por Bruno Cava
Citação apócrifa.
Por reducionismo ou ignorância, costuma ser atribuída a Nietzsche e/ou a Dostoiévski, mas nenhum dos dois sequer a esboçou.
N. escreveu sobre a morte de Deus no livro Gaia Ciência. O personagem do louco anuncia que Deus morreu, que o matamos, que erigimos monumentos fúnebres em seu réquiem (as igrejas). Para ele, assassinar Deus foi uma ação grandiosa que pode inaugurar “uma história mais elevada do que toda que jamais existiu!”. Mas o homem do século 19 ainda não está preparado, e o profeta insensato desanima-se.
No romance Os Irmãos Karamázov, o irmão do meio, Ivan, literato cínico e cético provocador, fala: “Tudo é permitido. À noite com o assassino: — Vê, meu amigo, Cristo foi pura e simplesmente um homem comum, como qualquer outro, só que virtuoso.” A partir daí, outros personagens vão desenvolver a fala. Rakítin irá imputar a Ivan a frase: “Se não existe a imortalidade da alma, então não existe tampouco a virtude, logo, tudo é permitido.” Mais adiante, o diabo — duplo dramático do intelectual — dará mais uma contribuição, considerando como sua a declaração: “Não há virtude se não há imortalidade.”
Contudo, nenhum dos dois autores, nem qualquer dos personagens do panteão, disse algo como “Se Deus está morto, então tudo é permitido.” Nem poderiam. Seria reduzi-los à vulgata mais tacanha.
Para N., Deus morre quando a civilização conclui pela irremediável ausência de valores e sentidos definitivos. Quando descobre que “sentido da vida” é uma sentença absurda, porque “sentido” e “vida” não se conjugam entre si. As ideias modernas contém um erro na origem, cujo desenvolvimento leva inexoravelmente a um clima romântico de descrença generalizada. Percebe-se afinal que não pode haver instância transcendente com direito de julgar a vida — todos os ismos erraram.
Menos que passividade e fatalismo, que o filósofo atribui a Schoppenhauer e seu “budismo ocidental”, para N. isto significa que a vida é mais importante do que a moral, do que os valores que pretendem julgar aquela. O caso não é avaliar a vida pelos valores, mas os valores pela vida. É ela, primeiro de tudo, quem transvalorará os valores. Não se trata de jogo de palavras, mas de uma declaração de liberdade ontológica. Ela confere à criatura uma potência além da finitude e da necessidade, além das definições e injunções do homem, ou seja, além do próprio homem. Nasce o super-homem, que ama o destino imanente a si mesmo.
Para D., a conclusão do “tudo é permitido” é rechaçada ferozmente ao longo de toda a obra e com muita agudeza em Os Irmãos Karamázov. Para o autor, o ser humano se constrói somente na interação com os outros. O campo relacional precede a essência individual. Existência antes da essência. E os personagens de D. são pessoas reais transfiguradas na literatura, sem jamais renunciar ao caráter múltiplo e inacabado que os encarna no texto. A essência do homem só se concretiza na alteridade, e por isso o amor mundano condiciona a existência ética. Justifica-a no sentido da terra, na costura de corpos e afetos capaz de dar sentido aos atos e valor à realidade humana.
Para N., o cristianismo matou Deus. Seja Deus na expressão religiosa judaico-cristã, seja Deus nos ideais modernos do humanismo e da ciência positiva. O anticristo é o único e verdadeiro cristão. Porque faz renascer Cristo na sua afirmação radical da vida, que por sua vez é o sentido de si mesma e criadora de todos os valores. Um Deus transfigurado, um deus dançarino, um deus-artista. Assim, Deus não está morto. Está livre.
Para D., mesmo que Cristo estivesse errado, que ele não tivesse existido, devemos ficar com ele. Pois Cristo implica a conversa interior que inventa o outro e eu mesmo no processo dialógico. D. descrê no Deus transcendente assim como rejeita o narrador onisciente. Tal qual um Jesus mundano e revolucionário, coloca-se junto de seus personagens — aqui, no sentido da terra, através do discurso indireto livre. O criador está com as criaturas e se faz presente nelas e com elas, porque é, justamente, a sua multiplicidade. Isso resta claro ao final do capítulo “O Grande Inquisidor” (também publicado à parte, como single), quando o messias terreno beija o inquisidor. Um beijo de amor no grau máximo: afirmativo e desprendido. Deus não está morto. Deus é o outro.
Tanto D. quanto N. respondem com extrema inteligência, arrisco dizer, à questão moral do “tudo é permitido”. Um traçando uma ética da potência, da criação, da arte. O outro por meio de uma ética do amor terreno, e da alteridade como poder constituinte. Duas éticas potentes contra uma moral impotente. Um e outro desviando a perspectiva da pergunta moral que quer outorgar a autoridade e a submissão. E cuja resposta, para driblar as vivandeiras do bem e da verdade, precisa deslizar de suas premissas enviesadas e reinstaurar o problema em outros termos.
Talvez quem tenha formulado, às últimas conseqüências, a querela do “tudo é permitido” tenha sido o Marquês de Sade, com seus libertinos ateus, furiosos, pusilânimes, insidiosos. Nesse sentido, Nietzsche e Dostoiévski retrucam-lhe à altura, sem qualquer moralismo.
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PS. Este breve ensaio ocorreu-me como comentário a um post da amiga Rayssa Gon no (ótimo) blogue Bule Voador. Refiro-me ao post “Por que você ainda não se matou?“, quando um dos primeiros a comentar atribuiu a citação em pauta a Nietzsche.
PPS. Por outro lado, até como autocrítica, acho que o ateísmo em si, quando desvinculado de políticas concretas ou sistemas éticos, é estéril. O ateísmo pelo ateísmo é ponto de partida e não linha de chegada. Chega a ser uma armadilha para rebeldes de primeira hora, tanto quanto assumir acriticamente iconoclastas como Nietzsche, Cioran ou Debord. Depois do deslumbramento, ficar só no ateísmo é como recusar-se a sair da puberdade filosófica, e dormir no jardim da infância do pensamento e da liberdade.
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