Wer denkt, ist nicht wütend und wird auch nicht agressiv.[ref]Quem pensa não está enfurecido e tampouco fica agressivo.[/ref]
Theodor W. Adorno
por Diego Viana – Em Roissy, para esperar a decolagem, comprei o suplemento do Monde dedicado ao Brasil. Não terminei a leitura, mas já pude constatar que é melhor do que o número semelhante do Point, publicado há coisa de três meses, em que pesem números bastante desatualizados e o recurso a fontes pouco confiáveis. Lá estão os inescapáveis elogios ao desempenho econômico do país; uma matéria sobre Eike Batista – parece que os gringos têm fixação pelo “Sr. X”; um arrazoado de opiniões sobre Lula, o indivíduo, não a figura histórica; trechos da carta de Caminha, de Zweig e de Gilberto Freyre; e por aí vai, até o gran finale em que Fernando Henrique Cardoso tenta puxar a sardinha para o seu lado. Resumindo, é mais uma manifestação internacional do reconhecimento ao momento brasileiro, mas temperada com ressalvas, em geral, muito pertinentes: a recusa em punir os tiranos de 64-84, torturadores em particular; o custo-Brasil, com destaque para a burocracia, simbolizada por excrecências tipicamente nossas, como a “firma reconhecida” e a “cópia autenticada”; a desigualdade persistente, a baixa qualidade da educação básica e, sobretudo, as amarras de uma constituição prolixa. Em todo caso, a conclusão geral é muito positiva. Pinta-se o retrato de um Brasil que encontrou o caminho para enfrentar e debelar seus maiores problemas. No julgamento da equipe francesa, não é uma ascensão fictícia.
Muitas horas depois, desembarco em Guarulhos e descubro que, para a grande maioria das pessoas, vamos dizer assim, “do meu círculo”, nada disso existe. (Que porcaria de círculo eu tenho!) Não é que seja mentira. Simplesmente não existe. A verdade inquestionável, nesse círculo, é que o Brasil se divide em três grupos: “nós”, “os ignorantes” e “os intelectuais vagabundos”[ref]Há quem queira me excluir de “nós”, só não sei se sou “ignorante” ou “intelectual vagabundo”. Bom, vagabundo, às vezes sou, não posso negar.[/ref]. Esses últimos, paradoxalmente, “não sabem de nada” porque vivem no Mundo da Lua, um estranho universo em que afirmações requerem argumentos e dados concretos permitem extrair conclusões embasadas. “Os ignorantes” são todo mundo que não percebe, como “nós”, ou não quer saber, que o país está entregue a “uma corja de ladrões, despreparados, totalitários, terroristas, vagabundos” e uma série de adjetivos que, quem perder tempo analisando logo verá, se contradizem freqüentemente. Para “nós”, os números são todos falseados. É evidente que os impostos aumentaram insanamente, a economia em geral está à beira do abismo, a violência explodiu recentemente e (essa é a melhor de todas) Arnaldo Jabor foi demitido da Globo porque desagradava ao governo (?!). “Nós” sabemos muito bem que as pesquisas de opinião são manipuladas pelo Estado todo-poderoso, porque nenhum de “nós” foi entrevistado. “Nós” estamos encurralados. “Nós” temos que tomar uma atitude…
Aonde pode levar esse discurso, já se sabe. Aliás, mais de uma vez o país já sentiu na carne os efeitos da paranóia em política. Sabemos bem como a tirania pode fazer sangue rolar e pode esmigalhar o futuro de um país. Mas não tem, assim, tanta, tanta importância. Muitos de “nós” já começam a achar que um pouco de sangue na rua não faz mal, afinal, as vítimas vão ser os “intelectuais vagabundos”, sobretudo aqueles que, “ignorantes” que são, se entregarão ao “terrorismo”. Não é que “nós” estejamos propondo um Putsch (de novo), mas bem que da última vez em que o “mar de lama” transbordava de Brasília ou no Rio, os militares nos salvaram de um “perigo”, né? – Não estou inventando nada disso. É assim que pessoas até ontem doces, cultas e ponderadas se tornaram pilhas de nervos ambulantes, prestes a explodir, ter infarto, fazer passeata em Ipanema.
Nem preciso dizer que esse “nós” do meu círculo é um meio social bastante restrito e específico. Alguns diriam que é “a elite”, até, para citar o insuspeito membro do PFL[ref]Eu me recuso a chamar aquele partido de democrata.[/ref], sr. Cláudio Lembo, “elite branca perversa”. Hermann Kahn, ao citar nos anos 70, a sensação de desamparo de uma camada social privilegiada diante da ascensão de grupos até então inferiores, é um pouco mais preciso: “classe média confortável”, ou seja, alta. Mas não é precisamente nem uma coisa, nem outra, no caso específico do “nós” encurralado por uma reconfiguração radical da estrutura social brasileira. O “nós” em questão inclui gente que nem é elite, nem classe média alta, mas que se sente – difusamente, bem entendido – dono da situação com um certo mecanismo de funcionamento do país. Mesmo que, nessa situação, “nós” passemos perrengue. O importante é que não venham desestabilizar a tênue linha em que “nós” nos equilibramos nesta vida.
Ou seja, esse “nós” se refere a um público conservador no sentido mais banal do termo. Precisa conservar uma certa configuração do campo social, em que alguns de “nós” são mais privilegiados, outros menos[ref]Em geral, os “ignorantes” são bem pouco privilegiados.[/ref]. O que une o grupo como ente político é o conforto de viver num mundo em que sabemos viver, mesmo que reclamemos dele dia e noite. Não é um conservadorismo econômico, necessariamente. Muitos de “nós” estão bem melhor do que antes (mas é graças a nossos esforços e talentos individuais). Nem é questão de moralismo, mesmo se 9 entre 9,5 de “nós” não suportam ouvir falar em aborto ou casamento homossexual. A força centrípeta que “nos” garante a coesão é uma sensação inconsciente de que estão tirando de “nossas” mãos um país que deveria “nos” pertencer e, de fato, “nos” pertencia. E foi a “corja” dos “ignorantes” que o tirou de “nós”, ajudados por esses infames “intelectuais vagabundos”.
Até aqui, acredite: nada de mais. A existência de um tal grupo, enquanto restrito e minoritário, é perfeitamente normal e legítima em qualquer democracia. Pior seria se ele não existisse: seria sintoma de estagnação de um país que não estaria se transformando em nada. Ironicamente, o processo democrático precisa, para ser ele mesmo, incluir mesmo as forças anti-democráticas. A gravidade da situação se revela em outro plano, justamente o da linguagem. Que toda uma categoria social tenha se convertido ao discurso da raiva, do preconceito e da incitação à violência, voilà, isso é perturbador. Isoladamente, é normal que haja aqueles que pensam e fazem política com o fígado, no lugar do cérebro. É coisa de quem não entendeu a diferença entre seus próprios apetites (leia-se interesses) e o modo adequado de colocá-los em pauta no processo decisório da existência coletiva, da “coisa pública”. É questão de tino político, que ninguém é obrigado a ter. Eu, por exemplo, não tenho quase nenhum, só o suficiente para não raciocinar com o fígado.
Falando nisso, hoje mesmo assinalei para um amigo que ele estava, justamente, raciocinando com o fígado. Sua réplica foi imediata, em tom inflamado: “Não, com o coração!” Ele queria dizer que estava tratando de ideais, convicções e tal. Pois. O problema é esse mesmo. O coração não pensa. Ele idealiza, sonha, se apaixona, mas se você lhe comandar que pense, ele recorre imediatamente ao órgão pensativo mais próximo. Como o cérebro está la em cima e o estômago demora a digerir as coisas, a tarefa acaba invariavelmente entregue ao fígado. E ele faz um estrago. Não é que existam pessoas imunes ao deslize de, eventualmente, recorrer a esse órgão tão importante para assessorar a cabeça em suas tarefas mais desafiadoras. Tomemos um exemplo recente: o presidente Lula, que, por muitos anos, ficou mais conhecido por suas manifestações hepáticas que por seus raciocínios políticos, embora sua capacidade de articular com sagacidade, na “hora do vamos ver”, fosse perfeitamente reconhecida. Pois bem, Lula não agüentou, ficou com “coceira para falar”, e acabou dizendo em público que o PFL (ver nota acima) precisa ser extirpado da política brasileira. A reação foi imediata, retrataram o presidente como um ditador em potencial, ignorando tantas vezes em que figuras democráticas de nosso país manifestaram interesse em extirpar o PT da história nacional, e assim por diante. Mas o que interessa é o seguinte: isso não é, de fato, coisa que se diga em público. Lula se exaltou, largou a inteligência política e se meteu a discursar a partir do fígado. Ninguém duvida que o lugar de um partido coronelesco como o PFL deveria, e deverá, ser o museu da história da política brasileira, junto com os PRPs da vida. Porém, quero chamar a atenção para o que há de mais significativo nessa história toda. Claramente, o PFL já está sendo extirpado da política brasileira. E não é por discursos hepáticos, mas pelo novo recorte social e político que o governo Lula, com a cabeça, e não com o fígado, vem implantando no país.
Mas volto ao assunto, que é o fígado como órgão político primordial, não como acessório pessoal e eventual. Realmente, se a linguagem extremada, para não dizer desvairada, é compreensível ao nível individual, quando se generaliza para todos “nós”, é sintoma de algo grave e digno de atenção. E isso em vários níveis. O primeiro é o deslize, o processo de alienação de um sem-número de pessoas até ontem lúcidas, capazes de embasar argumentos e pensar abstratamente e a longo prazo. Por algum motivo, e desconfio qual seja (voltarei a isso), essas pessoas preferem largar sua lucidez e partir para a ignorância, para a linguagem hepática, amarga e virulenta.
Não vou me estender no segundo, que outros já trataram muito melhor do que eu poderia tratar e é, em certa medida, derivado do primeiro. Como é possível que um intelectual da estatura de Fernando Henrique Cardoso tenha se rebaixado, já gozando da glória de ter sido presidente, a escrever artigos delirantes e capengas como aquele sobre o “subperonismo” e esse último, comparando Lula a Mussolini? Não precisa conhecer semiótica para reconhecer: debaixo da camada translúcida de frases bem construídas, ei-lo, o fígado verborrágico que esperneia. E não é só. Enquanto escrevo, descansa sobre minha mesa um artigo tirado do livro Desenvolvimento Capitalista no Brasil, editado pela Unicamp. O artigo se chama “Ciclos e mudanças estruturais na economia brasileira do pós-guerra” e foi escrito em 1981 por um economista de nome José Serra. Guardo esse artigo[ref]Em xerox, a polícia carioca que não me leia. Eis a referência completa: Desenvolvimento Capitalista no Brasil, volume 1. Campinas, Editora Unicamp, 1998. Org.: Luiz Gonzaga de Melo Belluzzo.[/ref] como exemplo de como uma pessoa pode mudar, abrir mão de sua biografia e até de sua competência técnica, em nome de uma corrida presidencial em que ele, outrora autor de artigo como esse, agora não representa muito mais do que a voz do grande fígado nacional. É incrível que esse economista esteja hoje se descabelando (sem referências maldosas) por causa da Bolívia, por exemplo. Se o PSDB deixou de ser o partido de Montoro e Covas para se converter em ninho de Sérgio Guerra e Arthur Virgílio, é porque o partido estagnou nos anos 90[ref]Ainda estou preparando um texto sobre essa década, que gosto de chamar de “Era Yuppie”.[/ref] e perdeu toda a capacidade, que teve um dia, para um discurso que não seja meramente hepático. Uma lástima, uma perda para o país.
Mas o nível realmente fundamental é o terceiro. Aqui se jogam as partidas significativas de fato, do ponto de vista político e social – além de alguns outros. Um indicativo particularmente confiável de que algo está fora de lugar, no plano cognitivo como no expressivo, é uma estranha repetição de temas e termos. Quero dizer, quando pessoas que não se conhecem começam a expressar rigorosamente as mesmas opiniões, em áreas geográficas e sociais incomunicáveis, com panos de fundo antagônicos e, pior, com as mesmas palavras, rigorosamente as mesmas frases, mecânica e automaticamente, atenção! Os bordões brotam das bocas como se produzidas por um mesmo conjunto de cordas vocais. Isso indica que, de fato, essas ideias todas têm uma fonte comum, não simplesmente (o que seria normal) em seus princípios fundamentais, mas em cada detalhe e até no formato da expressão.
Duas interpretações podem ser oferecidas para essa estranha coincidência, com vetores opostos. Primeiro, podemos imprecar contra a indústria da mídia e argumentar que o pensamento de toda essa gente – “nós”, no caso – é induzido por uma outra instância, provavelmente a mídia, instrumento por definição capaz de disseminar uma mensagem e uma forma de pensar. É a leitura que muitos têm feito, cientes das estruturas corporativas que sustentam as manchetes e chamadas televisivas. Conclusão: se “nós” fazemos política com o fígado e reproduzimos acriticamente uma série de ideias pré-formatadas e superficiais, é resultado do bombardeio midiático que “nós” sofremos.
Mas eu prefiro ressaltar uma segunda leitura. Para usar uma formulação algo espinosana, podemos dizer que o motivo para tanta coincidência expressiva é que “nós” cedemos nosso poder de ter ideias e opiniões políticas a outrem. Funciona assim: temos uma vaga noção do que queremos – manter nossa posição no mundo, ser representados por alguém em quem reconheçamos imediatamente a estrutura das coisas que nos satisfaz; não sabemos muito além disso, a não ser que o caminho que os eventos tomaram nos últimos tempos vai em direção contrária à que nos favorece. “Nós” precisamos de um discurso comum[ref]Quase escrevi “coerente”, mas… deixa pra lá.[/ref], só que não temos lá muita base de interesses compartilhados, a partir da qual poderíamos erigir esse discurso. Ora, mas há alguém disposto a resolver nosso problema. Oferece-nos o discurso, a figura representativa encarnada num candidato pronto para repetir nossos mantras, e ainda um alcance nacional que nos transforme em algo verdadeiramente definido, um “nós” autêntico e específico. O que nos é exigido em retorno é a manutenção de um certo poder, business as usual e por aí vai, que já estamos perfeitamente predispostos a ceder, con mucho gusto. Bem satisfeitos, deixamos a eles a formulação tanto das estratégias quanto das táticas, recolhemos as senhas e repetimos, inconformados, as palavras de ordem. Do cérebro ao fígado em dois segundos.
A princípio, nada de novo em termos políticos. Em maior ou menor escala, grupos estabelecidos sempre incorporam e representam tendências e interesses políticos difusos, conferindo-lhes um rosto mais preciso, definido nos bastidores partidários. A mídia, por sinal, sempre foi instrumento político, e não imagino como poderia deixar de o ser, essa indústria que detém uma das maiores forças da política: o controle da informação. Se há algo de grave, é que no Brasil de hoje praticamente todos os veículos juram pela própria morte uma isenção e uma imparcialidade em tudo inverossímeis.[ref]Também é tema para outro texto.[/ref] É humilhante – e sai caro – ter de recorrer a veículos estrangeiros para ler alguma objetividade sobre meu país.
“Nós” somos um caso à parte, porém. Em termos práticos, o alcance de nossa política hepática é bastante restrito. Afinal, o delírio histriônico necessário para nos unir como grupo (você não esperava que um mesmo projeto de país “nos” unisse, esperava?) tem um alcance muito restrito. Afinal, só atinge aqueles que já estavam dispostos a ser “nós”, e o número de membros potenciais do grupo é constante. O maior efeito possível seria criar um “Tea Party” brasileiro, esse que aqui costumava ser chamado de “lacerdismo” e já teve conseqüências sinistras mais de uma vez.
Por outro lado, que eu me lembre, todas as outras vezes em que parcelas da sociedade entregaram todo seu potencial de ação política a outrem, sujeitando-se a fazer política a reboque e com o fígado, tratava-se de uma camada depauperada (populismo) ou humilhada (fascismo), normalmente ambos. “Nós” não somos nada disso: temos uma condição de vida confortável, temos curso universitário, ninguém é mais altivo e orgulhoso que “nós”. Isso é o que há de mais impactante: não são “os ignorantes” que estão agindo como gado, somos “nós” que estamos agindo como ignorantes agindo como gado. “Nós”, que melhor deveríamos conceber o futuro do país; “nós” que deveríamos ter a melhor compreensão do que está em jogo na política; “nós” que deveríamos ler melhor do que ninguém as entrelinhas da imprensa… “Nós” abdicamos de toda inteligência e de toda serenidade em nome de uma campanha hepática.
Resulta que o país se torna não propriamente acéfalo, mas “hemicéfalo”. A ausência de projeto alternativo para o país é mais grave do que parece.[ref]Idem.[/ref] Primeiro porque todo modelo se esgota, mais cedo ou mais tarde, e o atual também se esgotará. E quem haverá de implantar, ou pelo menos conceber, o próximo? Não serão os hidrófobos, espero, Deus nos livre e guarde. E segundo, porque as falhas e insuficiências da gestão corrente não têm quem as aponte, já que a oposição está ocupada em vociferar e parece não saber fazer outra coisa. (Mas antes sabia. Não faz mais porque dá trabalho e leva tempo.)
Para terminar, cabe sublinhar os riscos inerentes ao abuso do fígado: cirrose, hepatite, câncer. À medida em que o tom vai subindo, a bile vai se acumulando e agredindo esse órgão tão imprescindível. Enquanto houver vazão (eleitoral, neste caso), tudo bem, do ponto de vista da saúde. Mas e depois? Quando a ventania amainar, quando os receptáculos de “nossa” potência de ação política voltarem a seus negócios usuais, se adaptarem à nova situação – eles sempre se adaptam –, quando eles “nos” abandonarem, como fatalmente vai acontecer? O que vai restar para “nós”? Pois bem: a cirrose, a hepatite, o câncer. “Nós”, como grupo e como indivíduos, desamparados e subrepresentados, corremos o risco de nos desmilingüir por dentro e por culpa “nossa”. E isso pode ser muito traumático.
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