O papiro agora descoberto parece ser mais uma indicação de que o cristianismo nasceu plural
Uma das coisas que essa descoberta de um texto copta onde Jesus cita a própria esposa traz é a necessidade de se estabelecer claramente a distinção entre a data do papiro e a data do que está escrito. Por exemplo, pelo que consegui entender, os especialistas que avaliaram o tal “Evangelho da Mulher de Jesus” concluíram que ele deve ser do século 4 (por volta do ano 350) por conta de evidências internas do texto, como a língua e a linguagem usadas. O suporte físico, em si, ainda não teria sido testado.
Essa diferença entre a idade do suporte e a idade do texto é muito importante: por exemplo, o manuscrito mais antigo a conter versos de um Evangelho, o chamado Papiro P52, contém trechos do Evangelho de João, considerado, por conta de evidências históricas, o último a ter sido escrito. Já o Evangelho de Marcos, tido como o mais antigo, só é citado pela primeira vez, até onde sabemos, no Papiro P45, cerca de de 100 anos mais velho que o P52.
Disso tudo se conclui que a idade do papiro impõe um teto à idade do texto — afinal, a obra não tem como ser mais nova que uma cópia de si mesma, ou que seu original — mas o piso é mais uma questão de coerência histórica, literária e filológica. O fato de a menção à “mulher de Jesus” estar em um fragmento copta do ano 350 não significa que ele não possa ser uma cópia ou uma tradução de uma matriz muito mais antiga.
Tendo dito isso, no entanto, faço duas ressalvas: primeira, que também não há motivo para acreditar que seja um relato de uma “tradição original” primitiva; segunda, que revirar textos antigos em busca da “verdade” sobre o “Jesus histórico” é muito mais um teste de Rorschach do que qualquer outra coisa.
Como bem notou o teólogo ateu Robert M. Price em seu livro Deconstructing Jesus, todo estudioso que se mete a tentar reconstituir Jesus a partir dos Evangelhos — canônicos ou apócrifos — acaba, na verdade, produzindo um autorretrato. Outro especialista, Geza Vermes, afirma que o único fato histórico certo a respeito de Jesus é sua crucificação. Mas há historiadores que discordam, até mesmo, de que se possa afirmar esse quantum mínimo .
Outra coisa que a descoberta suscita é a necessidade de ter em mente o quanto o cristianismo primitivo era diverso. Estamos todos meio que acostumados à visão de que teria havido um cristianismo primitivo correto, fundado pelos apóstolos e que, dependendo de quem você ouve, foi ou pervertido por Roma ou explodido pela Reforma Protestante.
Uma leitura atenta do Novo Testamento (onde os autores das cartas atribuídas a Paulo e a João vivem às turras com supostos dissidentes), além de uma série de descobertas arqueológicas, como a da Biblioteca de Nag Hammadi, sugerem o oposto: que o cristianismo nasceu plural e, de fato, nunca foi tão monolítico quanto os dois lados do debate Roma-Reforma gostariam de nos fazer crer.
Nag Hammadi é um caso exemplar: ela é composta de um sem-número de volumes datados do século 4, enterrados, aparentemente, por um grupo de monges cristãos depois de terem recebido uma carta do Bispo Atanásio com a lista de quais eram os textos “corretos” do Novo Testamento.
A natureza do material enterrado sugere que os monges usavam em seu trabalho um monte de literatura hoje considerada apócrifa, boa parte dela esposando uma teologia, o gnosticismo, totalmente heterodoxa pelos padrões atuais. A ideia que fica, então, não é a de uma unidade quebrada, mas a de uma pluralidade podada. O novo fragmento, se for de fato autêntico, apenas revela mais uma faceta dessa diversidade.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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