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Estar entre Hitler e Stalin

por Daniel Lopes (13/09/2012)

Resenha de "Terras de Sangue", de Timothy Snyder

“Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin”, de Timothy Snyder

“As ruas da Varsóvia ocupada eram tenebrosas. Encontros clandestinos em
recintos frios e enfumaçados, quando escutava-se o som das botas da Gestapo
nas escadas, eram como sombrios rituais conduzidos em catacumbas.
Vivíamos no fundo de uma enorme cratera, e o céu muito acima era o único
elemento que compartilhávamos com as outras pessoas da face da terra.”
– Czesław Miłosz, Mente cativa (1951)

1.

Com razão, Terras de sangue foi aclamado em cada país que apareceu como uma obra de enorme importância. De fato, o livro de Timothy Snyder terá daqui em diante que estar em qualquer relação séria de leituras imperdíveis sobre o século 20. Com o fôlego e a bela escrita que lembram um Pós-Guerra, de Tony Judt, qualquer um que deixar de ler essa obra o fará por sua conta e risco.

O que Snyder faz é nem tanto apresentar novos dados, embora haja isso também (naturalmente: o autor fez pesquisas de arquivo em dez línguas), mas mudar o foco da nossa atenção, das misérias internas e semelhanças superficiais entre nazismo e comunismo soviético para a própria maneira como esses dois regimes agiram de forma impressionantemente idêntica no tratamento de seus vizinhos. Ao fazer isso, o autor não apenas aprofunda a comparação de métodos dos dois regimes assassinos, como, com isso, desfaz de uma vez por todas a ilusão de que os aliados de conveniência do Ocidente na Segunda Guerra foram substancialmente menos abjetos do que os nazistas no tratamento de seu próprio povo e dos povos alheios.

Mesmo que o autor usasse apenas dados e análises batidas, seu livro ainda seria um necessitado de ser lido por muita gente. Se alguém utilizar hoje em dia citações de Hitler e Mussolini para sustentar pontos em um artigo, imediatamente compreenderemos tal procedimento como uma afronta à memória de milhões de mortos. Mas se você pegar, por exemplo, um “pensador radical” como Slavoj Žižek, verá que ele é perfeitamente capaz de fazer gracejos com Stalin e Mao sem perder por um segundo sequer a estima de seus seguidores. Sou da opinião de que não devemos dar a essa gente o benefício da dúvida quando aparecem prometendo algo agradável para o “pós-capitalismo” que tanto almejam.

Como EUA, Inglaterra e França Livre tiveram que unir forças aos soviéticos para anular a ameaça nazista, muito do discurso pós-guerra dos vencedores subestimou – por ignorância e também má-fé – os crimes dos russos, que, sem grandes resistências de líderes ocidentais, se viram com a porção oriental da Europa para tomar de conta. A ignorância fica por conta do fato de que estadunidenses e britânicos, entrando em Berlim em 1945, pensaram ter encontrado nos campos de concentração o pior da Segunda Guerra. Na verdade, como mostra Snyder, esses campos não foram o pior sequer do regime hitlerista, e muito menos o pior das ações nazistas e soviéticas combinadas. Os campos de matança destes últimos, as terras de sangue de Snyder, caíram do lado de lá da cortina de ferro, ficando por muito tempo fora da plena compreensão ocidental. A má-fé fica por conta dos comunistas de carteira e dos companheiros de viagem do regime soviético mundo afora, que preferiram esquecer os crimes russos mesmo quando sabiam de sua existência e dos detalhes.

As terras de sangue se estenderam da Polônia até Leningrado (São Petersburgo), passando pelos estados bálticos, e até um pouco além das fronteiras da Ucrânia soviética, em território russo propriamente. Toda a Ucrânia e Bielorrússia estavam incluídas nessa área de tragédias, bem como a franja ocidental da Rússia, que, além de Leningrado, incluía outros dois importantes centros: Smolensk e Kurk. No período coberto por Snyder, 1933 a 1945, 14 milhões de pessoas perderam a vida. Esse número não inclui os mortos em combate, apenas mortos por políticas mais ou menos organizadas de eliminação de grupos étnicos e nacionalidades. Há em Terras de sangue uma série de mapas providenciais acompanhando no tempo as alterações de fronteira a que estiveram submetidos esses territórios.

Como diz Snyder em seu posfácio, é dever do bom historiador colocar os números no lugar e traçar as devidas relações e conclusões, mas é igualmente importante dar vida aos números, lembrando a humanidade de um, dois ou seis civis que perderam a vida em uma certa rodada de fuzilamento. Snyder faz isso magistralmente, através de relatos de sobreviventes, de testemunhos orais e escritos deixados pelas vítimas. Mas talvez o primeiro passo para se ter uma noção exata da tragédia que esse 14-Milhões representou seja, não abandonar a calculadora ainda, mas fazer-lhe uso uma vez mais. 14 milhões em 12 anos dá 3.196 mortos por dia, 133 por hora. Assim se tem uma ideia melhor do quadro, acredito. (Da mesma forma, você terá uma noção melhor da miséria que foram os 3 anos da Grande Fome de Mao se esquecer o 30-Milhões e souber que 16 pessoas morriam de fome por minuto devido puramente a uma política ideomaníaca de coletivização de terras.)

Como dizíamos, os campos de concentração descobertos pelos aliados em Berlim não representavam, como muitos imaginaram à época, o lado mais negro sequer do nazismo. Com que facilidade esquecemos isso! — “Em matéria de poucos dias na segunda metade de 1941, os alemães fuzilaram mais judeus no Leste do que havia de internos em todos os seus campos de concentração somados.” “A vasta maioria de judeus mortos no Holocausto jamais viu um campo de concentração.” Dado o lugar central dos campos de concentração em nosso imaginário do nazismo, essas análises são contribuições valiosas de Snyder para a divulgação histórica.

Saindo dessa mudança de foco dentro do sistema nazista, mudança que alarga nossa compreensão do Holocausto, passemos para uma mudança de foco na comparação entre os totalitarismos nazista e stalinista. Você sabia disso? — “No final de 1938, a URSS já havia matado muito mais judeus, naquele momento, do que os nazistas.” Dada a proeminência na mente ocidental pós-guerra da Noite dos Cristais nazista e do subseqüente Holocausto, esse tipo de informação jamais foi mainstream – você lembra de tê-la visto nos livros escolares? Mas também, você não viu lá muito sobre o Grande Terror soviético, por meio do qual esses judeus e outras minorias foram vítimas de deportações e execuções.

De fato, a primeira fase das terras de sangue vai de 1933 a 1938. Foi a época em que Hitler ascendeu ao poder e expandiu sua hegemonia para terras austríacas e checas. Para seus padrões, até que foi um período que viu pouco sangue. Muito mais almas foram cobradas, no mesmo intervalo de tempo, na Ucrânia e Bielorrússia soviéticas. Na segunda metade dos anos 30, mais poloneses foram perseguidos (fuzilados) na União Soviética do que judeus na Alemanha (deportados). De 100 líderes do Partido Comunista polonês, uns poucos estavam em prisões polonesas; 69, exilados, foram executados na União Soviética.

Dentro do Terror stalinista, nenhuma nação foi mais desgraçada do que a Ucrânia. Foi na Ucrânia pré-Segunda Guerra, na cidade de Stalino (hoje Donetsk), que começou a Via Crucis da pequena Irene Popow e sua família, que os trariam ao Brasil. Você pode ler seu relato em Adeus, Stalin!, do qual o Amálgama publicou trechos com exclusividade. A cidade de Irene aparece em Terras de sangue, primeiro no contexto da Grande Fome a que Stalin submeteu aquela nação. Período desolador, em que, citando Snyder, “centenas de milhares de pessoas esperavam todos os dias por uma simples banda de pão”, e em que pais aconselhavam filhos a comerem seus cadáveres tão logo morressem. Foi uma política deliberada, em que o Estado comunista requisitava quantidades inatingíveis de alimento a agricultores já forçada e ineficazmente coletivizados, não deixando ninguém sair do país e nem permitindo que os camponeses saíssem de suas terras para mendigar restos de comida nos centros urbanos, onde por sua vez só quem tinha comida certa e farta eram as forças de segurança e os representantes do Partido. Aqui está a Grande Fome, por Snyder:

Morrer de fome com algum tipo de dignidade estava além do alcance de quase todo mundo. Petro Veldii mostrou força rara, quando arrastou-se por sua vila no dia em que esperava morrer. Outros moradores perguntavam-lhe onde estava indo: “Para o cemitério, para me deitar”. Ele não queria estranhos chegando e arrastando seu corpo para um buraco. Então ele havia cavado sua própria cova, mas na hora que chegou ao cemitério outro corpo já a havia ocupado. Ele cavou para si uma outra, deitou e esperou.

Qualquer leitor com o coração em dia que queira saber os pormenores dessa época deve recorrer ao estudo clássico de Robert Conquest, The harvest of sorrow.

Depois, Stalino aparece no contexto do Grande Terror da segunda metade dos anos 30, em que Stalin expurgou diversas instituições soviéticas de qualquer pessoa minimamente suspeita de ser suspeita de oposição branda ao regime. As matanças também eram direcionadas a diversas nacionalidades dentro da União Soviética, como poloneses, e às elites intelectuais de repúblicas como Bielorrússia e Ucrânia. Stalin enviava a cada distrito e grande cidade uma tróica, composta de oficiais que julgavam e condenavam à morte ou deportação uma porrada de “suspeitos”, na velocidade da luz. “A tróica para o distrito de Stalino, por exemplo, reuniu-se várias vezes entre julho e setembro de 1938, sentenciando à morte cada uma das 1.226 pessoas acusadas.”

Por fim, nossa pacata cidade ucraniana aparece na narrativa de Snyder durante a ocupação alemã no final de 1941, com a operação para derrubar a União Soviética a todo vapor. Em um campo de prisioneiros de guerra da cidade, “pelo menos dez mil prisioneiros por vez ficavam espremidos entre arame farpado em um pequeno campo no centro da cidade. As pessoas só podiam ficar de pé. Apenas os mortos deitavam, porque qualquer vivo que o fizesse, seria pisoteado. Cerca de setenta e cinco mil pereceram, abrindo espaço para outros.”

2.

Mas a invasão alemã em meados de 1941 marcaria apenas a terceira fase das terras de sangue. A segunda fase foi da invasão da Polônia em 1939 até 1941 pré-Barbarossa. Esse foi o período de miséria maior da Polônia. Invadida quase simultaneamente por alemães e soviéticos, conforme acordado no pacto Ribbentrop-Molotov, a Polônia viveria quase dois anos de mal radical.

Era uma vez as gêmeas Janina e Agnieszka Dowbor. Dentro da política de eliminar as elites polonesas que insistiam na “ficção” da existência de um Estado polonês, ocorreu dos russos pegarem Janina e os nazistas, Agnieszka. Janina, aventureira, membro da força aérea polonesa, foi executada em abril de 1940 na floresta de Katyn e enterrada junto com outros 4.409 oficiais (em um crime que nos julgamentos pós-guerra os soviéticos cinicamente colocariam na conta dos alemães). Agnieszka fazia parte da resistência na zona sob ocupação alemã, e foi pega e morta em uma floresta na Polônia central em junho de 1940. Em 2 de março de 1940 Hitler comunicara a seus subordinados imediatos que “elementos de liderança” da Polônia mantidos em cativeiro teriam que ser “eliminados”. Em 5 de março de 1940 Lavrenti Beria, chefe da segurança soviética, começara a executar seus próprios poloneses sob custódia. Essa incrível coincidência de métodos e proximidade de datas não foi nada combinado entre os dois regimes, o que apenas salienta as semelhanças entre ambos. O que foi combinado foi que nenhum dos lados permitiria a grupos de poloneses planejarem ações contra as forças de ocupação do outro lado. O objetivo, caro aos dois ditadores, era a destruição da nação polonesa.

Nunca será demais sublinhar o sofrimento polonês. A matança programada de poloneses começou antes da matança de judeus programada pelos nazistas. E a eliminação de milhares de bem qualificados oficiais poloneses pelos soviéticos se provaria tão cara a Stalin quando da invasão alemã em 1941 quanto o expurgo de oficiais do Exército Vermelho nos muitos meses que antecederam a mais nova agressão hitlerista. Quando esta veio, os comunistas, atordoados, buscaram em suas prisões por uma boa quantidade de poloneses que pudessem servir na luta contra os nazistas nas terras de sangue, tarefa que sem dúvida eles empreenderiam com o maior gosto, se tivessem sido dados o privilégio de continuar vivendo.

– O autor –

Barbarossa abriu uma terceira fase nas terras de sangue. Aqui, os nazistas foram responsáveis por quase todas as execuções políticas. Seu projeto de impor fome nas repúblicas soviéticas almejou ser tão mortal quanto fora o dos comunistas, mas tiveram sucesso apenas parcial – justiça seja feita aos alemães, teria sido mesmo muito difícil bater Stalin no quesito esfomeamento em massa. Mas eles tentaram – “O braço direito de Hitler, Göring, em setembro de 1941, se comportou notavelmente como o braço direito de Stalin, Kaganovich, havia se comportado em dezembro de 1932. Ambos expuseram instruções para uma política alimentar que garantiria a morte de milhões de pessoas nos meses seguintes.” O ápice nazista desse tipo específico de crime foi em solo russo: o cerco a Leningrado, quando conseguiu-se matar cerca de um milhão de indivíduos. Aqui é preciso fazer justiça aos oficiais do Partido na cidade que, quando o lago Ladoga congelou, conseguiram abrir um corredor de suprimentos ligado ao resto da Rússia, embora continuassem a julgar e fuzilar alguns de seus nacionais dentro da Leningrado cercada por alemães, apenas para o caso de alguns deles alimentarem sonhos contra-revolucionários de viver livre de qualquer ditadura. O cidadão comum de Leningrado, isso está bem marcado no livro de Snyder, preencheu todos os critérios para se ver incluído nas amaldiçoadas terras que provaram o peso da suástica, do martelo e da foice.

Isso é maldade pura e desimpedida: com a invasão da União Soviética, os nazistas começaram a eliminar (mais) poloneses, bielorrussos, ucranianos e bálticos, mas em breve a guerra para destruir a União Soviética se converteria essencialmente em uma guerra para destruir os judeus — e poloneses, bielorrussos, ucranianos e bálticos ajudaram os alemães no Holocausto. O plano inicial de Hitler, por assim dizer seu plano de governo, era livrar a Europa dos judeus. Enviá-los para uma possessão além-mar mostrava-se impossível sem antes derrotar a Grã-Bretanha com sua poderosa marinha; com a União Soviética derrubada, seria possível deportar os judeus para o extremo-Oriente (e forçar a Grã-Bretanha a um pacto de paz). No entanto, tão logo Stalin começou a montar seu contra-ataque e fechou a rota para o Oriente pelo menos a curto prazo, essa segunda alternativa se mostrou cada vez mais difícil, e o único jeito de livrar a Europa dos judeus seria eliminando-os.

Hitler não poderia esperar pelo médio prazo, para deportar os judeus? Não, porque a situação militar alemã era cada vez menos animadora. E não, porque ele era um maníaco. Ele acreditava que os judeus da Europa eram agentes de seus inimigos tanto capitalistas (EUA) quanto comunistas (URSS), e que portanto eliminá-los seria justificável tanto moralmente quanto como procedimento de guerra. Para ver relação entre industriais do ramo de armamentos nos EUA e crianças judias mortas em “vãs de gás” na Ucrânia é preciso ser um maníaco. E, por uma ironia macabra, a morte de judeus por asfixiamento havia sido precedida por um projeto-teste com câmaras de gás em que pessoas física e mentalmente comprometidas foram mortas – ironia macabra porque o projeto foi chefiado pelo médico pessoal de Hitler, jamais um modelo de saúde mental.

Agora, o que permitiu com que grandes números de ucranianos e outros nacionais ajudassem os nazistas no assassinato de judeus foi, além do antissemitismo historicamente sempre presente nessa região, mais um bem sucedido golpe de propaganda alemão. A propaganda partia de um dado real para, apoiando-se no antissemitismo popular, buscar aprovação e impulso a um projeto genocida. O dado real foram as prisões da NKVD soviética abandonadas às pressas quando da invasão alemã, deixadas ainda cheias de cadáveres frescos. Os nazistas, que há muito haviam acomodado o poder comunista soviético em uma teoria mais ampla de complô judaico para dominar o mundo, rapidamente expuseram para as populações locais os crimes da polícia política da União Soviética como crimes de judeus. Bandos e mais bandos de bielorrussos e outros nacionais ajudaram as SS nazistas a reunirem e matarem judeus – por fuzilamento, em câmaras de gás, queimados dentro de sinagogas.

Essas ações colocavam em funcionamento o lado bestial de cada um, mas também o lado hipócrita. Como escreve Snyder, “a violência contra judeus também permitiu que locais estonianos, lituanos, ucranianos, bielorrussos e poloneses que haviam eles mesmos colaborado com o regime soviético se livrassem de qualquer mancha do tipo. A ideia de que apenas judeus serviam os comunistas era conveniente não apenas para os ocupantes, mas também para alguns dos ocupados.”

3.

No que diz respeito à resistência aos nazistas, ela foi mais acentuada na Polônia, e Terras de sangue é feliz na abordagem do Levante de Varsóvia. Você sabia disso? – “Quase certamente, mais judeus lutaram no Levante de Varsóvia de agosto de 1941 do que no Levante do Gueto de Varsóvia de abril de 1943.”

Em sua composição, o Levante teve tantos comunistas quanto extremistas de direita (reunidos nas Forças Armadas Nacionais), mas ambos foram minoritários, a maioria sendo de adeptos do centrista Armia Krajowa. Ainda assim, já com vistas no pós-guerra, os soviéticos tentaram enquadrar a resistência, utilizando de táticas assassinas. Indiretamente, Stalin atiçou a resistência, mas, assim que ela eclodiu, ele parou o avanço ocidental do Exército Vermelho, deixando os rebeldes em apuros, o que era a intenção – um tempo mais de combate enfraqueceria tanto os alemães quanto os nacionalistas poloneses, com menos gente para subseqüentemente pôr pedras no meio do caminho do imperialismo soviético.

Assim, a Polônia, cuja dupla invasão em 1939 marcara o início da guerra, sofreria barbaridades também em seu estágio final e nos primeiros meses de “paz”. Ainda em sua tática de enfraquecer os nacionalistas, Stalin não permitiu em agosto de 1944 que pilotos estadunidenses reabastecessem em território russo para bombardear alvos nazistas na Polônia, o que praticamente inviabilizou esses bombardeios. (Contraste isso, a propósito, com a permissão dada pelos soviéticos em outubro de 1939 para que os alemães ocupantes da Polônia reabastecessem seus U-boats em território de soberania russa. Andrew Roberts lembra o evento em A tempestade da guerra.) Apenas em meados de setembro de 1944 Stalin daria seu aval ao reabastecimento aliado, mas por então o Levante já havia sido massacrado pelos nazistas. Por fim, ter participado da resistência armada contra os alemães se tornaria, na Polônia comunista, um crime – “na lógica”, explica Snyder, “de que ação armada não controlada por comunistas enfraquecia os comunistas, e que o comunismo era o único regime legítimo para a Polônia”. Talvez seja uma interessante sacada do autor ver nesse imbróglio varsoviano o primeiro ato da Guerra Fria.

A nenhum outro lugar das terras de sangue foram apresentados tamanhos dilemas como os que caíram sobre a Polônia. Se ucranianos, bielorrussos e bálticos, mesmo os elementos mais nacionalistas, não apostavam grandes fichas na independência de suas nações no pós-guerra, a inteligentsia polonesa (o que sobrou dela após os golpes de russos e alemães) ainda sonhava vivamente com a sua. Aqui, afinal de contas, haveria apenas a reestabilização de uma soberania. Quando do Levante de Varsóvia, entretanto, britânicos e estadunidenses já haviam concordado em ceder a Stalin a metade oriental da Polônia. Isso foi um absurdo. Londres e Washington estavam chancelando as fronteiras que Stalin combinara antes com Hitler, e cuja própria efetivação marcara o início da guerra. “Nesse sentido”, escreve Snyder, “a Polônia foi traída não apenas pela União Soviética, mas também por seus aliados ocidentais”.

Portanto, a intenção dos poloneses com o Levante foi também estratégica. Se a batalha contra os alemães fosse bem sucedida, os poloneses poderiam receber o Exército Vermelho como orgulhosos donos de seu próprio quintal. Se perdessem, por outro lado, Stalin poderia fazer o que quisesse com o seu chão, pois estariam sem fichas para participar em negociações como parceiros de mesmo nível. Por fim, se sequer tentassem derrotar os alemães, poderiam ficar de mãos abanando tanto diante de soviéticos quanto de Grã-Bretanha e EUA. No final das contas eles lutaram, perderam (com colaboração de Stalin), viram o Exército Vermelho passar por cima de seu país, sedento de sangue, rumo a Berlim e, dali em diante, seriam governados por fantoches preparados diretamente pelo PC soviético. Apenas gerações futuras de poloneses veriam seu país mais uma vez independente.

4.

Timothy Snyder resolveu concluir seu Terras de sangue com um capítulo sobre o antissemitismo stalinista no pós-guerra. Embora esse período já extrapole os 12 anos que são prioridade para o autor, trata-se de um epílogo importante para os estudiosos das terras de sangue. Não porque a campanha da cúpula soviética contra judeus tenha atingido níveis hitleristas, mas pelo que tal campanha representou de continuidade de uma trajetória de perseguição, em solo soviético, a minorias, e porque foi uma campanha contra a minoria que primeiro vem à nossa mente quando lembramos das vítimas da Segunda Guerra.

Foi um grau a mais na paranóia stalinista. O presságio do descaso para com a causa judaica foi talvez a construção na parte ocidental da União Soviética, após a guerra, de estátuas em homenagem a Lenin construídas a partir de lápides retiradas de cemitérios judeus. Na sociedade soviética, mais do que antes, os judeus eram associados agora a “nacionalistas judeus” e “cosmopolitas sem raízes”. Ao mesmo tempo. Com os primeiros anos de vida do Estado de Israel, e durante a Guerra da Coreia, ganhou a mente de Stalin a ideia de que judeus não passavam de agentes dos EUA.

Em meados de 1951, o ditador viu a oportunidade de voltar seus serviços de segurança (eles próprios cheios de judeus) contra seu novo alvo: uma suposta conspiração de médicos judeus para matar altas autoridades soviéticas. Aleksandr Shcherbakov foi uma das vítimas. Andrei Ahdanov, outra. No início de 1953, o Pravda explicaria a seus leitores os detalhes das operações dessa rede de “monstros em forma humana” a soldo do imperialismo estadunidense. Poucos judeus chegaram a morrer, mas a paranóia estava no ar, interrompida graças à morte de Stalin em março daquele ano.

Embora o prefácio de Terras de sangue nos deixe com a expectativa de topar mais vezes nas páginas seguintes com as impressões de Orwell, Akhamatova, Koestler e outros sobre o período estudado pelo autor, as poucas vezes em que realmente aparecem valem a pena. Um dos personagens que dá as caras nos capítulos iniciais é Gareth Jones. Jornalista britânico, ele viu a fome na Ucrânia e voou em 1933 com um Hitler ainda pouco conhecido do mundo, escrevendo famosamente: “Se esse avião caísse, toda a história da Europa seria alterada.”

Há também uns causos interessantíssimos. Por exemplo. Em uma cena de Os irmãos Karamazov, Dostoiévski coloca os personagens discutindo sobre a possibilidade de existir moralidade em um mundo sem Deus. Cada leitor do gênio russo tem sua própria posição nesse tema, mas o ponto interessante é a informação dada por Snyder de que o mosteiro em que Dostoiévski situou essa cena, na cidade de Kozelsk, virou sob os soviéticos um campo para prisioneiros de guerra em que seus habitantes sofriam com a brutalidade cotidiana dos representantes do Estado oficialmente ateu.

::: Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin :::
::: Timothy Snyder (trad. Mauro Pinheiro) :::
::: Record, 2012, 615 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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