Mentiras calculadas

O ponto central da obra é suscitar uma discussão cívica, muito mais do que criar consciência sobre nossas falhas matemáticas.

“Os números (não) mentem: Como a matemática pode ser usada para enganar você”, de Charles Seife

A tarefa mais ingrata de qualquer autor de livros de divulgação científica é prender a atenção do leitor ao longo da obra. Quando se fala de assuntos um pouco mais abstratos – especialmente qualquer coisa que envolva matemática – essa dificuldade se torna ainda maior. Alguns autores conseguem dominar a técnica de tratar de ciência com estilo e desenvoltura suficientes para apresentar os temas de formas palatáveis a um público leigo. Talvez este seja o caso de Charles Seife, mas não é algo que transpareça na leitura de Os números (não) mentem. O livro não é exatamente uma obra de divulgação científica. É, antes, uma denúncia. Mostra as principais técnicas de torcer estatísticas utilizadas por advogados, políticos e mal-intencionados em geral. Essas pessoas se especializam em torturar os pobres números de forma a emprestar autenticidade a um argumento de outra forma vazio.

O mais triste é que, como o autor demonstra, não é realmente necessário dominar matemáticas arcanas para engambelar o público assim. A própria psicologia humana se encarrega de metade da tarefa. Somos mais ou menos programados para confiar em figuras de autoridades e temos uma reverência quase sagrada por números proferidos por uma dessas figuras de autoridade que demonstre confiança suficiente. Pior de tudo, nossa intuição estatística frequentemente está errada. Diante de uma sequência longa de caras no lançamento de uma moeda, por exemplo, somos levados a pensar que o próximo lançamento tem maior probabilidade de dar coroa. Mas, não: se a moeda não estiver viciada, as chances de dar cara ou coroa numa lançamento qualquer independem dos resultados anteriores – e são iguais.

Os números (não) mentem não chega a ser uma crítica ao sistema educacional americano (o livro todo é escrito do ponto de vista dos EUA), embora certamente haja espaço para tanto. A mim pareceu que o ponto central da obra é suscitar uma discussão cívica, muito mais do que criar consciência sobre nossas falhas matemáticas. Isso transparece quando Seifer fala de determinadas discussões na Suprema Corte americana e, principalmente, quando discute eleições e todo o circo estatístico e midiático que as cerca. É aí que o autor demonstra sua verve. Sobra para todos, de jornalistas a juízes, além do ambiente tóxico em que se tornou o debate político americano. Seifer é imparcial e ataca todos os lados da política dos EUA impiedosamente. Ninguém é inocente quando se trata de maquiar estatísticas.

O livro perde um pouco de sua força quando enumera uma longa lista de falácias matemáticas. É um processo necessário, se um tanto difícil, pois presume-se que o leitor não domine o assunto e é preciso apresentá-lo para desenvolver outros raciocínios mais adiante. Mas nesse ponto, mesmo com vários exemplos reais e alguns momentos de fina ironia, a leitura se torna um pouco menos ágil do que poderia. Isso não compromete em nada o resto da obra – que, aliás, terminei em dois dias – mas imagino que possa ser um obstáculo maior no caminho de um leitor menos afeito à matemática e à estatística.

É mais um desses livros que convidam à reflexão e à aplicabilidade de seus temas em nossa própria realidade brasileira. Em poucas semanas iremos às urnas mais uma vez para eleger prefeitos e vereadores. Muito se fala do quanto é preciso comparecer, do quanto nosso voto é importante para mudar alguma coisa significativamente, que o voto nulo não leva a nada, entre tantas outras frases feitas que somos obrigados a ouvir todo ano par. Mas quantas vezes vemos uma discussão profunda sobre, por exemplo, o infame sistema do Coeficiente Eleitoral nas eleições para vereadores? Quantos de vocês sabem como são calculados os números das câmaras municipais? Como são levadas em conta as várias coligações que o partido daquele candidato menos antipático cimentou na hora de preencher essas vagas? E afinal, qual o efeito do voto nulo numa eleição com Coeficiente Eleitoral?

Esse livro não vai elucidar nenhuma dessas questões, mas ao menos tornará seus leitores um pouco mais conscientes dos vários problemas que democracias representativas enfrentam – e, com um pouco de sorte, a serem um pouco mais céticos com o próximo engambelador profissional que aparecer.

::: Os números (não) mentem :::
::: Charles Seife (trad. Ivan Weisz Kuck) :::
::: Zahar, 2012, 264 páginas :::
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