Anatomia de um movimento intratável

por Sérgio Tavares (17/09/2013)

Os personagens de Bettega peregrinam em busca de respostas e acabam por se desintegrar no vazio do fracasso

"Barreira", de Amilcar Bettega

“Barreira”, de Amilcar Bettega

A certa altura do romance Lua Cheia, do espanhol Antonio Muñoz Molina, o protagonista, um inspetor basco convocado para desvendar um infanticídio em território estrangeiro, questiona o momento subjacente à morte, o rapto e a desaparição. Refazendo o trajeto cotidiano da menina, ele se lança numa busca sem descanso por vias que parecem apagar rastros e paradeiros, trechos marcados por um tipo inexorável de invisibilidade capaz de tragar a assassinada, o assassino e mesmo aquele que procura explicação. A única saída, ocorre ao policial, está no olhar destemido sobre a cidade, na profunda varredura do organismo urbano e daqueles que o habitam. Somente os olhos irão recompensar as andanças diuturnas na caça de explicações para o fim trágico da vítima, a carinhosa filha de um homem comum chamada Fátima.

Em Barreira, primeiro romance do gaúcho Amilcar Bettega após três premiados volumes de contos (e aqui se inclui nada menos que um Portugal Telecom), empreende-se, de mesmo modo, a procura intransitiva por uma Fátima. A perscrutação, nesse caso, cabe a um pai, o turco Ibrahim Erkaya que migrou para Porto Alegre aos seis anos, e retorna a Istambul, meio século depois, para desvendar o sumiço da filha, a fotógrafa Fátima. Seu ponto de partida é a figura congelada de um retângulo preto na tela do computador, a moldura de uma janela recortada sobre a noite numa transmissão ruim via Skype, onde ela tenta mostrá-lo algo que vive em si unicamente por conta das histórias dele. Ao decidir deslindar a terra estrangeira que guarda um trecho incipiente da vida do pai, Fátima ultrapassa a barreira que cerca a fronteira das palavras, o relato pálido na memória pueril, valendo-se de um guia marcado por insondáveis registros daquele tempo. A Istambul que compartilha com o pai já não existe, como atestará o próprio Ibrahim. Perambular pela paisagem que não reconhece é como se ele e a cidade de fato nunca tivessem coexistido num mesmo universo, fossem parte de uma história inventada e mal contada, um enredo repleto de lacunas tal qual o vazio de pistas sobre o paradeiro da filha.

O estranhamento manifesta-se por todo o livro. A obra, que integra a coleção Amores Expressos, para a qual o autor viveu uma temporada em Istambul e de lá teria de trazer uma história de amor, decerto não firma compromisso com o sentimento, não de forma explícita. Bettega tem um projeto literário consistente que privilegia a estrutura e o requinte do texto, este burilado até as rédeas da excelência. O romance também insinua uma ligação com os dois títulos que o antecedem (em especial a coletânea Os lados do círculo), inclusive aludindo ou reprisando algumas cenas (há um momento idêntico ao do conto “Aprendizado”, de Deixa o quarto como está). O que há de sensorial se restringe à experiência de representar de maneira física, intensamente corpórea, as (re)ações internas e externas de seus personagens. Um ato simples, ao exemplo do aceno que abre o primeiro capítulo, é pormenorizado no encadeamento desse movimento, pequenas operações intramusculares para que esse gesto se concretize, de modo que a narrativa mestra é colocada em suspensão e se passa a cuidar do polimento da armação periférica da trama, o curso que arrasta essa informação incidental num ritmo interdito. Bettega foge do convencionalismo e se debruça sobre o texto, com rigor, em prol da qualidade, o que não se reflete num acesso fácil para o leitor, a quem se cobra um tipo de pacto, um grau saliente de esforço.

Isso fica evidente logo na primeira parte, intitulada “Bariyer” (barreira em turco), separada em blocos pesados que remetem ao estilo adotado nos últimos romances de Saramago, longos parágrafos pontuados por vírgulas que ocupam quase um terço do livro. Esse segmento é marcado pelo reencontro de Ibrahim e uma Istambul de ruelas que margeiam os cartões-postais, assombrada pelo estigma de um incêndio de proporções épicas. Para Bettega, quem procura está em movimento intratável. E no fluxo denso da narrativa, descrições da cidade se confundem e se encontram com as andanças do protagonista. O olhar desterrado conduz a narrativa que escapa do corpo para a arquitetura local e suas particularidades, compondo uma espécie de tratado topográfico em curso, como se, um passo após o outro, ele percorresse as próprias angústias, o medo de não reencontrar a filha, de não reencontrar o caminho de volta, e assim a narrativa parece andar em círculo quando, na verdade, se interioriza, compõe uma percepção única de um lugar marcado por múltiplas interpretações. A opção por parágrafos monumentais é exatamente essa: emular o atordoamento sofrido pelo personagem peregrinando em território nebuloso, buscar uma sensação que está além da linguagem.

Na segunda parte, o autor põe Fátima como narradora, adotando um discurso em primeira pessoa mais acessível, porém não menos desafiador. Todo o capítulo resume-se a uma única cena, ou melhor, à desconstrução temporal dessa mesma cena. Há o reposicionamento dos fatos, variações que dimensionam o que foi tratado anteriormente, acrescentando novas saídas ou redirecionando o arranjo do ocorrido, como se o autor propusesse ao leitor rever as decisões e os gestos tomados pela narradora num plano paralelo. Aqui surgem dois personagens que irão orbitar no vácuo deixado pela desaparição. O francês Robert Bernard, autor de guias de viagem, e o estranho e cultuado artista turco Ahmet, que desperta fascínio em Fátima por conta de uma instalação em que usa roupas chamuscadas de vítimas do tal incêndio do Grande Bazar, um evento muito marcante para o pai, que povoava as histórias que ela ouvia quando menina. O relacionamento direto ou sugerido com esses dois personagens embala os fragmentos da cena, até que um fato nuclear amarra as partes, estabelecendo uma ligação com o recorte escuro que serve como ponto de partida para o pai que tenta divisar o paradeiro da filha. O leitor enfim respira e consegue fazer, passadas um pouco mais de cem páginas, uma conexão.

Bettega deixa claro, ao se chegar a terceira e última parte, que o livro foi previamente pensado como três histórias (ou novelas) que têm Istambul, em momentos cruciais, como cenário, revelando encontros entre personagens a fim de se instituir a unidade do romance, ainda que a intenção seja trabalhar com o que é insinuado, deixar pontas soltas em detrimento de um desfecho amarrado. Em “Barrière”, tradução francesa do título, o narrador passa a ser Bernard, no momento em que retorna à França para reviver um luto e, tal qual a busca sem rumo preciso de Ibrahim, desvendar a sua causa. Ao contrário de Porto Alegre, que ganha ares de refúgio, como se a água embalada mansamente no curso do Bósforo, por um quê de sentimental, afluísse no Guaíba, a Paris que se espraia sem graça na vista sobre o aeroporto guarda segredos perversos que incidirão no tempo compartilhado pelos personagens em Istambul. Ahmet é um elemento velado não por acaso, acendendo um exercício narrativo que propõe descobertas, mas que termina sem soluções palpáveis e, até mesmo, qualquer sugestão de finais prováveis. Bettega acerta ao se manter difuso, criando personagens que se empenham na caçada e, sem resultados tangíveis, acabam por se desintegrar na paisagem alienígena de uma cidade que, indecifrável, pode se parecer com outras mais.

::: Barreira :::
::: Amilcar Bettega :::
::: Companhia das Letras, 2013, 264 páginas :::

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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