Transformando um pé na bunda em arte
por Vanessa Souza
Recebi uma carta de rompimento.
E não soube respondê-la.
Era como se ela não me fosse destinada.
Ela terminou com as seguintes palavras: “cuide de você”.
Levei essa recomendação ao pé da letra.
Convidei 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão, para interpretar a carta.
Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.
Entendê-la em meu lugar. Responder por mim.
Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.
Uma maneira de cuidar de mim.
São com essas palavras que a artista plástica e escritora francesa Sophie Calle justifica sua exposição “Cuide de você”. Após levar um fora por e-mail do também escritor – e sedutor – Grégoire Bouillier, não sabendo ser aquele um adeus definitivo, ou se haveria ainda uma porta aberta, e não tendo coragem de responder a mensagem, ela decidiu, três dias depois, mostrar a carta-rompimento para 104 mulheres das mais diferentes profissões para interpretar o texto — psicanalista, juíza, escritora, jornalista, atriz, cantora, consultora de etiqueta, delegada, jogadora de xadrez…
O resultado incrível desse projeto esteve no SESC Pompéia, em São Paulo, e de 22 de setembro a 22 de novembro estará no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador. (O e-mail de Grégoire está reproduzido ao final deste post.)
“Se ele tivesse voltado, eu teria preferido Grégoire”, disse Sophie na FLIP 209. Mas ele não voltou. E a exposição está fazendo o maior sucesso. Ainda na FLIP, Grégoire, no primeiro encontro oficial com Sophie, lembrou aos literatos que não é proibido deixar alguém, e que todos têm o direito de amar e deixar de amar. Tudo bem, Grégoire, você teve todo o direito, ok?
Em junho deste ano, o escritor explicou à revista Marie Claire que a fidelidade exigida por Sophie deveria ser algo oferecida de livre e espontânea vontade. Não pode ser pedida, nem exigida. “Tem que partir de você, não do outro. No meu caso, ela se tornou um fardo quando passou a ser uma obrigação que a Sophie impunha, não uma vontade natural”, explicou. No final da entrevista, ele alfinetou a ex. “Gostei muito de Sophie, mas, na verdade, tive outros relacionamentos que foram até mais importantes na minha vida”.
Voltemos à exposição. Algumas das interpretações se destacam. A subeditora-chefe, Sabrina Champenois, escreveu: “O inferno, sem os outros. Amante rompe e afirma que motivo é respeito pelo pacto inicial. Honestidade ou covardia?”
A juíza X., que não quis se identificar, pergunta-se: “O que é um contrato? É um acordo voluntário entre duas pessoas, cujo consentimento deve ser livre e ciente, para criar certa situação e organizar de forma precisa as regras segundo as quais funciona”.
Françoise Gorog, psiquiatra, usa um lacanês só compreensível para psicanalistas (ao lado). A escritora de cartas Rafaèle Decarpigny é enfática: “(…) Eu poderia expressar incompreensão, tristeza, raiva. Poderia lhe dizer que apenas o fato de responder essa mensagem seria demonstrar interesse demais. Poderia lhe dizer que poderia ter preferido uma ‘boa conversa aberta’ (?) a essa prolixidade na qual você mergulha, como que para esconder a sua evasão e as ‘razões’ para ela”.
A Condessa Aliette Eischer Von Toggenburg (ao lado), consultora de etiqueta e protocolo, desdenha o e-mail, do início ao fim. Quando Grégoire escreve que gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente, ela dispara: “Sim, claro, culpe a sua mãe, o padre, o presidente, a Madonna, ter lido Don Juan, os tumultos na periferia e sei lá mais o quê”.
Para concluir, a interpretação da criminologista Michèle Agrapart-Delmas. Para ela, o autor do e-mail é incapaz de lidar com seus conflitos, sua escrita é evasiva, e ele quer projetar a imagem de uma pessoa bondosa que não sabe repelir. É somente a angústia, pela qual ele não pode ser responsabilizado, que o leva a escrever essa pequena obra de manipulação e dominação, além do autor ser orgulhoso, narcisista e egoísta. “Não há dúvidas de que a mulher para quem ele escreve o lisonjeava, mas ele não dá a mínima para seu sofrimento, para a frustração produzida pela dor que ele causa”.
São muitas as outras leituras do e-mail, outras tão instigantes quanto às citadas aqui. Vale muito conferir a exposição. Dói um pouco, também. Você já levou um fora por e-mail? Sim? Então faça como a Sophie e sublime. Sublime bem. É a melhor saída. Ah! Sophie disse que a exposição foi uma maneira de ganhar tempo antes de romper com Grégoire. Ela não havia entendido que, embora unilateral, o rompimento já havia ocorrido?
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O e-mail em que Grégoire Bouillier rompe com Sophie Calle
Há algum tempo, venho querendo responder seu último e-mail. Na verdade, preferia dizer o que tenho a dizer de viva voz. No entanto, vou fazê-lo por escrito.
Você já pôde notar que não estou bem ultimamente. É como se não me reconhecesse em minha própria existência. Sinto uma espécie de angústia terrível, contra a qual não consigo fazer grande coisa, exceto seguir adiante para tentar superá-la. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a “quarta”. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as “outras”, não achando logicamente um meio de vê-las sem transformar você em uma delas.
Pensei que isso bastasse. Pensei que amar você e que o seu amor — o mais benéfico que jamais tive — seriam suficientes. Pensei que assim aquietaria a angústia que me faz sempre querer buscar novos horizontes e me impede de ser tranquilo ou simplesmente feliz e “generoso”. Pensei que a escrita seria um remédio, que meu desassossego se dissolveria nela para encontrar você. Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições nem sequer de lhe explicar o estado em que mergulhei. Então, nesta semana, comecei a procurar as “outras”. Sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Nunca menti para você e não é agora que vou começar.
Houve uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,…) e compreensível (obviamente…). Com isso, jamais poderia me tornar seu amigo. Você pode, então, avaliar a importância de minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante de sua vontade, ainda que deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre os seres e a doçura com que você me trata sejam coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você do modo que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.
Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que, você sabe tão bem quanto eu, se tornou irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.
Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide-se.
Grégoire
crédito das fotos: a primeira é do site da Flip.
as outras duas são de Vanessa Souza, a partir
das peças expostas em São Paulo.
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