por Maurício Santoro
No fim da noite de última quarta-feira a Câmara dos Deputados aprovou a criação de uma Comissão da Verdade para investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, embora a ênfase deva ser na ditadura militar de 1964-1985. Este tipo de instrumento tornou-se comum: de meados da década de 1970 até hoje foram instaladas comissões assim em cerca de 30 países que passaram por períodos autoritários e/ou de guerra civil, sobretudo na América Latina e na África. O Brasil é das poucas exceções entre os principais países dessas regiões a nunca ter tido algo do gênero. O projeto de lei aprovado pela Câmara ainda tem que passar pelo Senado.
O ponto comum entre todas as comissões é sua tarefa de levantar informações e esclarecer os fatos com relação a épocas de violência política. A maioria delas foi criada logo após o encerramento desses períodos, quando ainda havia muitas coisas obscuras e grande desconhecimento da sociedade sobre o que tinha ocorrido.
No Brasil, a ditadura acabou há mais de 25 anos e uma série de estudos, reportagens e relatos foi bastante eficaz em investigar o funcionamento do aparato repressivo, desde o trabalho pioneiro da Igreja Católica na década de 1970, ainda durante a ditadura. A função da Comissão hoje é acima de tudo política: dar uma resposta oficial, do Estado, aos crimes cometidos no período. Embora restem questões importantes a esclarecer, como a localização dos cadáveres dos guerrilheiros mortos no Araguaia.
Há pelo menos dois pontos controversos com relação à criação da Comissão. O primeiro é a acusação de que ela seria enviesada e levaria em conta apenas a perspectiva dos ativistas de esquerda mortos ou torturados na ditadura, mas que fecharia os olhos às atrocidades cometidas pelos grupos armados marxistas, como atentados a bombas e assassinatos. A segunda é que seria um tipo de disfarce do governo para iniciar processos judiciais contra militares e ex-autoridades do regime autoritário.
Acusações de parcialidade política foram freqüentes em todos os países nos quais houve comissões da verdade. Creio que o melhor que se pode afirmar é que seus trabalhos têm o mérito de provocar o debate na sociedade, e inclusive de dar voz às vítimas do terrorismo de esquerda, seja por depoimentos na própria Comissão, seja pela discussão na imprensa.
Quanto ao segundo ponto, algumas comissões serviram de base para a instauração de processos judiciais, em particular o trabalho da equipe argentina, que foi usado no julgamento às juntas militares, em meados da década de 1980. Já na América Central, as audiências não resultaram em ações legais e seu funcionamento foi exclusivamente dedicado à memória histórica. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal negou argumentos que procuravam invalidar ou restringir a Lei de Anistia promulgada em fins da ditadura, em 1979. O projeto de lei aprovado pela Câmara torna obrigatório o depoimento de funcionários públicos – civis e militares – à Comissão, mas proíbe que ele seja usado em processos judiciais.
Um lado pouco abordado na discussão é a influência do contexto internacional, em particular na América do Sul. O Brasil tem sofrido cobranças das sociedades vizinhas e de organizações regionais, como a OEA. Afinal, o país tem ambições de liderança global que passam também por temas ligados à democracia e aos direitos humanos, a cuja defesa se comprometeu por meio de diversos tratados diplomáticos. O tempo do mundo mudou, e o Brasil é pressionado a acertar seus ponteiros com as novas tendências.
O projeto aprovado pelo Congresso foi fruto de negociações entre governo e oposição, com emendas do DEM e do PSDB. Foi muito importante, aliás, o apoio de sete ministros e secretários dos Direitos Humanos dos governos FHC, Lula e Dilma ao projeto. A Comissão brasileira será criada com bem menos força e recursos do que as que foram instaladas em países vizinhos. O processo político, naturalmente, está só começando. Os próximos passos serão a tramitação do projeto pelo Senado, a escolha dos integrantes do órgão (que não podem ter cargos em partidos ou no governo, nem terem se envolvido diretamente nos fatos a serem investigados), a definição de seu orçamento e de seu ritmo de trabalho, e como imprensa, movimentos sociais e pesquisadores acompanharão suas atividades.
Aqui está um abaixo-assinado online de apoio à criação da Comissão.
E este é um excelente livro de política comparada que analisa mais de 20 comissões da verdade em diversos países.
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Bright Kapisâba Netto
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Debora Rosa