Democracia intrapartidária

Uma vez que a maioria dos partidos é dominada por elites que fazem as bases de massa de manobra, a fidelidade partidária tornou-se fidelidade ao dono do partido.

Cúpula do PMDB

1.

Em uma democracia representativa é comum que duas espécies diferentes de problemas sejam confundidas. Em primeiro lugar, temos o típico problema de representação, que pode apresentar-se de dois modos: existe algo no sistema político em geral que impede vastas porções da população de votarem (universalidade do voto), ou existem mecanismos pós-eleitorais que aumentam a quantidade de representantes de certos estamentos sociais em detrimento de outros (equidade do voto). Ou seja, nesta classe de problemas temos todos os institutos que, para falsear a imagem que as urnas fazem da sociedade, interferem na produção dessa imagem, operando ou nos eleitores ou nos eleitos. São típicos instrumentos de maioria (que não se confunde com uma maioria numérica) para sufocar a minoria. A representação política é, assim, a semelhança entre a manifestação popular e o exercício institucional do poder, isto é, a semelhança que se estabelece entre a imagem (o poder instituído) e o imaginado (poder instituinte).

Uma segunda classe de problemas, mais importante, são aqueles relacionados ao que Hume chamou de vivacidade. A vivacidade é aquilo que torna um ente mais vivo na mente. É ela que faz a diferença entre ver uma cadeira e lembrar-se da mesma cadeira. Assim, quando dois entes estão ligados na mente através de uma qualidade existente neles e que os torna objeto de comparação (semelhança, contigüidade ou causalidade), uma vez que o primeiro ente apareça, o segundo torna-se mais vivo na mente, já que a ligação transmite a vivacidade de um a outro. Assim, ela torna o distante, próximo.

Na política, também a vivacidade tem um papel. Em uma democracia, a soberania é popular, no sentido de que o poder é uma manifestação da multidão, uma expressão do povo indiferenciado. O poder emana desse povo e é esse poder que é invocado pelo governo como fonte de sua legitimidade. Enquanto a representação garante uma semelhança do exercício institucional do poder à imagem da manifestação da multidão, o que garante uma fidelidade contínua do poder instituído ao poder instituinte é a vivacidade. Ou seja, tal qual em Hume, a representação estabelece uma ligação entre os dois entes e a vivacidade aproxima os dois.

Assim, a uma legitimidade formal, que se refere aos problemas gerais da representação, é necessário contrapor uma legitimidade material, referindo-se aos problemas de vivacidade daquela relação de representação. Talvez pela ênfase na representação (legitimidade formal), o problema da legitimidade material (ou vivacidade, conforme o conceito original de David Hume) seja por este engolido. É só realizarmos uma breve leitura das análises de natureza política, sociológica ou antropológica realizadas no rastro dos protestos que aconteceram em várias cidades brasileiras no mês de junho para vermos o ponto comum que todas identificam entre as causas dos protestos: um problema de representação política, de uma sociedade que não se vê representada (imaginada) em seus parlamentares.

Entretanto, acredito que o problema não seja tanto de representação – o que conduziria a uma resposta que equacionasse o sistema eleitoral brasileiro e permitisse que o exercício do poder fosse mais semelhante à imagem da multidão –, mas sim a um problema que pode ser enunciado da seguinte forma: como tornar o exercício do poder (o governo, a atividade parlamentar, etc) mais “próximo” do poder instituinte? Isto é, dado que o poder originário deve ser popular, como tornar a relação de representação que se estabelece entre as instituições e o povo mais viva? Em suma, como aproximar imagem e imaginado?

Com a mudança das condições do problema, mudam-se as soluções. A solução de um problema de vivacidade não passa por reformas nos sistemas eleitorais como as que vêm sendo propostas pelo governo e por setores da sociedade civil. Se nós temos um problema de fluxo, não devemos olhar para as extremidades, mas sim para o meio. Se em uma torneira não corre água, mas existe água entrando na outra extremidade, o problema é com o cano. Do mesmo modo, se a sociedade não consegue conectar-se com aqueles que são por ela eleitos, o problema encontra-se em outro lugar. Em uma democracia representativa como a nossa, em que apenas pessoas filiadas a partidos políticos podem ocupar cargos eletivos, qualquer déficit de democracia, no sentido de dificuldades de expressão do poder pelo povo, é um problema de déficit democrático nas organizações partidárias. Isto porque elas são o “meio de campo” entre as instituições do Estado e o poder popular.

2.

As organizações em geral possuem uma tendência a concentrar o poder na cúpula, em detrimento das bases. Isso permite a existência do controle hierárquico, por exemplo, atuando de modo decisivo nas forças armadas, entre outras instituições. Nessas instituições, existem meios de suavizar o poder da cúpula, como o instituto da promoção, no nosso exemplo das forças armadas. A promoção permite a oxigenação da cúpula, evitando a formação de uma “torre de marfim” que se torna alheia ao que acontece, isto é, à irrupção dos acontecimentos (que se dá nas bases).

Nos partidos políticos não é diferente. Alguns autores, entre eles Duverger, Bobbio e Mezzarobra, construíram pensamento sobre os partidos políticos que tentam explicar como são constituídas verdadeiras “ditaduras intrapartidárias” no seio dessas organizações. O conceito central que aparece aqui é o de tendência oligárquica. As classes dirigentes passam a dominar as bases pela concentração dos poderes intrapartidários, constituindo-se em círculos fechados, de difícil acesso. As relações que se estabelecem entre os dirigentes e as bases ganham cunho personalista, isto é, os dirigentes tornam-se personagens e as bases fazem-se massa de manobra. Neste quadro, aparecem as figuras dos “caciques” ou líderes, dos “donos do partido”, e, também, dos estafetas, dos assessores (responsáveis pelo acesso aos líderes). Há uma fetichização do poder.

Assim, temos o fortalecimento deste quadro quando se permite a intervenção injustificada dos diretórios de maior circunscrição (nacional ou regional) naqueles de menor abrangência, como passamos a ver no Brasil a partir das eleições de 2008. Também ganha mais vigor quando são violadas as várias garantias democráticas que valem no convívio em sociedade: ampla defesa para aplicação de punições; princípio majoritário nas votações; sistema de garantias mínimas (aquilo sobre o que não se pode decidir); ampla publicidade das reuniões, informações e opiniões; princípio federativo (por simetria à organização do Estado brasileiro, as organizações partidárias de diferentes circunscrições não guardam relação de subordinação entre si); autonomia e etc.

Ainda, como o ambiente externo ao partido político é mais ou menos democrático, estabelece-se uma tendência oligárquica externa, em complementação à primeira tendência. Os representantes do partido no parlamento, eleitos democraticamente, são também controlados pelos “donos dos partidos”, passando a ter que seguir uma conduta não vinculada ao programa democraticamente aprovado, mas sim à vontade e à agenda do dirigente.

Este segundo quadro é fortalecido quando são indicados pelos diretórios de maior circunscrição os membros daqueles de menor abrangência. Ou quando são “vendidos” os diretórios de menor abrangência para candidaturas de pessoas desvinculadas da vida partidária, mas que exercem poder econômico na sociedade. Ou quando os diretórios de menor circunscrição são obrigados a coligar-se, ao invés de lançar candidaturas majoritárias. Ou ainda quando a decisão de quem poderá se candidatar e a quais cargos é tomada pelas cúpulas e não pelas bases.

Apesar de essas tendências serem comuns às instituições em geral, elas não podem prosperar nos partidos políticos em uma democracia. O regime democrático obriga a existência de partidos internamente democráticos, nos quais as bases exerçam o poder controlando os dirigentes, devendo existir certa simetria entre o regime do Estado brasileiro e aquele dos partidos políticos: na famosa expressão de Canotilho, uma democracia de partidos obriga a existência de uma democracia nos partidos. Isto porque esta situação ocasiona o “engessamento partidário”, pois acarreta uma dificuldade de “oxigenação”, isto é, de surgimento de novas lideranças materialmente legítimas (ungidas pelas bases que é o lugar da diferença, da potência, enfim, do novo). Tudo isto enfraquece a democracia brasileira porque impede que a juventude, o fluxo disforme, tenha um lugar dentro das únicas organizações legitimamente responsáveis por representar a sociedade brasileira. Assim, as mudanças nunca chegam e nada acontece (no sentido que o acontecimento é o próprio modo de irrupção do novo) nos canais oficiais (Legislativo e Executivo).

3.

Esta situação descrita acima se aplica aos partidos brasileiros, especialmente após o reconhecimento da fidelidade partidária como princípio orientador da disciplina legal sobre os mandatos eletivos (representação). Na decisão do STF que reconheceu o princípio, ficou estabelecido que os eleitores votam em partidos, não em pessoas. Logo, são essas instituições que detêm os mandatos eletivos, devendo os candidatos eleitos ser fiéis ao programa e estatuto partidário. Neste sentido, perde o mandato o candidato que trocar de partido ou que violar o programa ou estatuto partidário, já que o eleitor elege não apenas o partido, mas sim o programa deste partido: não apenas quem governará, mas também como governará.

Embora esta seja uma grande evolução para a democracia brasileira, ela teve por efeito colateral ampliar os poderes dos “caciques”, dos líderes partidários. Uma vez que a maioria dos partidos é dominada por elites partidárias que fazem as bases de massa de manobra, a fidelidade partidária tornou-se fidelidade ao dono do partido. Um bom exemplo dessa concentração de poder se fez sentir já nas eleições municipais de 2008 (a decisão do STF é de 2007), quando vários diretórios municipais foram destituídos pelos diretórios estaduais ou nacionais por terem “cometido o crime” de realizar convenção partidária e lançar candidatura própria ao executivo municipal. Logo em seguida, “afilhados políticos” foram colocados como chefes de comissões provisórias municipais e celebradas alianças de interesse dos líderes partidários estaduais ou nacionais. Em suma, os dirigentes de organizações de maior circunscrição (nacional ou estadual) procuraram submeter os de menor amplitude (estadual ou municipal) às suas determinações.

Com a explosão da questão da legitimidade material neste ano (vide os protestos nacionais de junho), fica claro que estamos avançando de modo muito lento para permitir a expressão da multidão através dos canais institucionais existentes em nossa democracia. Com a proposta de reformas que procuram modificar aspectos do sistema eleitoral (reformas sobre questões de representação) e não tocam neste problema, fica a pergunta: qual a reforma de que precisamos?

Por razão de honestidade, acreditamos que nenhuma reforma legislativa é realmente necessária, mas que várias reformas legislativas seriam bem vindas se implementadas. O arcabouço jurídico brasileiro, especialmente o disposto na Constituição, pode ser utilizado de modo eficaz para coibir essas práticas, desde que a Justiça Eleitoral e o STF mudem a sua jurisprudência. No atual panorama da decisão do STF, não faz sentido dizer que a Justiça Eleitoral não tem competência para julgar disputas sobre atos partidários que não envolvam diretamente o processo eleitoral: estabelecida a competência da justiça especializada para julgar questões sobre fidelidade partidária, que não estão abarcadas pela noção de processo eleitoral, deve a Justiça Eleitoral reconhecer a sua competência para julgar Direito Partidário. De outro modo, porque seriam os partidos políticos obrigados a registrar seus estatutos no TSE se a Justiça Eleitoral não pudesse exercer controle de conformidade dos atos partidários perante o estatuto?

Outro ponto que exige mudança é o reconhecimento da existência de uma organização dos partidos semelhante a do Estado brasileiro, ficando as instâncias que abrangem menores circunscrições com a mesma disciplina de estados e municípios na nossa federação. A Justiça Eleitoral deve reconhecer a legitimidade de sua atuação para institucionalizar os conflitos entre os entes partidários de diferentes abrangências tendo os princípios federativo, republicano, da não intervenção, da legalidade estrita e da autonomia de cada esfera em relação à outra.

Por outro lado, cabem mudanças legislativas que estabeleçam controles sobre as cúpulas partidárias, de modo a impedir que elas revertam a lógica democrática (as bases controlam as cúpulas). Neste sentido, seria especialmente benéfica uma limitação temporal às comissões provisórias (estaduais ou municipais) e critérios objetivos que impedissem a criação de comissões provisórias em localidades nas quais o partido conte com certo número de filiados. Assim como: a obrigatoriedade de realização de convenções para escolha de candidatos e outras decisões importantes (como aquelas que sejam relacionadas à existência do partido – fusão, incorporação, etc); a natureza absoluta, em relação às comissões executivas, daquilo que foi decidido em convenção, ou outra espécie de assembléia; necessidade de quórum qualificado para alterações estatutárias e outras espécies de decisões que possam significar grandes mudanças na vida partidária; e garantias de publicidade dos atos e das convocações, de modo a possibilitar a participação do maior número possível de filiados nas decisões, entre outras mudanças.

Acreditamos que existe uma necessidade de garantir-se democracia nos partidos políticos através da reforma constante dos controles democráticos sobre o seu funcionamento. Lembrando frase de Al Smith: “Todos os males da Democracia se podem curar com mais democracia”.

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