Um conservadorismo popular?

por Paulo Roberto Silva (16/09/2013)

As massas podem querer levar adiante sua própria expressão política conservadora

Já faz um tempo que venho desconfiando de certa postura das esquerdas, em especial da extrema esquerda brasileira. Desde meados da década passada, tem se tornado mais fortes os gritos contra num tal “conservadorismo”, definido como uma ideologia baseada na repressão a certos padrões de comportamento considerados progressistas. Minha desconfiança vem do fato de que uma bandeira, para ser de esquerda, precisa ter de alguma forma um recorte classista, ainda que imperfeito – não necessariamente operário, mas pelo menos popular.

Não é o que parece na versão mais moderna do conservadorismo que vem sendo denunciado pelas esquerdas. Os conservadores que eram combatidos até os anos 1990 – como Maluf, ACM ou Sarney – se caracterizavam por combinar uma demagogia popular com um livre trânsito nas elites. Celso Pitta, por exemplo, apoiado por Maluf, foi o candidato mais votado no Morumbi. Assim, nada mais natural do que acusá-los de representantes das classes dominantes e enganadores do povo.

O mesmo não se pode dizer de, por exemplo, um Marco Feliciano (em tempo: não sou um defensor de Marco Feliciano, longe disso), ou um Luís Bassuma. Bassuma, expulso do PT pelo crime de defender o aborto – Aírton Soares foi expulso por votar em Tancredo, traindo assim a classe operária – é um ex-sindicalista do polo de Camaçari. Feliciano é um pastor neopentecostal sem trânsito algum nos altos círculos do PIB. Em comum, ambos compartilham de certo conservadorismo popular.

O fenômeno não é novo. Antes da autópsia do lulismo, a principal descoberta do cientista político André Singer foi que no Brasil os pobres votavam à direita. Mesmo quando trata do lulismo, o curioso pacto entre PT e pobres estabelecido durante o primeiro mandato de Lula, este é descrito como um pacto conservador, de perfil bonapartista. Singer diz textualmente que:

O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo programa de classe. Não o da classe trabalhadora organizada, cujo movimento iniciado no final da década de 1970 tinha por bandeira a “ruptura com o atual modelo econômico”, mas à fração de classe que Paul Singer chamou de “subproletariado” ao analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos de 1980.

Ou seja, em sua avaliação, o que Singer chama de subproletariado teria um programa de classe próprio, que seria a melhoria das condições de vida dentro da ordem; as classes mais pobres da sociedade seriam ideologicamente conservadoras, o que explicaria seu alinhamento anterior com os projetos políticos das classes dominantes.

Contudo, duas coisas são novas neste conservadorismo popular. Uma é a sua desvinculação do conservadorismo tradicional. Embora se mantenha em um discurso conservador – especialmente do ponto de vista religioso e comportamental – não há uma identificação com o discurso ideológico das classes dominantes atual. As lideranças políticas deste conservadorismo popular – além dos citados, podemos incluir Russomano, Ratinho Jr e outros de perfil similar – não se identificam com um programa liberal similar ao que setores do empresariado e do mercado financeiro têm insistido nos últimos tempos, no formato Miriam Leitão e Carlos Sardenberg. Além disso, não são campeões de voto nos setores mais ricos e com maior educação formal da população – veja que Russomano ganhava entre os mais pobres e menos escolarizados no momento em que liderou as pesquisas para prefeito de São Paulo.

O outro fator é a insistência dos setores das esquerdas em combater este conservadorismo popular. Reveladora deste viés ideológico é a entrevista de Jean Willys no Programa do Ratinho. Diversas vezes Jean Willys procurou traçar uma identificação entre a pauta gay e a dos “oprimidos da sociedade”. E, o que é curioso para um deputado de um partido de esquerda, em nenhum momento ele acusa a classe dominante de apoiar Feliciano – não há referências à elite, aos ricos ou outros jargões – mas ele se contrapõe ao “conservadorismo”.

O problema da questão do conservadorismo em relação aos seus críticos de esquerda nos últimos anos é a ausência de um referencial de classe, ainda que imperfeito. Não só: na crítica ao conservadorismo há muito mais proximidade entre Jean Willys e Miriam Leitão do que sonha a vã ideologia de ambos. E esta ausência revela mais do que esconde: ela esconde o mal estar de se combater não uma classe dominante, mas uma classe dominada em ascensão.

Um pouco de teoria

Este artigo se recusa a seguir pelo caminho de que os mais pobres são conservadores porque são enganados pela Rede Globo. Primeiro porque o próprio Jean é um efeito da rede Globo, mais do que ele gostaria de admitir. Segundo porque uma análise sem preconceitos da história mostra que as escolhas políticas de uma classe são sim o efeito, ainda que mediado ideologicamente, de seus interesses estruturais. A relação entre interesse e ideologia foi bastante explorada pelo próprio Marx em A Ideologia Alemã, e também por Weber em seu capítulo sobre Sociologia da Religião de Economia e Sociedade.

O que eu gostaria de explorar aqui é uma hipótese apresentada por Karl Polanyi em seu clássico A Grande Transformação. Ao tratar do processo de construção institucional da economia de mercado na Inglaterra no início do século XIX, ele trata a transformação dos pobres em operários como um conflito de civilizações. Mais especificamente, ele afirma que os pobres ingleses tiveram durante a Revolução Industrial tratamento similar ao dos povos conquistados na África: eles foram forçados pela fome a sair de suas terras e aderirem ao mercado de trabalho.

Neste contexto em particular, Polanyi identificou uma unidade de interesses entre os proletários precarizados e os Tories conservadores, ambos interessados em conter a burguesia nascente e o liberalismo das classes médias urbanas. Neste sentido, o autor afirma que a situação era diferente na Europa continental, na qual a burguesia nascente, as classes médias urbanas e os operários tornaram-se aliados na luta contra as estruturas feudais remanescentes. Neste sentido, ele afirma que o sindicalismo na Europa continental ganharia um viés político e se tornaria socialista, enquanto na Inglaterra acontecia o contrário: o próprio socialismo se tornaria sindicalista e conservador.

Pano rápido. Vamos para Boltanski e Chiapello, em The New Spirit of Capitalism. Os autores constroem uma teoria na qual o capitalismo evoluiria a partir de um conflito dialético com os seus críticos, que se dividiriam em dois grupos diferentes: uma crítica social, de perfil popular e classista, e uma crítica estética, com perfil de classe média. Enquanto a crítica social se caracterizaria pela crítica econômica e das condições de trabalho, a crítica estética se ateria às questões de liberdade de comportamento. A crítica social seria Marx, a estética Baudelaire.

A novidade dos últimos tempos teria sido (1)uma integração entre as críticas social e estética em uma única ideologia nos movimentos de maio de 1968, construindo um discurso similar ao de Jean Willys no Ratinho; e (2)a incorporação desta crítica à ideologia do capitalismo, formando um novo espírito de viés libertário, capaz de incorporar as mudanças de comportamento reivindicadas pela crítica estética. O magnata J.P. Morgan teria dado lugar a Steve Jobs.

Estes dois textos servem para derrubar alguns mitos. Primeiro, demonstram que pode haver um conservadorismo racional dos mais pobres, não necessariamente demagógico. Segundo, que um comportamento mais liberal pode servir mais ao interesse das classes dominantes que das dominadas.

Uma hipótese para o Brasil

No caso brasileiro, nossa hipótese é que este conservadorismo popular foi uma opção racional das massas pauperizadas, desenvolvida durante séculos de penúria como estratégia de sobrevivência. Diante de um cenário de constantes dificuldades, os setores mais pobres da população brasileira buscariam alguma forma de estabilidade, de ordem, como garantia de que a situação não pioraria.

Nesta hipótese apoiamo-nos em dois autores que se contrapõem em termos de metodologia, mas que coincidem no diagnóstico. Estes autores também se encontram separados por cem anos. Um deles é Euclides da Cunha. O outro é o sociólogo Jessé Souza.

Em Os Sertões, Euclides da Cunha desenvolve a teoria de que a incrível capacidade de resistência do sertanejo, demonstrada da forma mais crua possível em Canudos, tenha sido desenvolvida durante séculos de dificuldades:

Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, esperto, resignado e prático.

Neste cenário de dificuldades, teria havido espaço para o desenvolvimento de uma religião mestiça, na qual o misticismo católico medieval se combinaria com aspectos de fetichismo indígena e africano, desencadeando uma religiosidade popular adequada para o ambiente hostil do sertão. Esta religiosidade, capaz de oscilar entre a fé e o fanatismo, daria sentido à rude vida do sertanejo nas árduas condições em que se encontra.

Cem anos depois, Jessé Souza encontraria nesta religiosidade os elementos para a formação sócio-cultural da classe social que ele chamou de Os Batalhadores Brasileiros. Esta seria a classe que se convencionou chamar – de forma pouco adequada, na visão do autor – de “nova classe média”. Os batalhadores seriam os brasileiros que se encontram no limite da subcidadania – que ele chama de ralé – mas que conseguiriam se diferenciar dela por uma ética do trabalho duro, formada pela presença de uma família estruturada e por uma religiosidade prática. Esta religiosidade seria assegurada por variantes do neopentecostalismo, mas não só: o autor encontrou traços no discurso de Padre Cícero e na religiosidade popular católica.

E assim chegamos aos fundamentos do nosso conservadorismo popular. Ele seria caracterizado por uma necessidade de estabilidade nas condições de vida, e de respostas concretas às necessidades imediatas. Por isso, e por seu senso prático, o batalhador se recusaria a aderir a projetos utópicos – não dá tempo de esperar a revolução. Por outro lado, a religião seria ao mesmo tempo fonte de explicações para as dificuldades e de força para enfrentar as renúncias que a vida exige.

Esta massa aderiu ao populismo varguista, ao governo militar e à agenda liberal de FHC porque estes governos ofereceram respostas concretas aos problemas concretos dos mais pobres – respectivamente, seguridade social, milagre econômico e fim da inflação. E aderiu ao Lula por sua política de distribuição de renda, que gerou melhora imediata nas condições de vida da base da pirâmide. Mas não aderiu a um programa revolucionário nem liberal em termos comportamentais – antes, tenta evitá-los.

Um conflito em aberto

Contudo, a expansão da renda na base da pirâmide pode levar os batalhadores a um nível de autonomia jamais visto. Ao invés de aderir ao conservadorismo demagógico das elites, ou a um pacto com um governo de esquerda, pode estar chegando a hora de os batalhadores quererem levar adiante sua própria expressão política. E ela parecerá aos olhos ilustrados da classe média – seja ela tucana ou do PSOL – uma imagem terrível. Ela terá uma cara mais de Feliciano e menos de Jean Willys.

Até hoje, toda interpretação do popular no Brasil foi dada por intelectuais com origem nas classes médias – ou por aqueles que individualmente se tornaram de classe média. Desta forma, as interpretações oscilaram de visões negativas – denunciadas por Jessé Souza em teorias como as de Roberto Da Matta, Francisco Weffort e Sérgio Buarque de Holanda – ou visões idealizadas do proletariado, geralmente desalinhadas com as expectativas dos próprios proletários. Neste sentido, há a idealização do popular que se enquadra nos preconceitos da classe média, enquanto se recrimina o popular legítimo. Aceita-se o hip hop ou o funk pelo que teriam de revolucionário – de acordo com o que a classe média jacobina entenderia por revolucionário – mas recusa-se o pagode e o sertanejo.

Ao mesmo tempo, a experiência Lula mostrou ao batalhador que ele não precisa necessariamente confiar nos bem-nascidos das elites para assegurar-lhes melhores condições de vida. Lula foi na política o que um Ronaldo é no futebol ou Zezé di Camargo é na música: um batalhador bem sucedido. Por isso ele foi capaz de fomentar o pacto lulista, conforme apresentado por André Singer.

Entretanto, a pauta da revolução comportamental fomentada pelas esquerdas – inclusive o PT – afronta os batalhadores em suas crenças mais profundas. O batalhador não é religioso por alienação, mas porque a religião responde aos problemas concretos de sua vida de uma forma que o esquerdismo à 1968 não consegue fazê-lo. Por isso, desde 2010 o PT vem enfrentando o risco de ruptura do pacto lulista – seja quando se levantam dúvidas sobre a pauta moral de Dilma, seja quando um Russomano ou Ratinho Jr aparecem mais próximos de seus interesses que os candidatos do PT.

A ultraesquerda abriu um canal de interlocução com os batalhadores com as manifestações de junho de 2013, vinculadas a um problema concreto na vida dos mais pobres – a tarifa de ônibus. Contudo, sua incapacidade de compreender o conservadorismo popular levou às críticas aos “coxinhas” e ao afastamento das massas, que não têm voltado às ruas desde então.

A direita brasileira, por sua vez, desaprendeu a lidar com o conservadorismo popular, e depende sempre da boa vontade de um Feliciano ou de um Malafaia para conseguir alguma coisa. A derrota de Serra em 2010 mostra que o batalhador pode até desconfiar do PT, mas não está disposto a apoiar um fariseu, como bem demonstrou Pierucci.

Para onde vamos?

É difícil dizer. O processo de ascensão política dos batalhadores e a evolução do conservadorismo popular são processos em aberto. O que é importante ter claro é que quem não compreender o conservadorismo estrutural dos brasileiros mais pobres estará incapacitado para dialogar com eles. E este é um desafio político de primeira grandeza para as esquerdas, que se apresentam tradicionalmente como representantes do popular na esfera política. Neste exato momento, nossos marxistas ilustrados podem estar combatendo lado a lado com o capital, sem perceber.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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