de argumentação superior à da “besta teotrópica”, o que equivale a dizer com alguma argumentação) e muitos méritos. Sua maior qualidade é sem dúvida nunca tratar de religião sem perder de vista os fatores políticos. Nesse ponto, é um livro superior a, por exemplo, The end of faith de Sam Harris, na minha opinião o mais fraco dos novos ateus (e atenção!, o título do livro apresenta uma utopia, como o “Imagine a world with no religion” de John Lenon, não o resultado de uma análise de situação). Ao “estudar” a problemática Israel-Palestina, por exemplo, Harris conclui que a violência palestina contra a ocupação israelense não tem qualquer considerável fundamento político, resultando apenas da malignidade de sua religião, e, prosa vai prosa vem, se sai com pérolas como esta: “Os israelenses têm mostrado um grau de comedimento no uso da violência que os nazistas nunca consideraram mostrar e que (…) nenhuma sociedade muçulmana consideraria hoje”. Harris adota essa cegueira voluntária por conta de seu dogmatismo – o estado de Israel, afinal de contas, representaria o secularismo, enquanto que os palestinos… Bem, os palestinos nem estado têm, mas se o tivessem… Bem, eles elegeram o Hamas, não elegeram?). Alan Dershowitz é presença de destaque na bibliografia e na contracapa de Harris, e Dershowitz, como mostrou Finkelstein, é autor de uma mastodôntica farsa acadêmica.²

God is back também tem sucesso ao lembrar como o pentecostalismo estadunidense (que depois se tornaria matéria de exportação) nasceu como um escudo contra os efeitos da modernidade, para em seguida contra-atacar, fazendo um bem-sucedido proselitismo tendo em mãos as armas da moderna tecnologia; e como em diversos momentos dos séculos 19 e 20, ciência, cultura, estado-nação e comunismo tentaram vacinar a sociedade contra o espírito religioso, com dogmatismo e resultados amiúde trágicos. Disse G. K. Chesterton: “When people stop believing in God, they don’t believe in nothing – they believe in anything”. Disse T. S. Eliot: “If you will not have God (and He is a jealous God), you should pay your respects to Hitler or Stalin”. No entanto, observo cá eu, propôr Hitler ou Stalin como alternativas lógicas para quem descarta Deus é, em duas palavras, pura idiotice, mesmo se vinda de Eliot. Para que regimes como stalinismo e nazismo tenham sido “totalitarismos seculares”, seria preciso fechar os olhos para várias de suas características principais. O Estado nazista, se é verdade que derivou sua força em grande parte das pseudociências do darwinismo social e da eugenia, também é verdade que a política de eliminação dos judeus tem profundas bases no cristianismo alemão (no cristianismo como um todo). É assustador que os autores de God is back ponham na conta do secularismo (ou do “Godless Express”, termo deles) até o juramente dos recém-integrados à SS nazista – “Acreditamos em Deus, acreditamos na Alemanha, que Ele criou … e no Führer … que Ele nos enviou”. E o stalinismo? Stalin sem dúvida era ateu, mas o sistema que ele comandava não carecia de caráter religioso. Explorando, como fizeram os czares, a profunda religiosidade do povo russo e sua propensão à se voluntariar para servir nas fileiras de um Grande Irmão que traga ordem e progresso, o regime comunista tinha seus lugares sagrados, de peregrinação, suas estátuas, doutrinas e profetas. Como eu escrevi em texto para o Digestivo Cultural, Stalin investiu contra a “ciência judaica” (Einstein & Cia) e a “biologia burguesa” (Mendel & Cia), e chegou inclusive a reclassificar o aborto e o homossexualismo como crimes.

Em relação à frase de efeito do Chesterton – “Quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, elas não acreditam em nada – acreditam em qualquer coisa” –, Christopher Hitchens já lidou com ela: “Me parece que a crença original [em Deus] provê evidência para ambas as partes da metade final da proposição: uma disposição para acreditar tanto em nada, porque algo não vai existir só porque elas acreditam, e em qualquer coisa, porque uma fé é muito fácil de ser trocada por outra”.³

*

Caso emblemático do revival da fé é a China. As religiões “ocidentais” (que surgiram no Oriente Médio, é sempre importante lembrar) e mais algumas asiáticas sempre foram perseguidas pelo Partido Comunista, mas com a abertura econômica das últimas décadas veio também o estabelecimento de um cada vez mais dinâmico mercado da fé, típico modelo estadunidense. Estimativas conservadoras dão conta da existência de 65 milhões de protestantes no país (localizados principalmente em áreas urbanas), mais 12 milhões de católicos (majoritariamente rurais), mas muitos consideram que o número total de cristãos já rompeu a barreira dos 100 milhões. Lembra God is back que “as maiores religiões do mundo estão atualmente engajadas em uma ‘luta pela China’”. Budismo, taoísmo e confucionismo são as correntes de fé mais toleradas e mesmo incentivadas pelo PC, que enxerga no boom cristão uma ingerência do imperialismo ocidental, através de seus incontáveis missionários (James Dobson, neoconservador e fundador da Focus on the Family, tem 220 milhões de ouvintes fora dos EUA, a maioria na China).

Há ainda cerca de 20 milhões de muçulmanos no país. Estimativas apontam que por volta de 2050 a China poderá ser a maior nação cristã e muçulmana do planeta. Seria interessante (ou sombrio, dependendo dos desenvolvimentos) ver o “choque de civilizações” no final das contas tendo a China como palco principal.

Na Europa o ressurgimento religioso se dá principalmente devido a três fatores. Primeiro, há um influxo de muçulmanos, que mesmo quando se integram razoavelmente bem nos novos países, ainda tendem a agir antes como muçulmanos que como cidadãos do Velho Continente. Segundo, essa imigração tende a reforçar a prática cristã nos nativos, muitos dos quais levavam uma fé apenas nominal antes de se verem em contato cada vez mais intenso com grupos de outra fé. Um terceiro fator decisivo, abordado pelos autores de God is back, é que “a religião européia está finalmente sendo privatizada”, como nos EUA já foi – ou seja, a Europa vê cada vez mais a emergência de um proselitismo agressivo por parte de diversas denominações, que batalham para aumentar ou pelo menos manter seu bocado de seguidores.

O único pilar ainda a impedir uma verdadeira explosão do pentecostalismo na Europa é o estado de bem-estar social, mais forte do que nos EUA, onde a oposição a “esmolas” estatais sempre deixou o campo livre para a “caridade” religiosa. Os autores citam um estudo que mostra como o gasto de igrejas com assistência social caiu 30 por cento entre 1933-39 nos EUA, período em que o Welfare State de Roosevelt foi bastante efetivo. No parágrafo seguinte, lemos: “A religiosidade pode muito bem ser uma resposta à combinação de duas coisas: o caos da modernidade e a fraqueza de outros mecanismos de seguridade social”. (A estas alturas a “besta teotrópica” ficou 150 páginas para trás.)

Mesmo fazendo essas observações entre a relação do welfare (ou falta dele) com os índices de vigor religioso, transparece nos autores uma certa simpatia com o fato de os serviços sociais serem cada vez mais assumidos pela “sociedade civil”, ao invés de serem providos por um Big State. Afinal de contas, nossos perspicazes autores são empregados da bíblia do liberalismo econômico. “O Partido Conservador britânico”, escrevem, “abraçou sua própria versão de compassionate conservatism, argumentando que ‘organizações com base na fé’ deveriam ser encorajadas a fazer mais para prover serviços de bem-estar. Isso se sustenta na ideia de que organizações com base na fé são muito melhores em modificar o comportamento de pessoas problemáticas do que o são burocracias impessoais”.

Huuum… Mas então por que não deixar logo sob responsabilidade das igrejas outros serviços estatais, como a educação? Para que serve uma educação pública se colégios religiosos inspiram muito mais respeito e disciplina nos alunos do que as instituições de ensino estatais, diabolicamente dominada por sindicatos e teorias modernas que buscam entender antes de “modificar” o comportamento de “pessoas problemáticas”? E a economia em caixa, já pensou?

*

John Micklethwait e Adrian Wooldridge dão atenção especial aos Estados Unidos da América por dois motivos: a formação do país propiciou um livre mercado religioso, e é este modelo que está sendo exportado e copiado pelo mundo. Se os revolucionários franceses do final do século 18 viam a religião como uma ferramenta do antigo regime absolutista (monarquia mais aristocracia mais catolicismo), isso não ocorreu na Revolução Americana e nem depois.

Na Europa, igrejas estabelecidas se alinharam com o antigo regime, contra o novo mundo de democracia e liberdade. Na América [quer dizer, nos EUA], onde não havia uma igreja nacional estabelecida, as diversas fés encamparam tanto a democracia quanto o mercado: a única maneira pela qual poderiam sobreviver era atraindo mais clientes. Na Europa, “religião” significava guerra e opressão, Edmund Burke uma vez observou; na América, apresentou-se como uma fonte de liberdade.

A declaração de independência dos EUA, ao separar Igreja e Estado, almejava não apenas proteger o segundo da primeira, mas também vice-versa. God is back defende a tese de que essa separação foi um verdadeiro presente dos Pais Fundadores a Deus. Retórica à parte, parece verdade que ela “introduziu a competição: as igrejas tinham que trazer as pessoas para dentro”, e hoje a fé está inserida em todos os quadrantes do espaço público. No mundo executivo, por exemplo, cada vez mais indivíduos respondem às crises financeiras, não mudando sua forma de atuar, mas buscando refúgio e força para reagir nos valores tradicionais da família e religião.

O curioso é que, não obstante fazerem questão de viver em uma nação under God, o nível de conhecimento religioso geral por parte dos estadunidenses beira a indigência. É entre o assombro e o sorriso que os autores citam as descobertas de uma pesquisa nacional:

(…) os Estados Unidos, como o mais religioso dos países ricos, está saturado de Bíblias – os americanos compram mais de vinte milhões de novos exemplares todos os anos, para adicionar aos quatro que já existem num lar médio americano. Ainda assim o estado de conhecimento bíblico dos americanos é abismal. Uma pesquisa Gallup descobriu que menos da metade dos americanos pode nomear o primeiro livro da Bíblia (Gênesis), apenas um terço sabe quem pronunciou o Sermão da Montanha no Monte (Billy Graham é uma resposta popular), e um quarto não sabe o que é celebrado na Páscoa (a Ressurreição, evento fundacional do cristianismo). Sessenta por cento pensa que Noé era casado com Joana D’Arc. (…)

Apesar disso a vida segue, e segue muito bem para as corporações da fé. O agressivo modelo de pregação estadunidense é, por assim dizer, um software líder em exportação, empregado e adaptado às mais diversas realidades nacionais. Por sua vez, os demais países não se comportam apenas como importadores passivos. Além de devidamente absorverem o modus operandi e, em muitos casos, proporcionarem à pátria-mãe uma verdadeira substituição de importações, empenham-se em conquistar o mundo com suas próprias empresas, digo, igrejas. Aqui mesmo no Brasil há exemplos. Aliás, vocês podem comemorar: a reportagem de God is back dá grande destaque ao produto nacional. Não apenas ao sucesso mais óbvio da Igreja Universal do Reino de Deus no mercado global, mas também ao da filial brasileira da Igreja do Evangelho Quadrangular, com sede nos Estados Unidos. No escritório do pastor Marco Oliver, em São Paulo, sabemos que a seção brasileira já tem dez vezes mais igrejas que a dos EUA, e trabalha com missionários em países como Cuba, Guiana, Itália e Senegal.

De megaigrejas na Coreia do Sul (com forte trabalho missionário junto aos irmãos do Norte e da China) à salvação de almas africanas sob domínio islâmico, o modelo iniciado nos EUA é um sucesso. Estima-se que no mundo existam hoje 500 milhões de pentecostais e outros “renovadores” (como os católicos carismáticos). A mudança na geografia cristã fica clara na seguinte passagem:

Em 1900, 80 por cento dos cristãos do mundo moravam na Europa e nos Estados Unidos; hoje, 60 por cento vive no mundo em desenvolvimento. Em um domingo qualquer, mais católicos romanos assistem à missa nas Filipinas do que na Itália ou, a propósito, em qualquer outro país europeu, e mais presbiterianos escoceses assistem à missa em Gana do que na Escócia; e (…) há a conversão da China para ocorrer. Esta mudança é particularmente dramática no mundo evangélico. Se você está no negócio de caça aos patos, você vai onde os patos estão.

Não que o cristianismo reine sozinho. O Islã está aí. Apesar de sinais animadores vindos da modernização dos muçulmanos da Europa, EUA e Turquia, ainda sobram vastas áreas para as “novas guerras religiosas”, termo que os autores utilizam para designar tanto uma batalha cultural como a ferro e fogo mesmo. A África é uma das fronteiras desse conflito. A Nigéria, em particular, é sintomática. No país, o norte é majoritariamente islâmico, e o sul, cristão. Apesar de iniciativas de diálogo isoladas, desde o início da década de 1990, 20 mil pessoas foram mortas por motivação religiosa. Não bastasse a animosidade cristianismo-islamismo, o país ainda se vê rachado em subdivisões, com sunitas e xiitas se engalfinhando ao norte e, com menor intensidade, católicos e evangélicos ao sul. Ainda na África, em Uganda, o Exército de Resistência do Senhor, milícia cristã, assassinou nas últimas duas décadas 120 mil pessoas, sequestrou mais de 25 mil crianças e forçou 1 milhão e meio de pessoas a abandonarem suas casas. Acelerar o Apocalipse é um objetivo expresso do Exército. Indonésia, Egito, Sudão, Filipinas, Congo, Etiópia e Tanzânia são outros países que apresentam riscos de conflitos religiosos em graus variados.

Potenciais de catástrofes com efeito global também não faltam. Radicais islâmicos não veem a hora de liquidar a família saudita “traidora” e tomar posse das maiores reservas de petróleo do mundo e, possibilidade ainda mais assustadora, sonham em pôr as mãos nas armas nucleares do instável Paquistão.

Não é que faltem motivações políticas em quase todos os conflitos globais que presenciamos hoje. Acontece que, onde marca presença, a religião “torna os conflitos mais difíceis de serem resolvidos. Uma discussão sobre terras (que pode ser dividida) ou poder (que pode ser compartilhado) ou normas (que podem ser contemporizadas) se torna uma disputa em torno de absolutos inegociáveis. Se você acredita que Deus concedeu a Cisjordânia a você, ou que qualquer forma de aborto é assassinato, não é possível qualquer acordo”.

*

Se John e Adrian são bem sucedidos na exploração do novo mapa dos conflitos religiosos, da explosão do pentecostalismo e dos males do secularismo dogmático, são mais fracos ao escrever sobre os supostos bens que a religião proporciona. Por exemplo, em uma das passagens sobre a religiosidade estadunidense, citam e chancelam um estudo do Centro Médio da Universidade de Pittsburgh que teria descoberto que o comparecimento semanal à igreja pode adicionar de dois a três anos de vida ao fiel. Na sequência reconhecem que, sim, é verdade que exercícios regulares podem adicionar de três a cinco anos, e drogas para controle do colesterol podem adicionar de dois e meio a três anos e meio de vida, mas se apressam a dizer: “Mas [ir à igreja semanalmente] é certamente melhor para você do que agnosticismo”.

Ah bom!

Apesar desse “certamente”, não há remissão a qualquer nota no final, com dados de estudos que comprovem a afirmação. Ademais, cabem algumas perguntas: se for mesmo “certamente” verdade que frequentar igrejas adiciona mais tempo de vida do que ser agnóstico, também é “certamente” verdade que o hábito adiciona mais tempo de vida do que viver como ateu? – afinal, o estado de dúvida é menor no ateu que no agnóstico. Seria mais saudável ser agnóstico e praticar esportes regularmente ou ir sempre à igreja e nunca à academia? Ir semanalmente a um clube de leituras ou a excursões de caça é mais ou menos eficaz na adição de anos de vida do que ir à igreja?

Disso tudo, você, religioso, poderia dizer: então pelo menos a religião é algo tão bom quanto a prática de esportes ou participações em clubes de leitura. Não, não é isso que eu estou dizendo. Até mesmo os pedófilos podem viver mais e melhor com seu estilo de vida do que definhando numa prisão. Não, não estou dizendo que religião é tão ruim quanto a pedofilia. Compreendido?

Não que alguém vá deixar de lado seu agnosticismo (ou ateísmo, se for ao caso) e passar a frequentar igrejas semanalmente (aliás, frequentar diariamente pelo menos dobraria o número de anos a mais ao final da vida?) simplesmente porque isso poderia adicionar de dois a três anos de vida. Mas já que os autores resolveram abordar o assunto…

Três páginas após, God is back cita os cálculos de Arthur Brooks, hoje líder do American Enterprise Institute, dando conta de que, no ano 2000, pessoas religiosas deram 3 vezes e meia mais dinheiro para caridade do que ateus e agnósticos, e se voluntariaram mais frequentemente. Se a possibilidade de uns meses a mais de vida não forem o suficiente pra você abraçar alguma fé, aí está um argumento mais forte: ser mais propenso a atuar como voluntário, ser mais caridoso, ajudar o próximo, mudar o mundo. Mas um pouco de verbo não faria mal a esses cálculos. Ou vamos combinar de esquecer que o trabalho de caridade de pessoas religiosas com bastante frequência está associado ao proselitismo puro e simples?, e que existem riquíssimas organizações por trás dessa legião da boa vontade? – a Fundação Nacional Cristã, com sede em Atlanta, já “doou” mais de 1 bilhão de dólares para a promoção de “causas cristãs”.

Além disso, a “solidariedade” religiosa é muitas vezes seletiva. Por exemplo, evangélicos estadunidenses são aconselhados a não dar muita atenção ao sofrimento palestino e de outros árabes, porque a ocupação de toda a Palestina por Israel seria afinal de contas uma profecia bíblica, de cumprimento indispensável para a Segunda Vinda de Cristo. (A propósito, leiam essa matéria do NY Times, de 2006, feita pouco depois dos bombardeios no sul do Líbano.)

Se grupos seculares tivessem propensão a proselitismo e a cobrar dízimo dos irmãos ateus, pelo menos uma parcela desse dinheiro, livre de impostos, poderia ser revestida em caridade. Quem terá coragem de chegar até uma mulher saudita e dizer: “A versão islâmica adotada pelos líderes do seu país não permite que você dirija, entre outros luxos, mas por outro lado muito dinheiro é usado em institutos islâmicos de caridade, na Arábia Saudita e em outros países, portanto não lhe parece claro que o islamismo, ao contrário do cristianismo ou do ateísmo, é mais propenso à solidariedade”?

Como um último exemplo, God is back afirma que “Pesquisas consistentemente mostram que ONGs baseadas na fé têm mais confianças do que as seculares”. Quais pesquisas? Mais uma vez, nenhuma remissão a notas no final do livro. Agências das Nações Unidas, segundo os autores, já teriam comprovado a eficácia e o grau de confiabilidade das ONGs religiosas. De novo, nenhuma fonte, nem um único funcionário de qualquer agência da ONU citado. Não se deve duvidar do poderio das redes de auxílio religiosas, como vimos acima. Mas para afirmar que são mais eficientes do que as ONGs não-religiosas seria preciso dar números. Há menos eficiência e mais corrupção na Cruz Vermelha do que, digamos, no Exército de Salvação? Mais eficiência? Ou a diferença é desprezível? E se for considerável, será devido ao caráter religioso ou não dessas organizações, ou a outros fatores?

A verdade é que, ironicamente, o livro de John e Adrian, que tem incontáveis méritos, serve entre outras coisas para mostrar o quão relevante e necessária é a mensagem de autores como Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Leia God is not great, leia The God delusion e leia também God is back.

::: God is back: How the global rise of faith will change the world :::
::: John Micklethwait e Adrian Wooldridge ::: The Penguin Press, 2009, 406 páginas :::

 

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1. São eles: God is not great: How religion poisons everything, de Christpther Hitchens; The end of faith: Religion, terror and the future of reason, de Sam Harris; e The God delusion, de Richard Dawkins.

2. A farsa de Alan Dershowitz é The case for Israel (2003), um livro eivado de incorreções, deturpações e omissões, esmiuçadas com requintes de crueldade em Beyond Chutzpah: On the misuse of anti-semitism and the abuse of history (2005), de Norman G. Finkelstein.

3. Em Letters to a young contrarian (2001).

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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