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Gainsbourg, o herói sujo

por Pedro Gabriel (16/09/2011)

Serge ressurge, vivo, na interpretação magnífica de Eric Elmosnino em filme tecnicamente perfeito

por Pedro Gabriel

-- Jane Birkin e Serge Gainsbourg --

 

A echarpe e o chapéu coco seriam insuficientes, mas era todo o arsenal de que Olia Ginsburg dispunha para lutar contra o inverno parisiense que naquele ano havia reinado rigoroso pelos domínios gauleses. Com estes atravessara a cidade em direção a um prédio abandonado em Pigalle, quartier do baixo meretrício, movida pelo resoluto intuito de fazer uso dos serviços de uma clínica abortiva improvisada.

Imigrante russa, judia, esposa de um músico desempregado e mãe de uma menininha que já passava por privações, não via outra alternativa para a sua sobrevivência senão a interrupção da gravidez. Repassava na mente seus justos motivos no momento em que, deliberada, entrou corajosa na sala de procedimentos. Inspecionando o local viu, ao lado dos instrumentos dispostos paralelamente por sobre uma mesa de mármore, uma bacia de metal que refletia um bruxuleante e nascente raio de primavera que entrava por uma fresta da janela quebrada dias antes por uma pedra arremessada anonimamente. Inclinando-se para ver melhor, deparou-se com uma poça viscosa de uma matéria pastosa, fétida e rubra que, inclassificável, fora supostamente o produto do último procedimento realizado. A mãe de Serge Gainsbourg deu meia volta e saiu do ambiente ainda mais resolvida do que entrou. Gainsbourg devia sua vida à sujeira e ele se sabia devedor da imundície que lhe salvara a vida naquele obscuro ano de 1927.

Jane Birkin, uma das mulheres com quem conviveu, diria sobre Serge que “ele sempre dizia que a sua única sorte na vida tinha sido uma bacia imunda”. Discordo disso e Jane Birkin, Brigitte Bardot, Juliette Gréco e as demais musas supra-humanas que Serge amou intensamente são a prova disso. Talvez o que ele tivesse querido dizer é que seu talento com as formas (musicais e femininas, sem esquecer do abandonado talento com as formas desenhadas) não foi obra fatal do acaso. Seu sucesso foi arduamente construído: filho de imigrantes judeus sem recursos, desprovido de qualquer prerrogativa familiar ou beleza física, precisou construir-se com suas próprias forças e firmar no árido e aguerrido solo francês a bandeira de seu talento, consolidado após décadas de sólida e controversa produção. Nada em sua vida (exceto a história da pretensão de aborto que reconstruí com informações mínimas adoçadas com o mel da imaginação literária) fora sorte: “Eu nunca esqueço que podia ter morrido em 1941, 1942, 1943, 1944…” disse certa vez. De fato sobreviveu ao quase aborto, à guerra, à ocupação alemã, à tuberculose, aos excessos do álcool, ao braço extremoso do seu pai-xerife.

A vida era algo extremamente arriscado para se desperdiçar e ele a queimou numa enorme e intensa chama tornada arte. Não seria demasiado dizer que a vizinhança da morte não somente o fez sair da escola: o levou a viver como artista e sê-lo autenticamente sobre os telhados e sob os lençóis parisienses. Recentemente temos sido presenteados com respeitáveis cinebiografias e Gainsbourg: O homem que amava as mulheres (França, 2010) faz juz à safra e, sobretudo, ao biografado. Embora omita a história que, ao meu ver, foi determinante para a vida e a carreira de Serge (por ter balizado sua vida e criado um mito acerca do desejo materno que lhe sustentaria até o fim), é um belíssimo filme, um dos melhores de que me lembro ter assistido recentemente. Joann Sfar, o genial quadrinista que dirige a obra, faz jus a todas as suas credenciais (dentre elas a de filósofo) ao criar um universo de densidade mista (um amálgama entre película e aquarela) onde o público mergulha na poça de sujeira que foi sua vida para, com a boca empapada de sangue e álcool, admirar ainda mais a obra e vida grandiosas de Serge Gainsbourg.

-- Cena de "Gainsbourg" --

Eric Elmosnino, ator francês que interpreta o Serge adulto, incorpora o biografado reproduzindo os pequenos gestos de mão, a postura ao sentar no piano, a voz rouca e o olhar perdido: Serge ressurge, vivo, em sua interpretação magnífica. Se o filme não avalia, com rigor adequadamente crítico, o legado de sua música para a contemporaneidade (equacionando o que esta revoluciona em termos do ineditismo de seu fusion com as severas críticas que sofreu), mergulha em contrapartida no estômago do artista onde revolvem ruidosamente as fontes de sua genialidade.

O filme é tecnicamente perfeito e extremamente oportuno para o triste momento em que vivemos enquanto espécie. Refletir sobre Serge e os imperativos morais que impedem a apreciação de sua obra traça uma triste imagem de nosso caricato momento. Pensar que artistas como Serge Gainsbourg e Vinicius de Moraes, donos de duas obras lisérgicas e atemporais, não teriam espaço no puritano mundo onde temos a infelicidade de hoje viver soa em nossos ouvidos como um grave alarme. Gainsbourg e Vinicius seriam hoje impedidos de fumar no palco, seriam publicamente desencorajados por sua vida amorosa prolífica e antes de serem esteticamente apreciados, seriam banidos como más influências. Serge é uma tocha diante da qual nós nos tornamos uma pálida fagulha e sua obra, criada no calor dessa pira demasiado humana, não se perderá na curva do tempo. Seguirá iluminando a obscuridade de nossa covardia, desafiando os impasses morais criados pela atmosfera que respiramos. A sua abordagem moral (antes de sua apreciação estética), torna claro, aliás, o modo como impropriamente afundamos em nossa decadência. Nesse sentido retornar a Gainsbourg, ousar apreciar sua vida iniciada e concluída numa bacia suja nos faz mais humanos e o belo filme de Sfar contribui positivamente para a nossa escalada do fundo do abismo da contemporaneidade.

[trailer]

Pedro Gabriel

Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFPE.