Getúlio e ditadura

O segundo volume da biografia escrita por Lira Neto começa em meio à tormenta da primeira tentativa de estabilização do governo Vargas.

"Getúlio (1930-1945)", de Lira Neto

“Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo”, de Lira Neto

Seria ocioso repetir os elogios que fiz ao primeiro volume da biografia de Getúlio Vargas há um ano. Afinal, este segundo volume mantém o excelente trabalho de documentação do período e da vida do ditador gaúcho, bem como o nível de qualidade do texto, elevado e empolgante. Portanto, a resenha será mais curta que a anterior. Mas isso representará um ganho: ir direto ao ponto, como faz Lira Neto no volume dedicado ao Estado Novo: começando in medias res, sem recapitulação do que foi visto no livro anterior, no meio da tormenta da primeira tentativa de estabilização do governo, em idas e vindas que desembocariam no movimento paulista de 1932.

Um grande mérito para o texto desta segunda parte está em não reinventar a roda. O padrão formal dos capítulos é o mesmo do primeiro volume, assim como a lógica de introdução dos conflitos. Pequenos suspenses são criados, alianças e defecções são apresentadas na devida ordem, tornando o livro uma narrativa bastante atraente. Os capítulos mais difíceis e mais bem realizados novamente são os primeiros: em meio a dezenas de ocorrências menores que vão construindo e desconstruindo o movimento contrário a Getúlio, Lira Neto não cedeu à tentação de organizar tudo dentro de um esquema cronológico rígido. Assim, reforçando a unidade temática dos capítulos, permite-se compreender melhor o conjunto do que se o autor colocasse cada fato em seu lugar marcadinho em uma linha do tempo. E essa compreensão do que uma narrativa precisa para convencer e envolver faz surgir a questão sobre como seria uma incursão do autor pelo terreno da ficção. Domina os elementos técnicos e estruturais de modo exímio, e isso já é meio caminho andado (talvez um terço de caminho).

Voltando ao biografado, seu governo teve momentos diversos e cada um deles está bem mapeado ao longo das mais de quinhentas páginas da obra. Assim, nos é dado conhecer o íntimo dos momentos mais tensos, como a intentona comunista de 35 (que não foi um problema tão grave para Getúlio devido ao trabalho da polícia política, capaz de antecipar as movimentações – que por seu turno já foram apressadas e muito mal organizadas) e a insurreição integralista de 38, talvez o ponto de maior risco em todo o período de governo: o presidente-ditador chegou a ficar isolado com a família e auxiliares próximos no Catete até reforços chegarem para desbaratar o ataque.

Se antes os principais coadjuvantes da vida de Getúlio eram seus aliados Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura, a presença destes neste volume é reduzida. O primeiro, entrando em rota de colisão com o ditador diversas vezes (algumas por defender uma normalidade democrática, outras por querer e não conseguir a nomeação de apadrinhados – sim, não é de hoje!), acaba passando boa parte do período atuando nos bastidores, isolado como embaixador nos EUA. Mas não deixa de receber a atenção devida, o que provoca inclusive uma revelação curiosa (ao menos para mim): em meio ao vai e vem entre apoiar ou não os países do Eixo, Aranha fala depreciativamente dos judeus aos alemães com frequência, sempre apresentando seus esforços para negar a entrada de refugiados judeus no Brasil. Ironicamente, Aranha presidiria a sessão da Assembleia Geral da ONU que criou o Estado de Israel, em 1948.

João Neves, homem importante no começo do livro ao articular uma resistência a Getúlio no Rio Grande do Sul nos primeiros anos do governo, tem participação apagada após as negociações que garantiram ao presidente o controle sobre o governo gaúcho, isolando os paulistas e decidindo de antemão o resultado da revolta constitucionalista. Em contrapartida, a necessidade de garantir seu poder com alguma legitimidade faz o papel dos generais crescer na história, tornando-se o principal ponto de tensão política, especialmente nas figuras de Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. Ambos têm suas próprias agendas em meio às dificuldades de conciliar os interesses que sustentam Getúlio no cargo. Este soube como produzir uma garantia para si: investir na propaganda oficial e em seu próprio endeusamento, à semelhança dos fascistas europeus, algo que acabou, no médio e longo prazo, garantindo sua popularidade e, no limite, sua eleição em 1950.

No entanto, a propaganda não foi suficiente para combater os anseios de uma recém-constituída classe média, cada vez mais desejosa de se ver representada em um governo de orientação mais democrática e desligada do estilo de governança fascista. A caracterização do movimento que forçou Getúlio a finalmente convocar eleições e, no fim das contas, renunciar à força em meio às suspeitas de tentar o continuísmo com os “queremistas”, é talvez o ponto mais complicado do livro. Como as intrigas internas foram analisadas em detalhes nos anos anteriores, acabam tendo precedência, na análise final, sobre o movimento popular contrário a Getúlio, que deu origem à UDN e moldou o futuro da política nacional. Mas isso talvez seja assunto para outro tipo de livro, pois o que temos aqui é um relato sobre os dias de Getúlio como ditador. Dito isso, o epílogo contando seus últimos dias de governo é leitura das mais agradáveis.

Como nota final, renovo meu interesse em ler o último volume (que coincidirá com os 60 anos da morte trágica de Getúlio) assim que sair. Mas uma preocupação, que até agora não se colocou – em parte porque há hoje pouca controvérsia sobre o caráter ditatorial e quase totalitário do Estado Novo –, está em como a presidência legítima de Getúlio, importantíssima por tudo que nela foi feito e gerado (é inegável que o golpe de 64 já estava em processo avançado de gestação naquele momento, interrompido pela inteligência e sorte políticas de Juscelino), será interpretada no derradeiro livro. A preocupação não se volta a Lira Neto, que já demonstrou estar acima das paixões sobre o personagem, mas à possibilidade de que, em pleno ano eleitoral, a figura controversa do “velhinho” venha a se tornar novamente um debate sectário, como quase todos os temas políticos brasileiros do momento. Que Getúlio passe por mais essa prova.

::: Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo :::
::: Lira Neto :::
::: Companhia das Letras, 2013, 632 páginas :::



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