Getúlio e ditadura
O segundo volume da biografia escrita por Lira Neto começa em meio à tormenta da primeira tentativa de estabilização do governo Vargas.
Seria ocioso repetir os elogios que fiz ao primeiro volume da biografia de Getúlio Vargas há um ano. Afinal, este segundo volume mantém o excelente trabalho de documentação do período e da vida do ditador gaúcho, bem como o nível de qualidade do texto, elevado e empolgante. Portanto, a resenha será mais curta que a anterior. Mas isso representará um ganho: ir direto ao ponto, como faz Lira Neto no volume dedicado ao Estado Novo: começando in medias res, sem recapitulação do que foi visto no livro anterior, no meio da tormenta da primeira tentativa de estabilização do governo, em idas e vindas que desembocariam no movimento paulista de 1932.
Um grande mérito para o texto desta segunda parte está em não reinventar a roda. O padrão formal dos capítulos é o mesmo do primeiro volume, assim como a lógica de introdução dos conflitos. Pequenos suspenses são criados, alianças e defecções são apresentadas na devida ordem, tornando o livro uma narrativa bastante atraente. Os capítulos mais difíceis e mais bem realizados novamente são os primeiros: em meio a dezenas de ocorrências menores que vão construindo e desconstruindo o movimento contrário a Getúlio, Lira Neto não cedeu à tentação de organizar tudo dentro de um esquema cronológico rígido. Assim, reforçando a unidade temática dos capítulos, permite-se compreender melhor o conjunto do que se o autor colocasse cada fato em seu lugar marcadinho em uma linha do tempo. E essa compreensão do que uma narrativa precisa para convencer e envolver faz surgir a questão sobre como seria uma incursão do autor pelo terreno da ficção. Domina os elementos técnicos e estruturais de modo exímio, e isso já é meio caminho andado (talvez um terço de caminho).
Voltando ao biografado, seu governo teve momentos diversos e cada um deles está bem mapeado ao longo das mais de quinhentas páginas da obra. Assim, nos é dado conhecer o íntimo dos momentos mais tensos, como a intentona comunista de 35 (que não foi um problema tão grave para Getúlio devido ao trabalho da polícia política, capaz de antecipar as movimentações – que por seu turno já foram apressadas e muito mal organizadas) e a insurreição integralista de 38, talvez o ponto de maior risco em todo o período de governo: o presidente-ditador chegou a ficar isolado com a família e auxiliares próximos no Catete até reforços chegarem para desbaratar o ataque.
Se antes os principais coadjuvantes da vida de Getúlio eram seus aliados Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura, a presença destes neste volume é reduzida. O primeiro, entrando em rota de colisão com o ditador diversas vezes (algumas por defender uma normalidade democrática, outras por querer e não conseguir a nomeação de apadrinhados – sim, não é de hoje!), acaba passando boa parte do período atuando nos bastidores, isolado como embaixador nos EUA. Mas não deixa de receber a atenção devida, o que provoca inclusive uma revelação curiosa (ao menos para mim): em meio ao vai e vem entre apoiar ou não os países do Eixo, Aranha fala depreciativamente dos judeus aos alemães com frequência, sempre apresentando seus esforços para negar a entrada de refugiados judeus no Brasil. Ironicamente, Aranha presidiria a sessão da Assembleia Geral da ONU que criou o Estado de Israel, em 1948.
João Neves, homem importante no começo do livro ao articular uma resistência a Getúlio no Rio Grande do Sul nos primeiros anos do governo, tem participação apagada após as negociações que garantiram ao presidente o controle sobre o governo gaúcho, isolando os paulistas e decidindo de antemão o resultado da revolta constitucionalista. Em contrapartida, a necessidade de garantir seu poder com alguma legitimidade faz o papel dos generais crescer na história, tornando-se o principal ponto de tensão política, especialmente nas figuras de Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. Ambos têm suas próprias agendas em meio às dificuldades de conciliar os interesses que sustentam Getúlio no cargo. Este soube como produzir uma garantia para si: investir na propaganda oficial e em seu próprio endeusamento, à semelhança dos fascistas europeus, algo que acabou, no médio e longo prazo, garantindo sua popularidade e, no limite, sua eleição em 1950.
No entanto, a propaganda não foi suficiente para combater os anseios de uma recém-constituída classe média, cada vez mais desejosa de se ver representada em um governo de orientação mais democrática e desligada do estilo de governança fascista. A caracterização do movimento que forçou Getúlio a finalmente convocar eleições e, no fim das contas, renunciar à força em meio às suspeitas de tentar o continuísmo com os “queremistas”, é talvez o ponto mais complicado do livro. Como as intrigas internas foram analisadas em detalhes nos anos anteriores, acabam tendo precedência, na análise final, sobre o movimento popular contrário a Getúlio, que deu origem à UDN e moldou o futuro da política nacional. Mas isso talvez seja assunto para outro tipo de livro, pois o que temos aqui é um relato sobre os dias de Getúlio como ditador. Dito isso, o epílogo contando seus últimos dias de governo é leitura das mais agradáveis.
Como nota final, renovo meu interesse em ler o último volume (que coincidirá com os 60 anos da morte trágica de Getúlio) assim que sair. Mas uma preocupação, que até agora não se colocou – em parte porque há hoje pouca controvérsia sobre o caráter ditatorial e quase totalitário do Estado Novo –, está em como a presidência legítima de Getúlio, importantíssima por tudo que nela foi feito e gerado (é inegável que o golpe de 64 já estava em processo avançado de gestação naquele momento, interrompido pela inteligência e sorte políticas de Juscelino), será interpretada no derradeiro livro. A preocupação não se volta a Lira Neto, que já demonstrou estar acima das paixões sobre o personagem, mas à possibilidade de que, em pleno ano eleitoral, a figura controversa do “velhinho” venha a se tornar novamente um debate sectário, como quase todos os temas políticos brasileiros do momento. Que Getúlio passe por mais essa prova.
::: Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo :::
::: Lira Neto :::
::: Companhia das Letras, 2013, 632 páginas :::
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